Esperança e Desalento

Tempo de Esperança e Desalento

Tudo começou em Abril de 1974.

Tinha acabado a longa ditadura e os portugueses respiravam pela primeira vez os ares da liberdade.

Nas ruas e nos campos havia risos, cantares, solidariedade, alguma fraternidade e trabalho comunitá­rio em vagas sucessivas de alegria.

Este foi o tempo de euforia. Muita coisa mudou então na sociedade e essas mudanças demonstra­vam bem a vontade de esquecer o passado e, até, algum desejo oculto de o vingar.

No entanto, nem tudo era alegria. Mantinha-se a austeridade, a pobreza, o analfabetismo, as diferenças sociais, enfim, era ainda a anterior “evolução na continui­dade” onde apenas persistia um ténue raio de esperança de um futuro melhor para todos.

Foi, então, que “eles” começaram a surgir, como um fruto estranho que nascia nos vastos campos da ignorância de Portugal. Eram os novos messias, gente que conhecia o estrangeiro, que falava outras línguas, com doutoramentos nas universidades do mundo.

Traziam ideias, conceitos novos de organização e prometiam a realização do sonho. Eram educados e falavam baixo, com segurança e propriedade sobre democracia e desenvolvimento, capitalismo e socialismo e, com algum paternalismo, ensinavam ao povo que este também era europeu e que o futuro estava lá, na Europa desconhecida e, até, desprezada.

E com eles vieram palavras jamais ouvidas em Portugal: estatística, progresso, compe­tência, economia, inflação, produto interno bruto, serviços, lucro. Os portugueses ouviam-nas, embasbacados, mas não as compreendiam, no entanto, sabiam que elas traziam os ventos do progresso que todos ansiavam.

Um dia, um desses novos iluminados, emergindo das brumas da velha Albion, sentou-se na cadeira mais alta do governo português. Era um jovem esguio e seco, sisudo. Diziam que era um economista conceituado e que queria aproximar Portugal dos níveis de desenvolvimento das outras nações europeias. Para alcançar esse objectivo, começou por difundir a ideia de que o progresso desejado não estava em África – aquele continente subdesenvolvido que tantos tinham aprendido a amar como se fosse a sua terra. Não, – afirmava ele – o futuro está aqui, na Europa!  

Em tom professoral e com uma voz de falsete, assustadora­mente, parecida com uma outra de triste memória, ele dizia que era preciso consumir e fazer circular o dinheiro incentivando o povo a comprar a crédito tudo aquilo que pretendia, mesmo que não o possuísse, pois os bancos só existiam para o emprestar.

Estas frases, espantosas, contrastavam fortemente com a obsessão pela poupança do velho ditador! E o povo, humilde, ignorante, crente e desejoso de possuir as mesmas riquezas dos povos de além-fronteiras, obedeceu. Com facilidade, aprendeu os caminhos ínvios do crédito e, inocentemente, endividou-se.

Entretanto “eles” já tinham invadido todos os gabinetes ministeriais e todas as grandes empresas públicas e privadas do país. Adoravam o dinheiro com o mesmo fervor que os cristãos mais devotos adoravam a Bíblia e, insidiosamente, espalharam a nova fé no seio da sociedade portuguesa.

Foi, então, que aquele governante, seco e sisudo, possuidor da revelação, anunciou o caminho da luz e da esperança. Com um sorriso malévolo na boca escancarada, informou-nos que os estudos económicos dos maiores génios das grandes universidades do mundo (principalmente a de Chicago) nos diziam que um país atrasado, como Portugal, só poderia evoluir e tornar-se grande, se destruísse todo o tecido produtivo nacional existente. Esta destruição era necessária para que o renascimento se fizesse a partir de uma base pura, livre dos perniciosos resquícios do socialismo que ainda se ouviam aqui e ali.  

