A “minha” Arrentela – Altos e Baixos Parte 4/4
22 – Duas operárias de 1ª classe – Ivone e Carlinda
Tinha uma imensa simpatia pelo valor profissional destas duas mulheres.
A Ivone Landeiroto vivia no Largo da Cruzinha, sempre de preto vestida, escanzelada pelas privações, com muitos filhos igualmente magros.
Era fiadora na Fábrica da Lã e ganhava sempre os prémios destinados à produção da sua secção e que bem lhe devia saber, dados os magros salários então auferidos.
Sei que ela também tinha por mim grande simpatia.
A Carlinda Martins era igualmente uma profissional de grande categoria na zona do Acabamento. Igualmente ela ganhava os prémios pecuniários para os melhores mais eficientes e rápidos.
Mas as capacidades de produção destas mulheres, não eram obtidas por qualquer esforço adicional. Eram boas no que faziam e pronto.
Estamos a falar de um universo de quase 300 operários.
23 – O alfinete do Herculano
O Herculano Fernandes Cardoso era o marido da Carlinda Martins e foi meu colega nos escritórios da Fábrica da Lã.
Um bom coração, mas muito amigo do seu copito quando acompanhado por petiscos, fosse em que taberna os houvesse.
Para o despedirem da Fábrica, armaram-lhe uma cilada com dinheiros à guarda ou entregues para outro fim e o certo é que foi para tribunal e a saída dele foi inevitável.
Desagradou-me sobretudo foram as testemunhas que a fábrica evocou para o seu julgamento, dado que foi nelas incluído, um pouco sem saber exatamente o que acontecera tal como os outros colegas. Ainda no Tribunal, onde eu entrara pela primeira vez, tive oportunidade de lhe pedir desculpa pelo sucedido, ao que ele aquiesceu com um sorriso de algum conformismo, sem deixar de me dizer para que não me preocupasse.
Voltando aos petiscos o bom do Herculano usava sempre um alfinete que guardava entre o lábio e a gengiva de baixo. Isto é, estava sempre pronto para atacar os pobres caracóis. Por vezes tentávamos surpreendê-lo, mas para confirmar o depósito do alfinete, ele fazendo um gesto com a língua o ia buscar e exibia de imediato.
Não sei se dormia igualmente com aquele aparente incómodo.
24 – José Rocha e o meu Pai
O José Rocha tinha uma mercearia que depois foi convertida em café, mesmo na zona principal da terra.
A Estela e a Lela suas esposa e filha eram, tal como ele, excelentes pessoas, mas o pobre do José Rocha era muito nervoso e gaguejava imenso.
O meu Pai ia lá sempre tomar o café ao fim de semana e para o arreliar deixava a moeda de um escudo por debaixo do pires, entre a chávena e o pires, debaixo do jornal ou ainda na mesa do lado e saía aparentemente sem pagar.
O aflito do Rocha vinha a correr chamá-lo sempre gaguejando e o meu Pai continuava indiferente, até que a mulher ou a filha descobriam que afinal o pagamento estava feito, mas o bom do Rocha ficava sempre arreliadíssimo.
25 – O Anselmo da Farmácia
O farmacêutico da Arrentela era uma figura ímpar, muito absorto nos seus pensamentos, mas sempre disponível, cordato, simpático e um muito bom profissional. Não só vendia os medicamentos como ele próprio os preparava, além de dar injeções a qualquer paciente com uma trivial maleita e sem dinheiro para ir ao médico, o nosso autodidata Anselmo, de imediato lhe vendia o medicamento apropriado.
Suponho que terá desenrascado muita gente nos vários reveses que a saúde ou alguns excessos ocasionam, graças à sua bonomia e boa disposição, um pouco contrariado pela figura austera da sua esposa Elvira que também atendia ao balcão da farmácia, frente ao chafariz e ao que parece se encarregava das finanças, sempre em baixa.
Fumava em excesso os famosos 20-20-20 sem filtro e por isso tinha os dedos da mão esquerda amarelos da nicotina, muitas vezes, fruto das agruras da vida.
Moravam para os lados do Cavadas e o Anselmo fazia o trajeto direito à Torre e depois caminhando para a Arrentela, passava em frente à minha casa nos prédios da fábrica da Lã.
Falava sozinho enquanto andava de forma trôpega, talvez pelo demasiado café que ingeria constantemente e lhe provocava farta flatulência.
Demos por ele várias vezes, passando e falando para si próprio, sempre dizendo mal à sua vida com uma expressão que ficou: – Para baixo? Mas muito mais para baixo!
Frase repetida sempre acompanhada da tal farta flatulência, da qual tenho a certeza que ele não se apercebia.
