As Artes

– Senhor Artur, 0 nosso passeio por esta bela paisagem está sendo a verdadeira revelação de um mundo, até agora oculto para mim, no sentido em que estou a descobrir na Natureza que nos cerca o seu lado artístico, no qual eu nunca havia antes reparado. Isto é, tudo em que os meus olhos se detêm, e as sensações que os meus sentidos experimentam fazem-me lembrar as grandes e autênticas obras de arte que a humanidade tem produzido.

– Meu jovem amigo, o que acabas de dizer é a manifestação da tua sensibilidade que, como a água de uma nascente, brota pura e límpida do mais profundo do teu ser. Também eu penso que a Natureza é fruto do trabalho de artistas de excepção, companheiros dos deuses e que só eles são capazes de fazer obras tão sublimes, diria mesmo, de carácter divino.

Tal como tu, comecei a perceber manifestações artísticas onde antes só via trivialidades e a sua beleza produziu-me uma espécie de calafrio, algo que me prendeu, submeteu e movimentou e, de alguma forma, me emancipou, porque me revelou como a sua liberdade é aberta e terrível.

Recordo até um pensamento de Platão que, em presença das grandes obras artísticas do seu tempo, e consciente das limitações humanas, afirmava que estas, apesar de grandiosas, nada mais eram do que uma mera imitação da vontade de deus. Para ele, os artistas eram criadores de aparências, fingidores que se limitavam a produzir cópias, simulacros, imitações das ideias que lhes correspondiam, cujos modelos originais eram arquétipos.

No entanto, não quero deixar de aproveitar esta oportunidade para caminharmos pela interessante senda que tu acabaste de abrir e para te dizer o que penso sobre arte. Provavelmente pensas o mesmo que eu e, talvez, com uma visão muito mais clarificada e actual do que a minha.

Eu vivi uma parte da vida naquilo a que se convencionou chamar meio intelectual. Aí, entre amigos, respirei cultura, solidariedade, tolerância, fraterni­dade e muita, muita liberdade.

Naturalmente que a arte com a sua função mágica estava sempre presente nas nossas conversas, como se fosse o combustível essencial que as fazia evoluir. Com entusiasmo, falava-se da neces­sidade humana de a criar e até da sua paradoxal inutili­dade, quer fosse na literatura, teatro, música, pintura, cinema, poesia, escultura e dança.

Os gregos clássicos, devido ao seu extraordi­nário desenvolvi­mento intelectual, foram os primeiros a estudar e a pensar a função social da arte, já que a arte, a ciência e a filosofia, são frutos de mentes livres e felizes e só nessa atmosfera podem progredir.

No entanto, entre eles, havia quem não considerasse os artistas candidatos idóneos a educadores, porque eram vistos como mais perigosos aqueles que se ocupavam a descrever os sentimentos, as paixões e desti­nos humanos, ou seja, os poetas épicos ou os dramaturgos, uma vez que nada exercia maior sedução sobre os seres humanos que a representação do comportamento dos seus semelhantes.

Muito se debateu, entre os meus amigos, se a arte visava directamente à utilidade. As opiniões eram contraditórias, porquanto se uns a defendiam, unica­men­te quando a qualidade, a beleza e a sua perfeição ten­dessem para o seu uso, outros argumentavam que o homem sempre reveren­ciou a utilidade como sendo a divindade suprema, e de onde poderia ter sur­gido, com grande margem de surpresa, a poesia. Estes – muitos eram poetas – acrescentavam em defesa da sua teoria que foi então que se fez penetrar o ritmo no discurso, o ritmo, essa força que volta a ordenar todos os átomos da frase, que força a escolher as pala­vras e dá nova cor ao pensamento.

Eu próprio sempre considerei a poesia uma inutilidade, porquanto não se lhe podia dar qualquer uso. Aliás, penso até que foi precisamente a vontade de se libertardo útil que elevou o homem acima de si próprio e que lhe inspirou a arte e a mora­lidade. Mas isto, são pensamentos, apenas. Por outro lado, também sei que, nos tem­pos antigos, os homens quando criaram a poesia, visavam ex­pres­samente a utilidade. Eles tinham a noção da absoluta neces­sidade da arte, porque, sem acesso às manifestações artísticas, mesmo sabendo que estas lhe transmitiam um mundo irreal, sentir-se-iam perdidos, quando lhes faltassem as inesquecíveis parcelas de pra­zer que as mesmas produziam.