Destruiu-se, pois, toda a agricultura e a pesca artesanal de subsistência. A mecanização e a industrialização ocuparam o seu lugar; deitaram-se abaixo as empresas familiares de pouca ou nenhuma competitivi­dade e, sobre as suas ruínas, construíram-se complexos industriais modernos; substituíram-se os vinhedos, as searas, os montados de sobro, por vastos e verdes campos de golfe, que atrairiam os mais ricos do mundo para aqui deixarem rios de dinheiro; fizeram-se barragens nos rios para irrigar esses paraísos verdes povoadas com inúmeras espécies exóticas de peixes, atracção irresistível para os pescadores desportivos do mundo; cruzou-se o território de Norte a Sul e de Leste a Oeste com inúmeras auto-estradas que levariam turistas a todos os recantos do país. Como o país precisa de mobilidade, cada cidadão tem direito a um transporte, isto é, ao seu próprio automóvel. Deixou-se de pensar no arcaico e secular transporte ferroviário, pôs-se o país a circular sobre os rodados dos caminhões e não se esqueceu o transporte aéreo, vital para a aproximação das pessoas deste imenso país, para isso, construíram-se modernos aeródromos em cada sede de concelho; que se transforme Portugal num país de serviços e que a oferta de bem-estar e lazer para aqueles que o visitam seja a nossa maior riqueza. Existem praias e um clima fantástico, onde o sol brilha o ano inteiro, logo, aproveite-se tudo isso e construam-se hotéis, resorts, clínicas, pousadas, centros modernos de acolhimento da terceira idade para os mais afortunados deste mundo; contudo, é preciso também de cuidar dos jovens, esses donos do futuro. Criem-se escolas, faculdades e centros de formação nas cidades, vilas e aldeias. Acabe-se com a praga do analfabetismo. Liberte-se a juventude do obscurantismo forçado em que viveu durante tantos anos e faça-se de cada jovem um quadro superior. A escola pública do passado já não oferece condições para alcançar esse objectivo, apele-se por isso à iniciativa privada para que assuma o seu papel no plantão da frente dessa cruzada e introduza-se aqui os novos métodos pedagógicos, construam-se estabelecimentos privados de ensino, de que tanto se necessita. Em pouco tempo Portugal estará ao mesmo nível educacional dos países mais avançados; de igual modo, a saúde dos portugueses não está boa e é preciso reverter os índices dessa infeliz estatística. Construam-se hospitais, centros de saúde e maternidades por todo o país em colaboração com os investidores privados nacionais e internacionais e todos irão beneficiar com isso, principalmente o povo, pois a Constituição, zelando pelo bem-estar geral da nação, preconiza que a saúde seja tendencialmente gratuita; mas não se esqueça que os portugueses além do trabalho também precisam do lazer. Nesse sentido e, para que todos tenham acesso à cultura, construam-se bibliotecas, teatros, pavilhões gimno-desportivos, centros culturais, estádios de futebol, casinos, autódromos, salas de leitura, ginásios, etc. – aqui, e com uma pontinha de orgulho, o governante até dá o seu próprio exemplo: apesar das inúmeras tarefas que me assoberbam e que a governação me exige, ainda consigo roubar à minha agenda sobrecarregada cerca de cinco minutos diários, que dedico inteiramente à leitura dos jornais.

Este programa de desenvolvimento nacional é um programa ambicioso que vai exigir do governo um esforço inaudito, além de avultadíssimas somas de dinheiro. Mas ninguém pense que, para o realizar, se vai aumentar os impostos. A CEE, essa criação de homens abnegados e desinteressados, que procura acima de tudo a convivência fraterna entre os povos desta nossa Europa, já está a disponibilizar para Portugal, e a fundo perdido, a astronómica quantia de dois milhões de contos por dia. Depois, com modéstia, aquele governante ainda diz que, apesar de ter sido ele o principal obreiro desse acordo, tem orgulho em declarar que Portugal já começou a ser, a par dos seus congéneres europeus, UM PAÍS RICO!

Este foi o tempo do deslumbramento e da Esperança.

Entretanto, “eles” movimentavam-se à sombra do(s) poder(es). Introduziam-se nos partidos políticos e dominavam-nos; faziam alianças impensáveis e ganhavam governos; dominavam o aparelho de Estado, principalmente nas áreas da Economia e da Justiça e reinavam; enxameavam as administrações dos bancos e enriqueciam; abriam escritórios de fachada, só para ocultar negócios escuros; criavam firmas de advocacia e ganhavam todos os casos, administra­vam todas as grandes empresas privadas e, num ritmo impressionante, privatizavam as públicas. Ao fim de algum tempo dominavam o país, apoiados “democratica­mente”pelo voto popular que angariavam através de promessas falaciosas em que o povo, crédulo, acreditava.

Estes foram os anos da mentira, e que ainda perduram. Nunca se mentiu tanto em Portugal até então. Os governos mentiam ao vender a ideia de esta ser a terra prometida, os governados mentiam a si mesmos e aos outros quando, vaidosamente, diziam que eram ricos. O próprio povo, também mentia, porque fingia ou acreditava nisso tudo.

