Miguel Xiluvô

Miguel Xiluvô nasceu, preto e pobre, numa das barracas que formam o musseque de Xipamanine, em Lourenço Marques.

Cresceu ali, brincando seminu na poeira avermelhada, sombreada aqui e além por uma mangueira ou por um cajueiro.

A sua mãe, lavadeira na casa de uma família branca na Avenida Pinheiro Chagas, junto do Alto Maé, levava-o consigo para a casa dos patrões, sempre que os horários escolares o permitiam.

Era a forma que tinha de evitar que o filho vivesse na vagabundagem, juntamente com os filhos das vizinhas ou se iniciasse numa vida de pequenos furtos e mesmo de marginalidade.

Miguel andava com roupas usadas, na maior parte das vezes, sobras que a patroa lhe dava dos próprios filhos, mas a sua mãe fazia questão que ele andasse sempre com a camisa e o calção lavados e remendados.

Era um menino travesso, ladino que, a cada distracção da mãe, corria pelas ruelas que serpenteavam entre as barracas do musseque atrás de um arco feito com um aro de bicicleta.

Outras vezes ia jogar bola de trapos com os outros garotos da mesma idade, ou entrava nos quintais da vizinhança para roubar alguma banana mais madura ou uma manga mais apetitosa.

Era aquela a vida de que mais gostava, livre como o vento.

Não se sentia feliz sentado num banco da escola, a ouvir a professora falar numa língua que não era a sua, nem a dos seus amigos e que eles tinham dificuldade em compreender.

Olhava então pela janela e via o mundo lá fora, livre e luminoso, chamando por si, como uma tentação irresistível.

Apesar de contrariado e desgostoso com esta sensação de prisão que a escola lhe trazia, lá tirou a 4ª. classe.

Era uma criança muito cheia de vida e curiosa, o que lhe permitiu aprender tudo com facilidade e sem esforço.

O seu sonho maior era ser como o seu ídolo: Eusébio, o maior jogador de futebol do mundo, que começou a jogar ali, naquele descampado, no musseque, bem perto da sua casa!

Mas nem todos têm a mesma sorte na vida e Miguel teve mesmo que ir ajudar a sua mãe a lavar e a passar roupa, nas casas dos brancos.

Com quinze anos, era um rapaz alto, simpático e os seus olhos negros, deixavam transparecer uma inteligência e uma sagacidade fora do comum.

Vestia habitualmente uma camisa branca, de manga comprida, com a fralda de fora, umascalças de um branco imaculado, primorosamente vincadas e calçava uns reluzentes sapatos pretos, sem meias.

Fazia questão de andar sempre vestido de forma irrepreensível. Cumpria assim todos os ensinamentos que a mãe lhe dera desde a infância.   

Corria o ano de 1968 em Lourenço Marques, a Pérola do Índico.

Era uma cidade linda! Largas avenidas arborizadas cruzavam-se perpendicularmente e os prédios misturavam os estilos da arquitectura moderna com a colonial e dando-lhe aquele aspecto característico, possível de encontrar somente em África.

Dentro de dias a cidade iria estar em festa. Seria a inauguração do estádio de futebol da Matola. Dizia-se por lá, com justificado orgulho, que aquele era o maior estádio da África Austral.

As ruas da cidade e as esplanadas sombreadas pelos guarda-sóis, vestiram-se de cores variadas para ver passar, nas suas calçadas, milhares de forasteiros vindos dos mais diversos lugares de África, falando uma Babel de línguas.

O governo colonial exultava com a repercussão do evento, pois a inauguração tinha sido divulgada em todo o continente e essa afluência de estrangeiros à cidade seria uma boa oportunidade para propagandear, justificar e até perpetuar a sua dominação sobre Moçambique.

Os portugueses da cidade aguardavam a oportunidade única para serem os anfitriões da classe branca, dominante na África Austral.

Para que tudo funcionasse da melhor maneira possível, estabeleciam-se contactos, faziam-se as listas dos convidados para as recepções, preparavam-se os hotéis e escolhiam-se as melhores roupas para usar nesse dia.

Eu já tinha o meu bilhete para o jogo de futebol e não o perderia por nada deste mundo. Não somente pelo jogo, mas também porque eu queria participar directamente desse momento histórico da inauguração do estádio.

Semanas antes, tinha trazido de uma viagem a Paris, umas calças Levi Strauss, de bombazina branca. Quando as tirei da mala e as mostrei ao Miguel, vi no seu rosto e no seu comentário, a admiração e o desejo pelas calçasbrancas:

Xi patrão, essas calças são maningue xunguila. Quando fores no puto, traz umas calças destas pra mim?

Aquelas seriam as calças que eu tinha pensado vestir para ir ao futebol.

Não iria em traje de cerimónia, como era hábito na comunidade branca sempre que havia algum acontecimento social, mas vestiria uma roupa bonita e moderna, que me agradava muito.

Quis o destino que uns dias antes do jogo, lá na Repartição onde eu trabalhava, tivesse deixado cair sobre as calças, um pingo de tinta-da-china, agressivamente preto na alvura do tecido.

Fiquei triste pois sabia que a mancha de tinta-da-china jamais sairia com os produtos então conhecidos.

Mostrei as calças ao Miguel e falei-lhe do meu desgosto. A resposta veio rápida e determinada:

– Patrão, não se preocupa. Eu tira o pingo preto todo e o patrão vais no jogo com calças novas.

Sem grande confiança, mas ainda assim esperançoso, aguardei.

No dia do jogo Miguel trouxe-me as calças já lavadas e passadas a ferro.

Desdobrei-as ansioso. Não vi a mancha de tinta preta.

No seu lugar havia agora um furo redondo, perfeitamente redondo.

– Viste patrão, como eu tirei o pingo preto?

Sorri contrafeito e ofereci-lhe as calças novas mas irremediavelmente estragadas.

Enquanto ele as experimentava, eu amarrava as meias abaixo do joelho e vestia uns calções e uma balalaica para ir ao jogo. Podia notar-lhe o brilho travesso a saltitar-lhe nos olhos marotos, enquanto dizia:

Obrigado patrão. Agora vou a correr no campo da bola arranjar um bilhete para o jogo…

16 de junho de 1991

2 thoughts on “Miguel Xiluvô

  • 10 de Maio, 2019 at 12:48
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    Linda história meu amigo. Não sei se é ficção ou se foi mais um dos teus momentos vividos nessa África que nos atrai. Uma Lourenço Marques onde nasceu Eusébio e também Ricardo Chibanga, o primeiro toureiro negro que nos deixou há poucos dias, mas que também foi idolo de tantos aficcionados da Festa dos toiros. Leio sempre com entusiasmo as tuas crónicas.

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    • 10 de Maio, 2019 at 16:40
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      Amigo, essa história foi real, mas está um pouco ‘romanceada’… Obrigado pelo comentário.

      Reply

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