Para mim, as obras de arte são inexprimíveis, são mistérios em que a vida se perpetua ao lado da nossa, efémera. Tenho um grande apreço pela poesia e, sem ser poeta, compreendo-a bastante para nela incluir toda a vida. Penso, até, que o trabalho do poeta não está na poesia, mas sim na invenção de razões para que a poesia seja admirável. Julgo que essa manifestação artística apa­receu na Grécia antiga, com os pitagóricos, como ensina­mento filosófico e artifício do pedagogo e que os cantos mágicos e as encantações parecem ter sido as formas primiti­vas de poesia. A poesia não era feita de sentimentos e pensamentos, mas de energia e do sentido das suas cadências e a poesia era uma parte e uma voz da vida do poeta que se apodera da inspiração no seu voo e lhe dá um corpo nos versos, enquanto o seu des­tino é o de projectar a emoção estética.

No meu entender, com a arte, os homens não procuram apenas satisfazer as suas necessidades, mas também têm interesse em que as coisas sejam belas e lhes pareçam belas. O prazer produzido pela beleza é, entre todos, o único verda­deiramente livre e desinteressado. Quando cria­mos algo de belo, tornamo-nos deuses. O valor do ar­tis­ta reside na sua capacidade de produzir prazer, o qual, junta­mente com a dor, são os instru­mentos sociais das pessoas e andam unidos.

Ao longo dos muitos anos da minha vida, fui reparando que há uma certa ligação entre o alucinado e o iluminado. Convenci-me de que qualquer um está sujeito à alucinação, mas só o espírito do iluminado se surpreende com o desconhecido que rasga bruscamente a sombra e lhe deixa ver o invisível.

 Também percebi que a tão discutida “inutilidade” da poesia é uma figura de retórica, ou, talvez, um excesso de humil­dade, e que isto é apenas uma metáfora porque, parado­xalmente, hoje estou convencido de que uma obra de arte é boa quando nasce da necessidade.

Sem te querer maçar muito com este tema, gostaria ainda que entendesses que o conceito de arte tem inúmeras variações que dependem do pensamento e do entendimento individual. Para os que lhe dão uma explicação filo­só­fica, as artes são mentira e ilusão, porque se limitam a imitar a verdade, para outros, talvez menos racionais mas mais emotivos, elas são apenas o estremeci­mento que diver­te ou afaga as suas paixões. Na verdade, a vida não passa de uma comédia, na qual todos nós agimos conforme a máscara que usamos. Se eu admitisse que a arte pretendia produzir beleza a todo o custo, talvez a “beleza” artística tivesse pouco a ver com o sentimento do agra­do ou com a serenidade do decorativo.

Como deves ter reparado, o meu conhecimento artístico não é empírico. Limitei-me a per­cebê-lo com esforço próprio e atra­vés de algumas críticas e opiniões alheias. Para mim, a bele­za não produz nenhum resultado particular, nem intelectual, nem moral; não me ajuda a cumprir um dever; e não me reve­la nenhuma verdade. Limito-me a apreciá-la. Porém, além de admitir que a função da arte é de natureza moral, entendo-a como fonte absoluta do prazer inesgotável e também como um desassossego, principalmente a partir do momento em que passei a compreender a existência humana no contexto da comple­xidade do mundo, quando a arte, finalmente, passou a transmitir-me beleza.

E não foi só isso. Se eu te disser que quando alcancei aquele entendimento também compreendi intensamente a Estética. Pode parecer-te absurdo, mas a sua per­cepção deu-me uma sensação voluptuosa de liberdade consu­mada. Como num devaneio, as diversas nuances da arte penetra­ram em mim e, nesse desvario, con­venci-me de que a ideia de felicidade era estética e a beleza, moral. Convenci-me que nós somos feitos para a arte, para a memó­ria, para a poesia ou, até, para o esquecimento. Admito perfeitamente que se pensares que eu estou louco por falar assim, talvez tenhas razão.

Hoje, penso que todas as artes aspiram à condição da música e que não são outra coisa senão a forma, mas eu tenho procurado ver nelas o esplen­dor do belo, além da sublimação da Natureza, fonte de toda a minha veneração.

– Senhor Artur, desculpe interrompê-lo, mas não tenho palavras, nem conhecimen­tos suficientes, para lhe dizer como fiquei encantado com a sua explanação sobre as artes. Eu limito-me apenas a sentir um tremor quando vejo manifestações artísticas, sejam elas naturais ou artificiais e o meu íntimo, nesses momentos, também sou invadido por um sentimento morno que julgo próximo do amor. Por isso, quero agradecer-lhe sinceramente ter partilhado comigo essa sua visão sobre a arte.

Reinaldo Ribeiro, 1995

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