Entrevista: Joana Mortágua

Vereadora da oposição, a responsável do Bloco de Esquerda em Almada é uma voz crítica determinada a fazer ouvir o seu programa e torná-lo um pauzinho na engrenagem, principalmente no que diz respeito à habitação e aos transportes.

Desculpe se entro um bocadinho de chofre, mas qual é a acção do Bloco nesta vereação? Pergunto-lhe porque, visto de fora, tirando uma declaração ou outra, é quase como se o partido não existisse, como se não estivesse na oposição.

Pelo contrário. É verdade que o nosso sistema autárquico determina a existência de vereadores da oposição e não é fácil ser oposição em Almada. Nunca foi. É sempre um papel difícil de desempenhar pois não é fácil ter acesso a uma série de informações e de mecanismos internos…

Quer dizer: se pedir uma informação aos serviços não lha dão?

Claro que me dão. Mas o funcionamento interno de uma autarquia beneficia sempre quem já lá esteve. Aliás, se perguntar à presidente ela vai dizer exactamente o mesmo, embora com certeza por razões diferentes. Portanto, quem nunca foi vereador com funções executivas – como é o meu caso – tem sempre mais dificuldade em entrar nos mecanismos próprios da Câmara…

Esses são contratempos próprios de quem chega, mas já passou algum tempo desde a tomada de posse e, como oposição, o Bloco…

Deixe-me continuar. O Bloco de Esquerda tem prioridades em Almada. Prioridades estabelecidas durante a campanha eleitoral e que permanecem actuais. E essas prioridades são, entre outras, resolver o problema da habitação em Almada. A esse propósito, foi a partir de uma proposta do Bloco que se criou um grupo de acompanhamento da estratégia municipal de habitação para os vereadores saberem o que estava a ser feito. Não só a nível político, mas principalmente ao nível dos serviços de forma a aumentar a transparência e a discussão política em torno daquilo que considero ser um dos maiores problemas do concelho.

E propostas concretas?

Entre as que já apresentámos encontram-se o cumprimento da promessa eleitoral que foi a redução do IMI, chumbado pelo executivo na votação do orçamento. Outra foi a introdução de uma cláusula de combate à precariedade em todos os contratos e protocolos que a Câmara assume…

Está a falar das condições de trabalho em empresas contratadas pela Câmara para um determinado trabalho?

Exactamente. Há duas maneiras de se manter ou alimentar a precariedade através dos dinheiros públicos. Uma, claro, é directamente, que, neste caso, têm vindo a ser resolvidos. Outra é através de protocolos, muito frequentes sobretudo na área da educação com associações de pais, escolas superiores de educação (no nosso caso o Instituto Piaget, por exemplo), etc. Protocolos esses que servem para a contratação de animadores, assistentes operacionais, professores que acompanham as crianças fora do horário das aulas… É uma massa de pessoas que trabalha nisto há 10 ou 15 anos e que não tem um contrato. E embora não seja a Câmara a contratá-los directamente, a Câmara alimenta este sistema porque sabe que está a pagar protocolos muitas vezes sem saber se esses trabalhadores, que realizam um trabalho permanente, têm um vínculo real às entidades protocoladas. No Piaget havia pessoas com salários em atraso…

Mas há outros temas no programa do Bloco de Esquerda para Almada…

Claro. A habitação e os transportes são um assunto crucial para o Bloco…

Porém, quando o executivo apresentou o seu plano para a habitação, a vereadora não votou contra…

Nós abstivemo-nos na proposta da Câmara…

E fizeram uma declaração de voto…

Sim. E apresentámos essa declaração por duas razões, ambas coerentes com aquilo que defendemos. Para nós, Almada é, se não “o”, um dos maiores municípios da Área Metropolitana de Lisboa com mais problemas na área habitacional. O que, na nossa perspectiva, é um caos, uma situação de emergência social estarem identificadas oito mil pessoas que precisam de realojamento – o que não acontecia nos anos 90 –, estarem identificadas mais duas mil pessoas que vivem em barracas ou em bairros tão degradados que se assemelham às condições das barracas. É uma coisa que não imaginava-mos ver no século XXI, mas que sabemos ser consequência do falhanço das políticas públicas de habitação no concelho, com responsabilidades quer dos governos quer dos municípios, que, voltando a Almada, durante 40 anos construiu muitos bairros, mas não fez tudo o que podia. Tanto não fez que existe o 2º Torrão, as Terras da Costa…

Está a esquecer-se da habitação municipal, que tem suprido alguns desses problemas?

