Quintal e Inverno

O QUINTAL E O PRENÚNCIO DO INVERNO

O dia adormecia lentamente naquele fim de Outo­no. No céu, as nuvens levadas pela brisa ainda morna, amon­toavam-se em arquitecturas fantásticas, cada vez mais som­brias.

Uma senhora, idosa, arrasta com dificuldade a cadeira para junto de uma janela. Senta-se e olha, sem ver, o mundo físico que a rodeia: o pequeno quarto e um quintal, po­voado por uma simples pereira, algumas galinhas que depeni­cam o chão, e o caniçado que lhe encurta o horizonte.

Um raio de sol ilumina-lhe por momentos o rosto sulcado por rugas antigas, mas é tão oblíquo e fugaz que nem lhe faz pestanejar os olhos cansados e mortiços.

O silêncio, que ocupa todo o espaço do compartimento e se alastra imparável até à sua garganta de onde há muito não se ouve qualquer som, pesa-lhe sobremaneira nas profundezas do espírito. Vive só e há muito tempo que não fala com ninguém.

Também, palavras para quê? Ninguém a ouviria, ninguém se interes­saria pelo que pensa, ninguém se dignaria olhá-la, sequer. Era estranho, mas tinha a sensação de que, ela, apesar de ainda ser, já não é. Isto é, existe na realidade, mas é como se fosse um fantasma, tão volátil como um espectro, invisível para o mundo.

Por isso, na solidão mais profunda do seu pensamento, sente ainda uma réstia de prazer quando recorda os momentos agradá­veis que preencheram a sua existência. E alguns foram tão belos, infelizmente, quase sempre efémeros mas, ainda assim, deixaram-lhe gravados na alma o doce sabor da felicidade.

Recorda a sua infância passada ali naquele quintal, tão riso­nha, pura e despreocu­pada; o seu casamento com um homem que foi verdadeiramente seu amigo e companheiro; os seus fi­lhos enchendo a casa de risos cristalinos; o odor quente e doce da marme­lada, das geleias e dos doces variados fervi­lhando na panela; o pequeno canteiro onde floresciam malme­queres ima­culada­mente brancos e cravos vermelhos de sangue; os pintai­nhos amarelos ou pretos que seguiam a mãe e traziam uma nota de vida nova ao quintal. São estas simples lembran­ças que ainda a alegram e lhe fazem sorrir o coração.

Mas, com o decorrer dos tempos, foi reparando que os seus dias risonhos se iam esfumando inevitavel­mente nas brumas da memória. Os filhos procura­ram novas paragens e levaram-lhe os netos, o marido não resistiu a uma doença e faleceu, deixando-a espantosamente só. Restou-lhe apenas aquela jane­la que se abre exclusiva­mente sobre o passado, mas mesmo as imagens que tanto amou perderam a nitidez e as cores. Agora são apenas sombras.

Do céu, começam subitamente a cair grossas bátegas de chuva e um frio cortante insinua-se pelas frestas.

A senhora aconchega o xaile sobre os ombros esquálidos e, melancolicamente, pensa: devem ser os prenúncios do Inverno que chega.

Reinaldo Ribeiro 14/11/2010

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