A Caparica, de Raul Brandão

Mais um texto sobre a nossa terra enviado pela nossa amiga Maria João Sousa Martins e que, mais uma vez agradecemos. Desta vez trata-se de um excerto do livro Os Pescadores, de Raul Brandão.

CAPARICA

Janeiro – 1923

Da horrível Trafaria à Caparica gastam-se dezoito minutos num carrinho pela estrada através do pinheiral plantado há pouco. Os pinheiros são mansos, anainhos e inocentes – os pinheiros novos são como bichos novos e têm o mesmo encanto. Ao lado esquerdo desdobra-se o grande morro vermelho a esboroar e ao outro lado o terreno extenso e plano rasgado de valas encharcadas. De repente uma curva, algumas casotas cobertas de colmo – Caparica. Primitivamente, isto foi um grupo de barracas que os pescadores aqui ergueram neste esplêndido sítio de pesca, à boca da barra, a dois passos do grande consumidor. Têm um ar ainda mais humilde que os palheiros de Mira ou Costa Nova. Quatro tábuas e um tecto de colmo negro com remendos deitados cada ano: alguns reluzem e conservam ainda as espigas debulhadas do painço. No imenso areal o barco da duna, sempre o mesmo barco, maior ou mais pequeno, próprio para a arrebentação, de proa e popa erguidas para o céu.

Trabalham seis companhas em catorze barcos. Já trabalharam oito. Cada barco emprega vinte e um homens, contando dez que ficam em terra. Usam quatro remos: um grande de cada lado e dois pequenos, servindo os maiores para aguentar o barco quando as águas puxam e se vai ao mar a risco. A cada remo grande agarram-se três homens e dois aos mais pequenos. O espadilheiro guia o barco com outro remo – a espadilha. Quando há muito peixe fazem-se três lanços cada dia, e trabalha-se todo o ano se o mar deixa. A rede é a de arrasto para a terra. O barco sai ao mar deixando um cabo nas mãos dos dez homens que ficam no areal, e vai-o largando pouco e pouco – cinquenta e tantas cordas de dezoito braças cada uma. Quando o arrais acha que se deve largar a rede, diz: – Em nome da Senhora da Conceição, rede ao mar! – E larga-se o calão, em seguida o alar, depois o saco, e por fim o outro alar e o calão, trazendo-se a corda para a terra. Abica, salta a tripulação e com os homens de terra arrastam a rede. Apanha-se sardinha, carapau, e às vezes, em lanços de sorte, e quando menos se espera, a corvina, alguma raia, pargo e linguado.

Uma grande extensão de areal, só areia e mar, barcos como crescentes encalhados e alguns pescadores remendando as redes. Nem um penedo. Areia e céu, mar e céu. Dum lado o formidável paredão vermelho, a pique, desmaiando pouco e pouco, até entrar pelo mar dentro todo roxo, no cabo Espichel. Do outro, o mar azul metendo-se, num jorro enorme, pela ampla barra de Lisboa, deslumbrante e majestosa. De onde isto é esplêndido é acolá do alto do Convento dos Capuchos. Assombro de luz e cor. Amplidão. As casotas da Caparica aos pés, o mar ilimitado em frente, ao fundo e à direita a linha recortada da serra de Sintra com as casinhas de Cascais e Oeiras no primeiro plano esparsas num verde-amarelado… E luz? E o prodígio da luz?… A gente está tão afeita à luz que não repara nela e trata como uma coisa conhecida e velha este azul que nos envolve e penetra e que desaba em torrentes sobre as águas verdes desmaiadas e sobre as terras amarelas e vermelhas até ao cabo Espichel… Mas fecho os olhos – abro os olhos… Imensa vida azul – jorros sobre jorros magnéticos. Todo o azul estremece e vem até mim em constante vibração. Quem sai da obscuridade para a luz é que repara e estaca de assombro diante deste ser, tão vivo que estonteia…

Raul Brandão, Os Pescadores, Porto: Porto Editora, 1990, pp. 149-151

 

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