Pensando a Liberdade

O conceito de liberdade era uma das obsessões que lhe ocupavam o espírito.

Debatia-se com ele tentando compreender-lhe as razões, mas deparava-se sempre com uma certa irra­cio­nalidade nos fundamentos e com alguma afirmação do inesperado.

Lembrava-se bem que, no ardor da juventude, quando todas as manhãs despontavam como que saí­das de uma vitória, pensava a liberdade como o estádio maior que o homem podia alcançar. Nessa época, ele acreditava que cada indivíduo era o senhor, único, do seu comportamento, da sua vida, da sua vontade. Era como se fosse uma ilha onde reinasse absoluto, sem interferências do mundo exterior, nem que com ele tivesse de interagir, como se a verdadeira realidade fosse apenas a sua.

De um modo simplista, ele considerava a liberdade como a ausência de submissão e, ser livre, significava poder fazer o que a sua vontade lhe ditava. Tal como na metáfora da ‘Caverna’, de Platão, também ele andou durante anos, inconscientemente, a acreditar numa realidade deturpada. Pois, a que ele via era a única ver­dade que concebia, sem sequer desconfiar que ela era somente a expressão da ‘sua’ verdade exclusiva.

O acumular da patine que os anos criam, e que a experiência porta consigo, trouxe-lhe outros enten­di­mentos e um aprimoramento desse conceito de liber­dade que tanto o fascinava.

Porém, essa compreensão só começaria a acontecer, quando conheceu os ideais libertários que acabariam por servir-lhe de farol a indicar-lhe o porto seguro onde deveria chegar. Passou a entender que o ‘eu indi­vidual’ que, até então, ele idolatrava pela sua magnifi­cência, era uma minúscula peça do todo ao qual per­tencia, ou seja, o colectivo, e que o seu valor unitário (ou individual) de nada valia sem pertencer a essa união. Foi, então, que se convenceu de que só podia ser livre se todos o fossem igualmente.

Sim, ele sabia que a sua juventude já tinha passado e que as paixões próprias dessa idade tinham, gradual­mente, dado lugar à reflexão, que o encaminhavam para a maturidade mais introspectiva da idade da razão.

Um dia, enquanto passeava pela cidade observou uma cena que o impressionou e levou a repensar todo o seu antigo conceito de liberdade.

“Algumas pessoas exaltadas, sem respeitarem qual­quer ordem de chegada acotovelavam-se para serem as primeiras a adquirir bilhetes para um espectá­culo, trocando muitos impropérios e alguns empurrões…”

Ao olhar para aquelas pessoas, que agiam de um modo que lhe pareceu absolutamente egoísta, ocorreu-lhe que toda a vida social é subjacente à relação que estabelece­mos entre nós e os outros, e em que a pró­pria liberdade é inerente a essa relação. Porque teria tido aquela multidão uma atitude tão anti-social e des­res­peitadora dos direitos alheios?

Reparou que se alguém impunha limites à liberdade, à felicidade e ao prazer do outro – naquele caso de comprar o seu bilhete – este reagia com exaltação e até com ódio. No entanto, também era evidente que esse ódio era recíproco porque todos esperavam realizar o mes­mo desejo, isto é, todos queriam afirmar a sua liber­dade de serem felizes. Então, ele questionou-se: Que fazer numa situação como esta, afirmar a liberdade e ser feliz, mesmo provocando danos no outro ou desistir da sua própria felicidade?

Foi quando deduziu que qualquer decisão livre impli­cava sempre na mútua negação da liberdade e na mútua infelicidade humana. Este era um paradoxo intrans­ponível: o mal-estar na sociedade estaria na negação da liberdade ou na afir­mação dessa liberdade?

Para responder a essa questão, ele precisava de com­preender a forma como as pessoas realmente se ‘viam’ entre si e qual a ‘visão’ que tinham de si próprias, entender até onde podia ir a sua tolerância em relação aos outros e ainda se eram impostos limites à sua e à liberdade alheia.

Intrigado, mas querendo esclarecer todas estas dúvidas, imaginou um pequeno grupo de três pessoas desconhecidas e confinadas num espaço, sem a pos­sibilidade de dali saírem, como se estivessem a cumprir uma pena de prisão perpétua e sem poderem, de forma alguma, comunicar-se com o mundo exterior. Seria a criação de uma imagem ficcionada do real.

Depois de algum tempo vivendo uma intimidade forçada, o simples facto de se olharem e ouvirem e de se verem através dos olhos dos outros, as pessoas foram-se conhecendo enquanto se inquietavam por­que, mutuamente, foram afirmando a sua própria exis­tência perante os outros.

Nos membros daquele grupo, a liberdade limitava-se a desvelar o véu que cobria a nudez íntima de cada um e em que todos desejavam ver reflectidas nos outros as suas melhores qualidades, mas em que todos lhes revelavam também a sua própria condição huma­na. Porém, os outros conseguiam ver mais além do que eles pretendiam esconder, e explicitavam as faltas deploráveis que nenhum deles queria admitir. Isto provocava-lhes um certo desconforto, porque a sua liberdade de manter os pensamentos mais íntimos se diluía quando confrontada com o olhar constante dos outros criando-se até uma crise de aceitação que, com o passar do tempo, acabaria por se transformar em ódio. Parecia que, entre eles, a dialéctica do ver e do ser visto correspondia, de alguma forma, ao conceito de dominar para não ser dominado.

Seria o choque das revelações individuais que eles escondiam, ou que talvez nem tivessem imaginado, que os fazia sentirem-se indefesos perante as consciências que os julgavam, que lhes provocava aquela angústia interior tão difícil de suportar e que os levava a sentir ódio e a convencerem-se de que, afinal, eram os outros que lhes criavam “o seu próprio inferno”?

Finalmente, ele julgou ter compreendido que na vida social, a convivência de uns e outros se constitui numa luta pela supremacia da liberdade, da qual cada um deve ser sempre responsável pelas suas acções e esco­lhas. E que a liberdade de um limita sempre a liber­dade do outro, como um mal do qual não se podem libertar, pois todos fazem parte da consciência e da acção comuns.

Reinaldo Ribeiro

01DEZ2017

 

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