A Promessa

O gamo corre veloz dando grandes saltos na erva do prado, junto à orla do pinhal.

A quietude da manhã só foi quebrada pelos gritos alegres de homens excitados e pelo som abafado das patas de cavalos, que num tropel, galopam nervosos no encalço do antílope, sobre o manto das agulhas de pinheiros que cobrem o chão.

Os raios de sol cintilam nas gotículas do orvalho que ainda molham as folhas verdes e as flores que despontam, aqui e ali, colorindo a campina no início da Primavera.

D. Fernão Gedeão, filho primogénito de D. Egas de Sousa e de Dona Leonor de Baião é um jovem fogoso, profundamente religioso e, como é próprio da sua idade e do meio em que nasceu, é bravo e destemido.  

A sua ainda curta vida de cavaleiro já está recheada de actos de coragem e bravura protagonizados nas constantes incursões guerreiras que faz contra os muçulmanos nas terras da planície para lá do rio Tejo.

Seu pai, D. Egas, foi nomeado fronteiro-mor por D. Afonso Henriques e como tal tem a obrigação de preservar os novos territórios conquistados, bem como a de combater os infiéis que ainda ocupam toda aquela região do sul. Não faltam por isso oportunidades para Fernão mostrar o seu valor e a sua bravura.

Hoje, a sua preocupação é com aquele veado ágil de pêlo luzidio. Quer ser ele a matar o animal e não um dos seus três companheiros de caçada que lhe disputam o troféu.

Descobriram-no no interior do bosque, a pastar entre os pinheiros, mas o animal, sempre alerta, esquiva-se rápido por entre as árvores e ao primeiro sinal de perigo foge para a campina.

Os quatro cavalgam alegres no seu encalço quando, do lado do nascente, vêem aproximar-se a toda a brida um grupo de homens a cavalo. Devem ser uns trinta guerreiros que portam flamejantes estandartes vermelhos onde ondula o odiado Crescente, símbolo dos seguidores de Mafoma.

Fernão que, seguia na frente, estacou o cavalo, logo seguido pelos seus companheiros, ao ver os guerreiros mouros que avançavam velozmente na sua direcção.

Num ápice, verificaram que lhes restava apenas como opção procurar refúgio no bosque ou enfrentar os inimigos.

Com a impulsividade da sua juventude, optaram por lutar. Desembainharam as suas espadas e aos gritos de Por Cristo e Por São Tiago, investiram contra os muçulmanos.

O embate foi brutal. Os gritos de incitamento e o choque das armas ouviram-se por toda a extensão do prado. Os cristãos não só eram em número muito inferior como estavam insuficientemente armados, mas os golpes que desferiam abriam clareiras no grupo infiel. As pesadas espadas volteavam no ar sem descanso e derrubavam muitos guerreiros mouros.      

O chão, ao fim de alguns minutos, ficou coberto de corpos de guerreiros, feridos e mortos. Dois deles eram cristãos.

Fernão e um outro companheiro lutavam, costas com costas, e procuravam resistir até ao limite das suas forças, mas o combate era muito desigual. O braço esquerdo de Fernão foi-lhe decepado junto do cotovelo por um golpe desferido de lado. No ardor da luta não sentiu a dor, mas o sangue jorrava ininterruptamente sobre a relva, manchando-a de vermelho, e ele começou a desfalecer. O seu companheiro, momentos após, tombou do cavalo depois de ter sido trespassado por uma lança.

Agora estava só e ferido a lutar contra tantos inimigos. Restava-lhe apenas morrer pela Cruz, mas antes iria mandar mais alguns infiéis para as profundezas do inferno.

– Por Cristo lutarei e que São Tiago me ajude!

Esporeou o cavalo com violência e mais uma vez avançou contra os mouros. Estes, tomados de surpresa não reagiram e Fernão, quase moribundo, conseguiu romper o círculo de morte que o rodeava e cavalgar em disparada pela campina.

O animal, tomou o freio nos dentes e partiu numa cavalgada cega através dos campos sem que os mouros o perseguissem.

D. Fernão, esvaído em sangue, manteve-se inconsciente sobre a sela até que o cavalo, depois de muito galopar, parou, fazendo com que o cavaleiro caísse na relva junto a um regato.