Ilustrativo da sua argúcia, é ainda um episódio de uma amiga da Dª Elvira, entrar na farmácia e perguntar ao Sr. Anselmo pela esposa.
“Espera um pouco que ela saiu, mas volta já”- retorquiu o Anselmo.
Assim fez a amiga da Dª Elvira, figura algo forte e muito típica na localidade, sentando-se numa linda cadeira de braços, feita em madeira nobre e que se encontrava logo à direita da porta de entrada.
Ao sentar-se, a amiga descuidou-se e deu um pum! De imediato remexendo-se na cadeira exclamou: -Ai, Sr. Anselmo, esta cadeira está tão velha, que já está a estalar e a partir-se.
Resposta imediata do nosso farmacêutico: “Claro, com um peido desses não hás-de partir a cadeira?”
26 – Iluminação artificial para treinos do ACA
Quando surgiu a moda dos jogos de futebol com iluminação artificial, todos os clubes mesmo os mais modestos, queriam ter tal solução, que lhe permitia fazer treinos durante a semana fora das horas de trabalho e, portanto, sem perdas de remuneração dos seus jogadores.
A solução mais económica obtida pelo Arrentela, foi a de todos os sócios possuidores de carro, fazerem o estacionamento numa barreira sobranceira ao campo que havia por trás da baliza norte e acendendo os faróis no máximo, permitiam a visibilidade suficiente para se julgar solução adequada.
Um tempo depois foi isto abandonado, claro.
Cada vez que me lembro do entusiasmo do meu pai por tal medida, ainda fico corado.
27 – Funeral do meu Avô António Biobó
Será altura de explicar porque havia a alcunha de Biobó, vinda do Pai do meu Avô.
Quando este bisavô andava na escola, isto cerca de 1870 e aprendia a juntar as primeiras letras para formar pequenas palavras, terá encontrado o B e o O e a necessidade de soletrar o B e O dando BÓ daí o conjunto de BeOBO, depois Biobó já pelos cáusticos colegas.
Esta expressão e alcunha tem quase 150 anos.
O funeral do meu Avô António é o primeiro momento triste da minha vida.
Apesar de eu já ter 20 anos e a sua morte ser algo que se previa, pois ele esteve entrevado na sua cama durante 18 meses, o momento da morte e todo o ritual que se seguiu é algo que não se deseja.
Recordo particularmente o mar de gente que se concentrou frente à nossa casa na Torre da Marinha.
Os seus dois filhos Fernando (meu Pai) e Antero (meu tio), nunca se deram entre si, apesar de trabalharem dezenas de anos, um junto do outro, num escritório de Lanifícios na Rua dos Fanqueiros. Não se falavam por razões que nunca ninguém me explicou, mas que eu deduzi mais tarde, que também tinham a ver comigo, pelo facto de o meu Avô me ter retido em sua casa desde o meu nascimento.
Depois as coisas foram em crescendo, com muitos comentários laterais em que toda a família queria opinar e o resultado foi que estive mais longe do meu Pai do que queria, mas ganhei uma ligação muito forte ao meu tio, como poucos terão, dado vivermos na mesma casa.
É a vida.
Face à grande ligação da minha família à Sociedade em que toda a gente esteve envolvida, quer como Diretores, quer como Músicos, os irmãos do meu Avô – Damião e José António, fizeram questão que o acompanhar no carro funerário onde já estava eu, o um Pai e o meu tio Antero e ainda o meu tio Henrique cunhado do meu Avô, mas igualmente muito amigo dele.
Seis pessoas vivas a chorar um morto num ambiente fortíssimo, um grande acompanhamento cá fora, incluindo como era tradição a Banda da Música fardada, mas sem instrumentos.
Quando passamos à porta Sociedade (exatamente ao lado da porta da casa onde eu nascera), o cortejo parou e os meus três tios fazem questão de forçar um abraço entre os filhos desavindos.
Muita pressão um grande desconforto entre o Meu Pai e o meu Tio, mas por fim lá se abraçaram e o cortejo seguiu.
Como é que os meus tios acreditaram que aquele gesto poderia simbolizar qualquer futura ligação mais cordata?
Claro que foi um ponto de conflito com um esforço absolutamente inglório e que até teve o efeito inverso do pretendido, como a vida imediata demonstrou.
Nunca me esquecerei daqueles momentos terríveis.
Resumi as contas todas do funeral, num pequeno mapa, dei uma cópia à minha Avó e outra a cada um dos filhos.
Era preciso andar em frente pois já estava desde Janeiro apurado para o serviço militar para onde fui no Janeiro seguinte.
Recordo-me de distribuir as cem gravatas que tinha pelos meus amigos, julgando que só iria usar o preto em sinal de luto para o resto dos meus dias.
