Ausência de Tikay

Quando Tikay morreu fez-se um inquietante silên­cio nos vastos horizontes daquela região desértica. Foi como a Natureza pranteou a partida de um ser que era uma parte de si mesma.

Com assombro, a mãe leva nos braços o corpo sem vida da criança. Irá enterrá-lo junto de um bolbo carnudo, cuja presença, na aridez, só os olhos experimentados da sua gente descortinam. Ali há água e Tikay não passará sede na sua viagem para a eternidade. Mas nos olhos de Wantla perpassa agora uma nuvem de tristeza.

Ela sabe que Tikay já não habita aquele corpo frágil e que, desprovido do espírito, nada mais é do que uma ausência, uma coisa volátil. Da filha só ficou o corpo inerte, sem vida, como a pele que a cobra deixou para trás entre as rochas.

Tikay desapareceu mas a sua ausência impôs-se. Wantla, paradoxal­mente, sente-a como uma au­sência presente, pois a filha ultrapassou a vivência física do quotidiano e ga­nhou o estatuto de um ser espiritual.

Como mãe, Wantla, soube logo que os deuses – quem quer que eles fossem – lhe tinham roubado o espírito da filha e que o le­varam para outras paragens, onde outros sóis nascem e outras luas ilu­minam a noite. Intimamente, e no meio de uma imensa revolta, amal­diçoou-os. No entanto, a sua dúvida mantém-se: porque teriam os deuses decidido que a morte era o melhor destino para Tikay? Agora ela sabe que a vida breve de Tikay é um trilho – quiçá luminoso – que unirá os dois mundos em que habita.

Tikay, não chegou a atingir os quatro anos de idade. Nasceu algures, perto das montanhas de Tsodillo, nas areias escaldantes do deserto do Kalahari, e viveu do leite materno até então, pois os alimentos que o seu povo obtém pouco sustento têm. No deserto come-se tudo, do quase nada que a Natureza dá, e Wantla não tinha muito para dar à sua filha.

Os seus olhos, secos de lágrimas, de algum modo endurece­ram. Escondem a dor que se instalou bem no fundo do cora­ção, e que para sempre lhe vai comprimir o peito. Ela conhece a impotência, e até o desconforto, da perda irremediável que não a largará mais, pois é fruto dos laços de amor originados numa mesma raiz e regados pela seiva do sangue comum. Talvez o passar dos dias lhe sare as dores, mas ela sente intensamente, na sua solidão mais profunda, o deses­pero que a falta da filha lhe provoca.

E o tempo passou. Depois dos dias vieram os meses e os anos e o seu sofrimento persistiu. Recorreu a tudo o que lhe foi possível para eliminar a angústia e reaprendeu a descobrir a felici­dade oculta, semelhante à que sentia quando desenterrava os bolbos aquosos sob as areias do deserto.

Na solidão ela aprendeu a banir o tempo, e até conseguia ver simultaneamente o passado e o futuro. Nesses mo­mentos vivia uma vida dupla, pois Tikay estava ali, ao seu lado, e crescia, brincava e ria como as outras crianças. Como mãe, via que ela estava viva e que, como qualquer criança do seu povo, também dava amor primeiro, para o receber depois multiplicado por cada membro do seu reduzido universo.

Por tanto amar a filha, Wantla, isolou-se cada vez mais. Já não tentava sair do mundo de felicidade que criara, que lhe im­portava o resto?

Encontraram-na sozinha no seu abrigo. Morta. No rosto distendia-se um sorriso doce de mãe e os seus braços esquálidos como que embalavam a filha, a sua Tikay ausente.

Reinaldo Ribeiro

27/08/2008

2 thoughts on “Ausência de Tikay

  • 10 de Novembro, 2018 at 14:41
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    belíssimo e comovente texto Amigo Reinaldo, bem hajas pela tua sensibilidade e vontade de partilha, abraço

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  • 10 de Novembro, 2018 at 11:53
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    Mais uma sentida crónica companheiro.Tu escreves com o coração e deixa-nos sempre a pensar… obrigado Amigo.

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