A queda do cavalo reanimou-o. Arrastou-se para a água e bebeu-a sofregamente. As dores que sentia no braço eram terríveis. Com a correia que sustentava a bainha da espada improvisou um garrote, que enrolou no coto do braço amputado, conseguindo assim estancar o sangue.

 Estava terrivelmente debilitado não só pela perda do braço mas também devido a inúmeros ferimentos espalhados pelo corpo todo, embora, milagrosamente, estivesse vivo. Voltou a perder a consciência e só a recobrou quando sentiu que alguém lhe passava um unguento nos ferimentos.

Era uma mulher velha de cabelos desgrenhados que o tratava com ervas apanhadas no mato. Vivia sozinha numa choupana ali perto do regato e falava coisas incompreensíveis enquanto lhe aplicava os emplastros.

Ao fim de três dias, tão bruscamente como tinha aparecido, a velha disse-lhe:           

– O seu braço já está sarado. Agora vá a Compostela e agradeça a Sant’iago a graça que ele lhe concedeu. Vá como um peregrino, desprovido de todas as riquezas. Leve consigo somente um cajado, uma vieira, uma cabaça com água e muita fé!

D. Fernão olhava atónito para a mulher andrajosa que o fitava com uns olhinhos simultaneamente inexpressivos e misteriosos. O braço já não lhe doía e os olhos da velha intimavam-no a sair do casebre. O cavaleiro num gesto de fervor, ajoelhou-se e orou.

– Pelas Sagradas Chagas de Cristo prometo partir já em peregrinação enfrentando todos os perigos e privações para agradecer a Sant’iago a minha salvação.

Desajeitadamente, devido à falta da mão esquerda, montou no cavalo e partiu a galope pela campina, sem agradecer e sem olhar para trás.

Pelo caminho as palavras da velha continuavam a martelar-lhe na cabeça. – Vá a Compostela e agradeça a Sant’iago.

Atravessou o rio e dirigiu-se a Santarém, alcáçova defensiva moura, que o seu pai, como cavaleiro de D. Afonso, tinha ajudado a conquistar há apenas quinze anos, quando ele era ainda um menino.

Na cidade muralhada e debruçada sobre a campina deixou o cavalo e vestiu o traje de peregrino. 

Muitos cavaleiros já tinham feito antes esta peregrinação. Para ele era a primeira vez! Iria fazê-la de acordo com as orientações da velha, isto é, sozinho e desprovido de tudo.

Percorrendo a antiga estrada romana passou por Tomar, Montemor-o-Velho, Coimbra, Aveiro, Porto e Braga.

Foram muitos dias e muitas noites de provação e esforço. As albergarias e as pousadas nem sempre estavam à mão quando o corpo cansado mais precisava e a solução era deitar-se sob a copa de alguma árvore e refrescar os pés doloridos nalgum riacho.

A fome também foi uma companheira constante em toda a viagem. Muitos foram os dias em que se alimentou apenas com algum pedaço de pão preto, que alguma alma caridosa lhe dava pelo caminho e água.

Nos conventos e mosteiros por onde passou foi sempre bem acolhido, pois os monges, depois de ouvirem a sua narrativa, condoíam-se e reconheciam a força da sua fé bem como a intervenção de Sant’iago na sua livrança da morte.

Os perigos da viagem eram imensos. Em Falperra foi assaltado por um bando de malfeitores que o espancaram enquanto troçavam dele pela falta do braço.

Foi salvo e tratado pelos Falperristas, que era um grupo que combatia os assaltantes de estrada em defesa dos peregrinos.

Na Catedral de Santa Maria, em Braga, rezou fervorosamente invocando o patrocínio do santo para o livrar de todos os males, para que pudesse chegar a Compostela e cumprir a sua promessa. Para uma viagem tão longa, tinha ainda muito que caminhar até lá chegar.

Com a cabaça cheia de água, o seu cajado e um pão que os monges lhe deram no convento onde pernoitou, pôs-se mais uma vez a caminho.

O calor do verão começava a fazer-se sentir com intensidade e os seus pés estavam em chaga devido a tanto caminhar. Mas a sua determinação de chegar a Compostela e cumprir a promessa era inabalável. 