28 – As histórias contados pelo Tio Henrique
O meu tio Henrique Maria de Almeida, irmão da minha Avó Etelvina, era um formidável contador de histórias de que todos os seus sobrinhos se lembram. Conseguia captar com grande precisão os dados de uma história, sabendo depois contá-la já com um especialíssimo toque pessoal com que adornava os factos.
Contava ele uma história complexa de um individuo de alcunha Chelas que na tropa era um grande vadio, depois preso e finalmente desterrado para a guerra em Africa. Dava todo o panorama da vida no quartel e na prisão pra além da vivência na zona de Chelas de onde aquele herói seria natural com uma família de gente de baixo porte.
Como sabia ele aquela história se nunca fora à tropa?
Tinha sido o Augusto, filho do Chico das Judias que lha contara e ele a apresentava com todo o encanto. Fantástico.
Mas as histórias que aqui quero retratar, são as que ele contava da Hermínia (Cadela) e da Maria Barriguinha.
A pobre Hermínia era uma mulher no fim (ou abaixo) da escala social possível.
Mãe de vários filhos quase um de cada pai, vivia num casebre ali para os lados do Matadouro sem quaisquer condições para um conjunto de 5 ou 6 pessoas. Sempre descalça, as roupas que usava eram-lhe dadas e uma vez no corpo, ali ficavam até nova oferta, sem verem sabão.
A ausência de juízo e de sabão, era fortemente compensada pelo vinho que obviamente (também) a degradava bastante. E aquela gente vivia da esmola alheia e do que a recolha de mariscos na sua apanha diária na maré, podia oferecer.
Quando estava sóbria a Hermínia dava ares de dona de casa normal.
Contava então o tio Henrique que logo a seguir à Guerra, ela recebia as senhas de racionamento, para poder comprar os bens essenciais. Ficava na fila aguardando a vez de ser atendida e quando chegava a sua vez, como não tinha dinheiro, dava lugar ao seguinte, sempre argumentando que era de facto a sua vez, mas como não queria nada, podiam atender o cliente seguinte.
Comentava ainda que lhe fazia confusão como é que as mulheres da Arrentela se queixavam de não terem direito a mais sabão, dado que a ela o sabão lhe chegava e sobrava. Estamos a ver porquê, claro.
Não resisto a contar a última ainda que um pouco inadequada a estas recordações.
Contava ela que uma noite no casebre em que habitava com os vários filhos, o Zé o mais velho, tinha dado dois tremendos peidos e posto todos os irmãos a rir. Percebendo que havia contado algo inapropriado, emendou logo a seguir, dizendo que o Zé fizera aquilo, mas com o máximo respeito.
Passando à excelente Maria Barriguinha, figura única e vivíssima, num tempo cinzento e de águas paradas, esta prima afastada do meu Avô, era para o tio Henrique, o seu trompete.
Numa orquestra imaginária aquele instrumento tinha para ele uma importância grande, tal como a Maria que se destacava sempre por ser a primeira pessoa a dar fé de tudo o que a rodeava e com grande poder de comunicação, ia dando conhecimento a toda a gente das poucas novidades que ocorriam. Era muito boa pessoa, não dizia mal de ninguém, apesar de estar sempre na rua para a sua prioritária e alta tarefa de comunicação.
De facto, como ela vivia perto da paragem e assim que as camionetas paravam, lá estava ela como verdadeira Relações Públicas a dar as boas vindas às pessoas que chegavam, divulgando como boa jornalista os últimos acontecimentos, e num subtil dar e receber, procurando identificar-se com as frescas novidades tipo “on line”. Antecipando ao tempo atual, podemos defini-la como uma verdadeira 3 em 1.
29 – Os sinos das quatro igrejas
Num tempo em que os ecos dos quatro sinos das igrejas se ouviam em todo o concelho, mercê das grandes quintas de cultivo e, portanto, com terrenos sem construção a facilitarem a propagação dos sons, os graúdos ensinavam-nos o seguinte diálogo entre os sinos.
Incomodado o de Paio Pires: -Tem lêndeas, tem lêndeas!
Sugeria o do Seixal: -Mata-as, mata-as.
Perguntava o da Arrentela: -Com quê, com quê?
Fechava longamente o da Amora: -Com um pau, com um pau.
Grandes memórias as desse tempo, em que tudo dava para brincar.
Vejo no rosto dos mais velhos (de agora) o sorriso desta e de outras recordações aqui escritas.
Só sei que as minhas netas adoram esta história e outras que lhes vou passando.
-xXx-
Termino com uma palavra de agradecimento ao meu amigo Humberto Bandeira, que reviu os textos com a sua própria vivência da época.
Escrito em 2013 – por MFAleixo