A vida parecia fácil e risonha pois o dinheiro entrava a rodos. De país de emigrantes passámos a país de imigração; de povo pobre, quase miserável, passámos a estar entre os mais ricos do globo; de um índice de analfabetismo medonho, passámos a ter o maior rácio de “doutores” no mundo; novas palavras entraram no léxico nacional e algumas provocaram até uma subida em flecha no estatuto social: por exemplo, taberneiro ou merceeiro, de um dia para outro, passaram a ser “empresários”; passou a ser importante ter o título de engenheiro ou doutor para definir a ascensão social; de súbito, desapareceram as carroças e as bicicletas e, quase por milagre, todos passaram a ter carros, que não eram apenas um transporte particular, mas símbolos de riqueza e ostentação; quem nunca tinha visto a praia da Nazaré ou de Caparica, passou, num ápice, a frequentar as praias mais exóticas do mundo; os filhos deixaram de frequentar as escolas públicas e entraram no mundo selecto do ensino privado, pagava-se caro, é certo, mas o diploma estava garantido; até então, todos gostavam de futebol mas os estádios estavam vazios por falta de dinheiro para os ingressos, depois os aviões lotavam-se para levar os adeptos das equipas nacionais aos países onde estas se deslocavam nas competições internacionais; a dieta mediterrânica, base da nossa alimentação, viu-se desprezada, desdenhada e confinada à mesa dos mais velhos e pobres, só a novidade alienígena, trazida pela publicidade enganosa, interessava consumir e assim se instalaram novos gostos: “donuts”, “cocas”, “mcdonalds”, etc.; era imperioso acabar com as barracas miseráveis onde vivia uma boa parte da população portuguesa, aliás o direito à habitação até está consagrado na Constituição. Os construtores civis não perderam tempo e venderam a ideia de que cada português tinha direito “à casa própria” pois o financiamento estava garantido através da boa-vontade dos bancos. Alugar casas e apartamentos era coisa de pobre, diziam. Comprem, comprem, sejam donos da vossa casa e não se preocupem com o pagamento, pois os juros são baixos e as facilidades imensas…; o povo, que até aí sobrevivia sem médicos e hospitais, que desconhecia os males que lhe afectavam a saúde, passou a ter um sistema nacional de saúde de grande qualidade e, devido a isso, até a expectativa de vida aumentou. Mas “eles” tinham-se infiltrado também nos laboratórios, nos hospitais e centros de saúde. Era imperioso vender os seus produtos e a sua marca para vencer a concorrência, ofereciam-se “benesses” aos responsáveis pelas instituições de saúde e aos médicos. O povo passou então a consumir remédios das marcas mais publicitadas. Até na saúde, salvo as devidas excepções, se passou a mentir.  

Passámos a ser um país de mentirosos!  

As ideologias que defendiam a igualdade e a liberdade para todos foram, espantosa­mente, rejeitadas pelo bom povo, ignorante e estúpido, que seria o seu maior beneficiá­rio. Contudo, devido à ambição suscitada pelo capitalismo desenfreado, o povo passou a lamber as mãos daqueles que os exploravam e a ladrar e a morder a quem se preocupava em tirá-los do mundo rastejante da subserviência.

Todos os desmandos praticados que engrossavam abusivamente as contas bancárias dos governantes eram tolerados pelo povo, com a estúpida justificativa “democrática”: Daqui a quatro anos tiramo-los do poder. E assim aconteceu ao longo dos últimos trinta e seis ou trinta e sete anos. O povo exerceu, religiosamente, o seu direito de voto, mas limitou-se sempre a penalizar o partido do governo cessante e a privilegiar o partido do governo anterior a esse, diria que num ciclo perpétuo.

E era até com uma certa fúria que invectivavam sempre os partidos mais à esquerda, como se estes fossem culpados dos desmandos que os poderes – de que nunca fizeram parte – praticavam impunemente.    

E os jovens? Esses, sem qualquer preparação para o mundo do trabalho, com uma educação deficiente, por ser facilitadora, com total falta de responsabiliza­ção, com os egos, juvenis e adolescentes, inchados, tudo exigiam porque julgavam a tudo ter direito. Desconheciam que o futuro lhes pertence, mas que são eles os seus construtores e, alegre e alienadamente, abandonavam-se aos prazeres imediatos dos festivais de música, com o seu cortejo de vícios públicos e privados, pagos pelos próprios pais.

 “Eles”, os donos disto tudo, deliberadamente, esqueceram-se de dizer que no mundo capitalista tudo se paga e que, mais cedo ou mais tarde, a factura iria chegar. E ela já chegou.  

Foi assim, através de um palavroso embuste, que as portas se abriram para a roubalheira desenfreada que se perfilava, oculta e escancarada, num futuro absurdamente próximo.

Hoje alcançámos o futuro!

8SET2013

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