Naquela manhã, ao alvorecer, saiu de Braga em direcção a Freiriz. Eram duas léguas e meia de caminho. Pernoitaria lá e depois seguiria para Ponte de Lima.

O dia amanheceu quente e radioso. Os pássaros volteavam sobre a sua cabeça em alegres chilreios. Toda a exuberância da natureza naquela linda região transmitia-lhe uma sensação de alegria.

Estugou o passo e ainda na parte da manhã atravessou o rio Cávado a vau. Anoitecia já quando parou para descansar. Deixara Freiriz para trás e caminhara ainda mais até às margens de um ribeiro.

Passou por Ponte de Lima e atingiu Romarigães onde, na sua igreja românica, orou e descansou.

Por atalhos e veredas, chegou a Arcos de Valdevez e trepou a serra, passando por Suajo e Peneda.

Dois dias mais tarde passava o rio Minho e chegava a Tuy. Nesta cidade de granito negro e com o morro coroado pela sua catedral ainda em construção, mais uma vez, o peregrino descansou e rezou.

A sua peregrinação vai levá-lo, quase sem descanso, até Vigo, Redondela, onde se recolheu em oração na igreja de Santiago, Rianxo e Padrón.

Aqui começa a sentir que pisa chão sagrado. Esquece-se do cansaço, da fome e das desventuras de tão longa viagem. Tem como único objectivo visitar a igreja de Santiago e prostrar-se junto à ara romana onde foi depositado o corpo degolado do apóstolo, na sua última viagem vindo da Terra Santa.

   Beija a pedra fria com emoção e fervor e imagina nela os contornos do corpo deitado do santo. A sua peregrinação está agora prestes a atingir a fase derradeira. Sem dormir e sem comer, bebendo somente água, avança pelo caminho que o leva ao seu destino.

Santiago aparece, por fim, aos olhos fervorosos de D. Fernão. Escuta o tanger alegre dos bronzes de Compostela e é avassalado por um frémito de comoção.

Caminha pelas ruas estreitas em direcção à catedral, na Praça do Obradoiro.

Na sua frente ergue-se, majestática, a bela obra românica! D. Fernão sente as pernas tremerem-lhe. Benze-se e eivado por grande devoção, rasga e tira as vestes de peregrino. Debaixo delas aparece resplandecente o seu trajo de cavaleiro, ostentando no peito e nas costas a Cruz de Sant’iago.

Penetra no templo sob a nuvem de incenso espargida pelo enorme Botafumeiro, pendente do tecto no meio da catedral, perfumando de incenso todo o espaço e balançando de ponta a ponta da nave principal.

D. Fernão aproxima-se solene da tribuna de Sant’iago. Sobe as escadas e beija a relíquia do Santo, agradecendo-lhe a graça recebida e por deixá-lo viver este momento grandioso.

Desembainha a sua espada, segura-a pela lâmina como se fosse uma cruz, ajoelha-se sobre o chão frio da catedral e fervoroso, faz D. Fernão Gedeão a seguinte promessa:

– Sant’iago!

A minha vida estava perdida naquela refrega contra os muçulmanos. Os meus companheiros sucumbiram um a um. Restei apenas eu, mutilado e já moribundo. Ainda me recordo de ter gritado o nome de Cristo e o de Sant’iago, quando o meu fim estava iminente.

Acordei, mais tarde, sendo socorrido por uma velha que em poucos dias me curou com ervas e rezas estranhas e me mandou vir aqui agradecer a minha salvação. 

Sei que foi um milagre que me salvou, por isso aqui estou.

Pela Cruz de Cristo prometo dedicar o resto da minha vida à difusão do Cristianismo e à luta contra os infiéis. A velha disse-me para me despojar de tudo mas eu quis trazer a minha espada para a colocar às Tuas ordens se for essa a Tua vontade.

Vou ingressar já na Ordem de Sant’iago na defesa dos Teus sagrados princípios e manterei sempre uma conduta moral irrepreensível, abdicando para sempre de quaisquer bens materiais de minha propriedade que doarei àquela Ordem.

Ámen.

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