Dois Amigos

Era um belo fim de tarde em Lisboa.

Sentados numa esplanada, sob a copa de uma árvore frondosa, dois homens conversam acaloradamente. É uma troca de pontos de vista opostos, amável, mas frontal. Cada um deles quer impor a sua “verdade” elevando a voz. Os clientes das mesas vizinhas não se espantam, porque falar alto em público é tão natural, entre os latinos, como respirar.

Apesar do calor da discussão, não há qualquer tipo de animosidade entre ambos. Apenas se notam, de vez em quando, vagas sombras de incredulidade no olhar de um, com as palavras que ouve do outro.

Mas é sempre assim!

– Não temos qualquer razão para duvidar de que vivemos num autêntico estado democrático. Existe liberdade de expressão, escolhemos os nossos dirigen­tes através do voto em eleições livres e o nosso país, como é evidente, não é um estado policial. – Dizia um.

– Companheiro, não concordo nada contigo. – Respondia-lhe o outro. – Nós não vive­mos em demo­cra­cia e, no meu entender, nem perto disso. 

Como sabes, a democracia é “o governo do povo”, e pelo povo, porém não é isso o que acontece no nosso país. Temos uma elite política que se assentou no poder através de leis que ela própria estabeleceu em bene­fício próprio sendo, por isso, evidente que a apre­goada liberdade de voto é uma falácia.

E digo-te mais: o povo é enganado sob a capa da democracia repre­senta­tiva. Os candidatos são escolhi­dos pelo aparelho dos partidos e os eleitores, convenci­dos de que estão a exercer o livre exer­cício de escolha, nem imaginam que estão apenas a obedecer “à voz do seu dono”.    

 Esta metáfora justifica-se pelo comportamento franco, simples e vigilante do cão, que não tem vontade própria, tem apenas instinto, e que obedece sempre, incondicionalmente, ao dono. Tal como o cão, os eleito­res obedecem aos partidos políticos com que se identificam e, servil­mente, abdicam da sua própria liberdade.

Se pensares bem, verás que este comportamento não é democrático pois, na realidade, o povo não governa nem manda nada, logo a palavra democracia não devia ser aplicada, por ser inadequada.

Quanto à liberdade de expressão, volto a pensar no cão que pode correr ao longo de um arame, mas continua preso por uma corrente. Isto é, somos livres de dizer apenas o que nos permitem falar. Podemos ter conversas livres como esta, mas não nos é dado o acesso aos meios de comuni­cação que, como sabes, são dominados pelos poderes econó­micos privados que impõem a sua orientação ideológica. Se forem públicos, a liberdade de expressão será a que o governo em exer­cício permite e mais uma vez o povo é ignorado e alienado do seu direito de se exprimir total e livre­mente.

 Dizes-me que não vivemos num estado policial. Concordo contigo. Na verdade, comparando a actuali­dade com o nosso passado recente é claro que podemos falar livremente sobre certos assuntos sem receio de sermos incomodados pelas auto­ri­dades. Contudo, é só uma parte da verdade. Existe hoje uma censura oficial e uma vigilância sobre todos os cidadãos, disfarçada sob a capa de uma liberdade aparente. Se reparares bem, ela é muito mais acutilante e eficaz do que era a anterior, porque permite aos interessados saber tudo sobre a nossa vida privada, como se fossemos trans­parentes. E nós, as vítimas dessa devassa, não sabemos quem é nem onde está o big brother que nos vigia. O nosso medo e impotência, tornaram-se, por isso, maiores. – Enquanto o amigo falava, o outro teve muitas vezes vontade de o interromper, mas o respeito que havia entre os dois impedia-o de o fazer. Por isso, aguardou que ele termi­nasse e só então falou:

– Tu e esse teu mau feitio de rejeitares tudo o que o governo faz! Até parece que achas possível a adminis­tração de um país sem governo e não vês que têm de ser dados passos graduais para alcançar o bem-estar geral. Vives tão obcecado a sonhar com um mundo utópico, onde possa imperar a igualdade e a justiça, que nem te preocupas com a realidade que te cerca.

