“Campos de concentração, não!”

 

Não há muito tempo, uma pessoa amiga, ligada a um organismo de acolhimento,  acompanhamento e integração de refugiados, convidou-me para um passeio de grupo em que participava um jovem somali que viveu de perto a terrível realidade da guerra fratricida e passou grande parte da sua curta existência, literalmente, de campo de concentração em campo de concentração.

– Vamos dar uma volta com o rapaz, para ele ter um primeiro contacto com o país que o acolhe. Enfim, transmitir-lhe alguma sensação de paz e confiança, pô-lo em contacto, a pouco e pouco, com o seu novo ambiente, no sentido de uma integração tranquila. Estou a pensar levá-lo à Costa da Caparica…

Não o deixei terminar.

– Conta comigo – foi a minha resposta imediata.

 

No dia combinado, lá me encontrei com o grupo que vinha dividido por dois confortáveis e esplêndidos jipes. Muito civilizadamente, fizeram-se as apresentações apenas pelos nomes próprios, sem apêndices de títulos, postos, cargos ou profissões. Passou-bem para aqui, passou-bem para ali e entrámos todos nas viaturas, tendo eu, por mero acaso, ficado precisamente ao lado do obsequiado. Não, certamente, pelos meus conhecimentos de suaíli, ou somali, ou qualquer que seja o idioma que se fala naquele país do Corno de África.

Devo dizer que o grupo era, por qualquer razão que desconheço, bastante heterogéneo, o que depois me fez pensar que deveria ter a ver com qualquer regra estabelecida de acolhimento cordial a refugiados. De facto, não sei. Mas éramos ao todo dez pessoas distribuídas da seguinte maneira – no jipe da frente, em cuja tripulação fui incorporado, seguiam: ao volante um cavalheiro de bastante idade; ao seu lado sentou-se outro cavalheiro, de idade e aspecto geral similares aos do primeiro; atrás do condutor instalou-se uma simpática rapariga africana que, mais tarde vim a saber, era guineense de etnia balanta, a Titina; ao meio seguia eu, o mais alto do grupo, encaixado precisamente no lugar mais apertado; do meu lado direito, muito adequadamente à janela, para poder desfrutar das vistas, o convidado de honra, Mazongo de sua graça.

A restante comitiva enclausurou-se no carro que seguia atrás, não interessa a distribuição de lugares, mas que era constituída pelas seguintes personagens: o meu amigo; uma senhora de meia-idade; um rapaz com nove ou dez anos e um casalito na casa dos vinte que, sempre que os observava, ou estavam de mãos dadas ou abraçados e aos beijos, o que me inoculou a suspeição que se tinham conhecido e apaixonado no próprio percurso que os tinha trazido de Lisboa à Costa.

 

Fechadas as portas, carros em marcha, estabeleceu-se entre os do nosso grupinho um pesado e constrangedor silêncio até ao momento em que, sem me ter apercebido de que alguém tivesse dado qualquer espécie de sinal, desataram todos num falatório simultâneo e em grande alarido. Todos não. Eu e o Mazongo entreolhámo-nos, encolhemos os ombros e esboçámos um sorriso que podia parecer de entendimento, mas que era de absoluto desentendimento em relação à algaraviada.

A gritaria, cheia de gargalhadinhas de permeio, era feita exclusivamente em português, onde se destacava a acentuada pronúncia portuense de Titina, afinal uma tripeira convicta. Estranhei o facto de não ter vislumbrado a menor tentativa de se comunicar com o rapaz, mas tudo bem.

Pela nossa parte, eu e o meu novo amigo Mazongo, ensaiávamos uma peculiar forma de comunicação em que ele, estendendo a mão para fora da janela, me ia indicando ora o Cabo Espichel, ora a Serra de Sintra, ora a Falésia da Costa, ora uma nesga de mar, ora um cão com um jornal na boca, ora uma nuvem vagamente com forma de girafa e por aí fora. Eu, como se fosse a primeira vez que ali estava, mirava tudo o que ele me mostrava e ia acenando que sim com a cabeça, entupido de espanto. Só dias depois deste lamentável episódio, é que me ocorreu que o que ele pretendia era que eu lhe explicasse e comentasse o que era tudo aquilo. Enfim, um ligeiro equívoco da minha parte, mas o pior estava ainda para acontecer. Um imbróglio que, como se verá, sobre o qual não tive a menor participação ou responsabilidade. Bom, mas não nos apressemos.

Após darmos um certo número de voltas, aparentemente sem sentido nem critério, a pontos de eu próprio, profundo conhecedor da localidade, ter ficado completamente baralhado e, em rigor, sem saber onde estava, lá percebi que rumávamos ao sul. É possível que quando digo “rumávamos”, dê a entender que estávamos a começar viagem para um destino longínquo. Nada disso. Dirigíamo-nos directamente aos parques de campismo, logo ali, um pouco abaixo.