Dizer que a habitação municipal está degradada é pouco. São para cima de duas mil casas, ou seja, há mais habitação municipal do que habitação criada por iniciativa governamental, que estão num estado absolutamente deplorável e sem que seja público – atenção – nenhum instrumento de gestão da habitação municipal, nenhum regulamento de atribuição de habitação, nem nenhuma forma de levantamento sobre o estado das casas; quem as habita, que rendas são pagas, não se sabe. A nossa declaração de voto foi no sentido de recearmos que se tente criar uma política de habitação municipal com base no despejo dessas pessoas, pessoas que ali estão porque as deixaram estar ao longo de décadas.

Falar em despejos é uma acusação grave…

Veja, a estratégia anunciada pela Câmara não estabelece metas, calendários ou prazos… Embora de acordo com muitas daquelas medidas, a verdade é que só uma está quantificada, que é a que deriva da gestão do património municipal e em que se prevê, a cada três anos, libertar 500 fogos, na prática esperando que as pessoas que os habitam agora saiam das casaspara outras as virem a ocupar. Ora, das duas uma, ou a Câmara é muito optimista em relação às políticas públicas sociais e ao desenvolvimento económico do país, e acredita que de três em três anos há 500 pessoas em condições de deixarem de viver em habitação social e passarem para o mercado de habitação privado, ou então há aqui qualquer coisa que nós não entendemos. E por não entendermos não quisemos caucionar o que poderá vir a ser uma política de promoção de despejos. Pela nossa parte receamos que não seja possível resolver o problema da habitação em Almada sem construção pública nova. Portugal tem esse problema. Tem muito pouca habitação pública e a que tem está muito degradada, pertence a uma “geração de Jamaicas”. E nós não queremos Jamaicas. Queremos habitação pública condigna e que tenha uma função social, primeiro para responder a estas necessidades de emergência, e, depois, para controlar o próprio mercado de habitação privado. E que tenha em conta riscos futuros…

Riscos futuros?

Como sabem, de acordo com as notícias, Almada está na linha da frente da – para pôr isto de forma simples – chegada dos furacões. Nós, no concelho, temos riscos ambientais brutais na frente ribeirinha. Já existe um plano para a orla costeira, ele é polémico, mas principalmente é preciso fazer um debate muito sério, e não é só no município mas nacional, porque é preciso entender que esse debate vai ter consequências para as políticas de habitação de Almada, porque eventualmente vai ser preciso deslocar populações e a primeira é o 2º Torrão. Cada vez que há uma tempestade ficamos todos de coração na boca temendo o que ali pode acontecer. Foi, aliás, por razões desta ordem que o Bloco de Esquerda apresentou uma moção para que fosse declarado o estado de urgência climática, o que significaria, se fosse aprovada, que o Estado tem de ter políticas públicas em relação às alterações climáticas, portanto tem de existir investimento público.

Ainda não falámos dos transportes?

Tem razão. Coisas muito concretas: é um drama que Almada não tenha um único operador público de transportes à excepção da Transtejo/ Softlusa. Responsáveis por isto? O governo. Os sucessivos governos que privatizaram tudo o que havia para privatizar, que concessionaram o comboio à Fertagus. Não é verdade que o município não tenha uma palavra a dizer. O Bloco, porque a concessão acaba durante este mandato, levou uma proposta â Câmara para que o executivo se pronunciasse a favor do retorno da Fertagus para a esfera pública, por ser uma PPP muito cara, que já custou milhões ao erário público. Mas a Câmara não se quis pronunciar a favor… Assim como não se quis pronunciar sobre a criação de um operador público único capaz de operar eficazmente dentro do concelho e em articulação com os outros municípios à nossa volta.

Mudando de assunto. O Bloco, no concelho, duplicou a votação de 2013 para 2017, no entanto só obtém metade dos votos daqueles que tem nas legislativas. O eleitorado não acredita numa gestão ou na liderança do Bloco?

É uma dinâmica nacional. Em Almada até tivemos um resultado que ultrapassou a média nacional do Bloco. Nós temos uma dúzia de vereadores eleitos no país inteiro. É um caminho que estamos a percorrer e acho que nos estamos a afirmar com sustentabilidade. Agora, as pessoas ainda não nos conhecem pelo trabalho autárquico por sermos um partido muito recente, apesar de muitos dos seus militantes terem experiência autárquica muito anterior é um caminho que se faz caminhando. É preciso compreender que em Almada, todas as votações, de todos os partidos, à excepção da CDU, são sempre mais baixas nas autárquicas do que nas legislativas. Mas isto são as dinâmicas próprias de cada cidade…

Já agora como explica a derrota, que surpreendeu toda a gente, da CDU após 40 anos no poder?   