Nunca reparaste que, ao longo da História, todas as sociedades tiveram sempre governantes, rei, chefe, imperador, líder ou o que lhes queiras chamar que, através da força, do carisma, da persuasão, do terror, da inteligên­cia, etc. aplicaram as suas ideias e vontades sobre os povos que governam.

Isto é um facto, não o podes negar.

Sei bem que todas as medidas que o governo está a aplicar, embora dolorosas para o povo, são necessárias pois, não só são uma correcção das políticas absoluta­mente loucas tomadas pelo governo anterior, como são a única alternativa possível para o caminho do pro­gresso que desejamos para o nosso país.

Porém, nunca ouvi uma única ideia ou sugestão, por parte da oposição, e da tua boca ainda menos, para reverter a difícil situação em que o último governo deixou o país, ou seja, pré-bancarrota e a precisar uma vez mais da interven­ção do FMI, devido às políticas despesistas que incons­cien­temente aplicou.

– Depois desse teu discurso tenho de beber mais uma cerveja, pois fiquei engasgado. – Atalhou o outro, com ironia.

Começo por te dizer uma frase feita que se aplica bem ao que acabas de dizer: “cego não é o que não vê, mas o que não quer ver”.

Como sabes, não tenho qualquer simpatia por partidos políticos e, particularmente, pelos que fazem parte do dito “arco da governação”. Por isso dou-me ao luxo de criticá-los com uma certa liberdade. 

Oferecem-te um mundo “risonho” repleto de futuras décadas de pobreza, desemprego, abaixamento do nível de vida geral, perda das conquistas alcançadas com a revolução de Abril, a venda criminosa para privados das nossas maiores empresas públicas, uma economia paralisada e sem forças para se reerguer e um endividamento colossal das futuras gerações, em troca de mais empréstimos para o pagamento de dívidas – que jamais poderemos pagar – aos credores internacio­nais, que mais não são que vampiros sedentos da rique­za do país e tu, tu meu amigo, aplaudes entusias­ti­camente.

Não te revolta ver os idosos sem assistência médica e com as reformas a serem constantemente diminuídas para patamares de miséria? Que as crianças deixem de ir à escola ou, quando vão, o façam pela triste refeição servida no refeitório? Que toda uma geração de homens e mulheres válidos viva no desespero de não conseguir alimentar os seus próprios filhos, por estar desempregada?

Aceitas que a juventude do nosso país não vislumbre a mínima réstia de luz que lhe permita trilhar o caminho do futuro e que seja forçada e instigada à emigração? Que os velhos sejam abandonados à sua sorte, sem dinheiro para pagar a uma instituição de apoio à terceira idade porque as suas reformas lhes foram roubadas ou porque os filhos não os conseguem socorrer? Que, num crescendo se fechem escolas, hospi­tais, esquadras de polícia, tribunais, maternida­des e outros serviços públicos? 

Não te revolta ver a casta de jovens delinquentes ambicio­sos que nos governa empobrecer todo um povo, atrasar de forma irremediável o desenvolvimento do país, vender ao desbarato todo o activo nacional, enquanto eles não abdicam de uma migalha de tudo o que nos usurpam de forma criminosa e que, ainda, despudo­radamente, enriqueçam?

No entanto, revoltas-te contra aqueles que não acre­ditam no determinismo, que nunca foram poder e nem sequer te de deram motivos para duvidar deles, que procuram um outro caminho como, por exemplo, tentar renegociar o modo de pagamento das dívidas. No entanto, passas o tempo a exigir que eles apresen­tem soluções. É estranho, não é?

Quanto a apontares-me o dedo por eu achar que era possível não termos governo, quero dizer-te que julgo isso perfeita­mente possível e que até o acho desejável. Jorge Luís Borges escreveu: ‘Creio que, com o tempo, mereceremos que não haja gover­nos’. – Era notório, que este último que falou era emotivo, vivia intensa­mente a discussão e defendia as suas opiniões com calor. O outro era um homem mais calmo, menos expansivo, mais pragmático, que gostava de sustentar o que dizia ou afirmava com dados estatísticos disponí­veis.

– Depois de ouvir esse teu longo e inflamado dis­curso chegou a minha vez de precisar de uma cerveja para te responder. – Acrescenta o outro. Considero muito a tua amizade e até me reconheço nalgumas coisas que dizes, porém, não deixo de ver em ti alguns defeitos, dos quais, o mais grave é o da crítica cons­tante sem, no entanto, apresentares qualquer solução ou sugestão.