 

É escusado dizer que a visão da multidão em trajes menores e a chinelar de um lado para o outro, obtida a partir do exterior daqueles dois recintos geminados, é tenebrosa. Junta-se a isso o aspecto abandalhado e desolador da massa compacta de traquitana que para ali está amontoada, sob toldos de lona e oleado. Bem por cima desse cenário pós-apocalíptico, pairam bandeiras de cores clubísticas, como que  marcando territórios tribais aparentemente em pé de guerra. Qualquer pessoa, mesmo apreciadora de experiências mais radicais, fica com a pele arrepiada com um simples olhar relanceado sobre o local.

Eu ainda desconhecia os contornos precisos da trama toda desde o seu início, por isso fui completamente apanhado de surpresa ao verificar que a nossa caravana se desviava da estrada e enveredava por um poeirento acesso, felizmente curto, em macadame, às cancelas de um dos parques. Só depois é que soube, que aquele comitézinho de acolhimento tivera a estranha ideia de levar o infeliz do rapaz a passar um fim de semana a fazer campismo. É claro que não me tinha escapado à atenção a volumosa carga nos porta-bagagens das viaturas, mas fazia lá eu ideia.

Como se pode imaginar, tudo aquilo teve sobre o Mazongo um efeito tão devastador que, assim que viu qual era o destino que levávamos, começou imediatamente a soluçar, a chorar e a gritar, alto e bom som, certamente as únicas palavras que conhecia em português – “CAMPO DE CONCENTRAÇÃO, NÃO! CAMPO DE CONCENTRAÇÃO, NÃO!”

 

Bom, eu fiz o que pude e tentei acalmá-lo, mas era inútil. De rompante, abriu a porta do jipe e sem dar tempo de reacção a nenhum de nós, projectou-se para fora como um perdido e estatelou-se num monte de cubos de pedra para calçada.

Resultado: desmaio, sangue por todos os lados, pânico no grupo, multidão de curiosos à volta, sirene de ambulância, paramédicos, azáfama, explicações, etc.. De seguida a ambulância arrancou em alta velocidade; o grupo, como uma equipagem bem treinada, ocupou imediatamente os seus postos nas viaturas e desapareceu numa nuvem de poeira, atrás da VMER, abandonando-me ali.

 

Pouco tempo depois, ao telefone, perguntei ao meu amigo o que tinha acontecido, como acabara o episódio, como é que estava o Mazongo.

– Tu sabes lá – disse-me ele. Depois de ter tido alta do hospital, o rapaz só dizia que queria voltar para o seu país, sem eu o conseguir demover. De maneira que tive eu próprio de o ir levar ao aeroporto e o fulano nem sequer se virou para trás, para acenar um adeus, vê tu bem.

 

Para ser enfiado num campo de concentração, antes no país dele – lá terá pensado.

P. G.

06/02/2012

 

 

 

 

 

 

 

2 thoughts on ““Campos de concentração, não!”

  • 24 de Junho, 2012 at 2:21
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    Embora seja campista e adore a vida ao ar livre, concordo que os parques de campismo na C. de Caparica são realmente uma visão do inferno sobretudo devido à relação entre a área coberta por canvas e o espaço livre para circulação e lazer o qual é, senão inexistente pelo menos reduzidíssimo, tornando desta forma os recintos de difícil acesso em caso de sinistro, às ambulâncias ou carros de bombeiros.

    Apesar de algum melhoramento ter sido levado a cabo pela Orbitur, o C.C.L. continua igual a ele mesmo: um autentico gehto de caravanas, que ali jazem décadas a fio para deleite dos seus proprietários. Não me incomoda que as pessoas vivam o ano todo em campings e se instalem comodamente eu mesmo o faço. O que me arrepia é a promiscuidade, a proxémia entre as caravanas, a falta de ar nos estreitos corredores, isto já para não falar na traquitana que os utentes acumulam como se estivessem a viver na cidade. Juro que já vi uma cama de bilros e um ‘psiché’, naqueles recintos, o que torna as jarras com rosas de genuíno plástico quase aceitáveis.

    Mas se os utentes dos campings não têm puto ideia do que é campismo, as direcções daqueles recintos deveriam implementar regras básicas de segurança e de bem estar nos ditos recintos e educar os seus sócios nesse sentido, nomeadamente o C.C.L. que não aceita inscrições sem o aval de dois sócios e a apresentação de carta de campista, a qual é emitida pelo próprio clube apenas aos sócios…

    Quando é que vamos perder esta mania de acharmos que somos donos do pedaço?

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  • 6 de Fevereiro, 2012 at 18:09
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    Gostei e sorri por vezes com o que li. Vou ficar a partir de agora atenta a esta GANDAIA. Parabéns ao autor dos textos. Bora lá pessoal participar nesta gandaia.

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Responder a carla isidro Cancelar resposta

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