A minha avaliação é de responsabilidade própria…

Da CDU?

Sim. Há obviamente uma dinâmica que é desfavorável para a CDU, há uma dinâmica vencedora do PS, que não foi só aqui. Há também uma avaliação da população de Almada relativamente à gestão da CDU nestes quatro anos de mandato e uma vontade de mudança que acabe com a persistência de problemas, que se podem chamar históricos e nunca parecem ter solução à vista. É o caso da habitação, dos transportes, do permanente empurrar os problemas para o futuro ou para o governo ou para outra entidade qualquer. Há muita coisa por explicar naquele último mandato, uma incompreensão em relação à estratégia da CDU para o concelho. As pessoas sentem isso. Quando há projecto, há projecto. As pessoas sentiam que a presidente Maria Emília tinha de facto um projecto para Almada; sabem que deixou um património, que é inegável, e que seria completamente injusto esquecer. Passados estes anos há uma falta de transparência, há uma falta de participação, há um projecto que não se conhece, que está ausente ou que perdeu o rumo e, ao mesmo tempo, começa a haver dificuldades de gestão diária e chega-se à gota de água. A gota de água foi o lixo. Quando a Câmara, em cima de tudo isto, não consegue garantir que o lixo é recolhido, que as ruas são limpas e que há um mínimo de iluminação pública e pavimentação, a avaliação deixa de ser de falta de estratégia para se tornar em falta de capacidade de gestão diária. Essa avaliação foi feita e as pessoas quiseram mudar.

Sem querer ser provocador, há muitas pessoas que vêem o Bloco como um produto político televisivo, porque não se vê uma acção, uma visibilidade do trabalho do partido, nas freguesias, por exemplo?

Isso é um cliché…

Não quer dizer que não seja verdadeiro…

Não é verdadeiro em Almada nem é verdadeiro em muitos sítios. É verdade que o Bloco tem a dimensão que tem e não tem ninguém em nenhum executivo e, por isso, a visibilidade de um partido que está na oposição e não no executivo, tendo em conta – sobretudo e também – a realidade da comunicação social, de que vocês são uma excepção mas de resto é praticamente inexistente em Almada, é difícil chegar às pessoas do concelho com as nossas posições. No entanto os autarcas do Bloco estão presentes, são conhecidos. Se for à Trafaria perguntar pelo Chalana toda a gente sabe quem é. Como não há ninguém na Cova da Piedade que não conheça o Luís Filipe, ou, no Laranjeiro, que não conheça o Pedro Oliveira. São pessoas que foram operários, sindicalistas, autarcas… As pessoas são conhecidas, têm a sua comunidade, mas o trabalho dos autarcas é esse. É um trabalho de formiguinha, um trabalho muito difícil e muitas vezes ingrato. Sempre que há movimentações sociais, lutas que são desencadeadas, como nos TST, que estiveram em greve, ou se há um problema no bairro da Rua Catarina Eufémia, que era da Fidelidade e depois foi vendido, vendido, vendido e há ali um risco de despejo, nós estamos lá, falamos com as pessoas, levamos o problema à Câmara. Há um acompanhamento efectivo do que acontece. Gostava que tivéssemos mais tempo, mais braços e mais pernas, mas as coisas não são assim.

O Bloco tem a ambição de dirigir a Câmara?

Quando nos candidatamos, candidatamo-nos sempre com a convicção de querermos ser poder…

Essa é uma posição de princípio. Todos os partidos querem o poder. Mas agora realisticamente…

Realisticamente propusemo-nos contribuir para uma maioria transformadora de esquerda na Câmara Municipal de Almada…

E porque não foi isso possível?

Porque considerámos que não existe a possibilidade de criar uma maioria transformadora com o PSD, de quem, em alternativa à CDU, o PS precisava para governar.

Mas o PS ofereceu pelouros a todas as forças políticas…

É verdade. Porém o Bloco de Esquerda não determinava nada, não fazia maioria com ninguém. Infelizmente. E estaríamos condenados a governar com a política de uma outra maioria, isto é, a gerir a aplicação concreta da política do PS e do PSD. De qualquer maneira, estamos sempre abertos a convergências com outras forças políticas para resolver problemas concretos, no entanto sabemos que nestas circunstâncias essa convergência é difícil.

Ricardo Salomão/ Rui Monteiro

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