Por exemplo, quando falas em crianças que não vão à escola omites, deliberadamente, que foi o esforço deste governo ao criar os agrupamentos escolares que permitiu que crianças de aldeias isoladas tivessem acesso à educação. Todos sabemos que é um sacrifício o seu afastamento do ambiente familiar, mas tens alguma ideia para o evitar ou minorar?

Outra coisa é a saúde pública. Criticaste, com a ligeireza que te é habitual, o encerramento de postos de saúde, maternidades, etc., mas nada disseste que, se tudo continuasse na mesma, os portugueses, a curto prazo, não teriam acesso à saúde, por absoluta falta de verbas para manter o Serviço a funcionar. Também, evidentemente, só por acaso, esqueceste de mencio­nar os inúmeros Centros de Saúde, Hospitais e Maternida­des que têm surgido nestes últimos anos.

Ainda quero repetir que todos os problemas existen­tes nas mais variadas áreas são fruto de uma política, absolutamente, disparatada e despesista levada a cabo pelo governo anterior. Com a sua insensibilidade levou-nos a viver acima das nossas possibilidades e a este estado caótico em que nos encontramos, cuja face mais visível foi o resgate, junto às instituições financei­ras internacionais, que estamos agora a pagar com língua de palmo. Também lhe devemos a entrada da ‘troika’ no país com todo o seu cortejo de sacrifícios impostos ao povo e que o actual governo está a resolver agora.

Seria bom que pensasses sobre isto e reconhecesses esta realidade, pois não estou a inventar nada. Entretanto, vou comer umas alcagoitas – como se diz lá na minha terra – e beber a minha cerveja, que já deve estar quente. Bem vejo, pelo tremor das tuas mãos, que ficaste perturbado e só o posso justificar com a falta de argumentos que deves ter para me rebater.

– É, companheiro, fiquei mesmo nervoso com essa argu­mentação e confesso que até esperei que te levantasses, que des­fraldasses a bandeira e que cantas­ses o hino! Não sei se recebes alguma avença do gove­r­no para o defenderes com tanta veemên­cia, se assim for, compreendo-te, caso contrá­rio, só posso lamentar a lavagem que te fizeram ao cérebro – ironizou o outro.

Já te disse que considero o facciosismo, seja em relação à religião, ao futebol, a certas organizações secretas, aos partidos políticos e aos governos, etc., como uma “peste” que ataca o povo e o impede de pen­sar. Quando defendemos, intransigente­mente, aquilo que consideramos como verdade estamos, segu­ra­mente, a errar, porque ninguém é dono da Verdade.

Vou responder a alguns dos teus argumentos, mas peço-te que faças o exercício de deixares de pensar em termos de partidos ou de governos, de direita ou de esquerda, e que te assumas como simples cidadão, em relação a tudo o que se fez, faz ou fará para o bem de todos os portugueses.

Começo pela escola, ou seja, pela instrução e educa­ção, que é por onde todas as coisas deveriam sempre começar:

Temos visto o encerramento de escolas por todo o país; o despedimento de milhares de professores; os curricula esvaziados e a aproximarem-se da total inutilidade; a degradação da qualidade do ensino e do equipamento escolar; o aviltamento da dignidade do professor, a quem tiraram toda a autoridade que um educador deve ter; e o aumento da carga horária para professores e alunos, como se nem uns nem outros tivessem mais vida para além da escola.

Quanto à saúde, a coisa é igualmente terrível ou ainda mais dramática: taxas moderadoras a aumentar sem parar; falta dinheiro à população para pagar medicamentos; espera de vários meses por consulta; enormes filas madrugadoras à porta dos Centros de Saúde; nos hospitais vêem-se macas pelos corredores, por falta de camas; os meios de comunicação noticiam regularmente o surgimento de novas epide­mias, que sabemos serem fabricadas pelos grandes laboratórios, e a falta de vacinas para as combater; os enfermeiros e médicos procuram trabalho nos hospi­tais privados em detrimento do serviço público, porque aí recebem salários ridículos.

Quanto à Justiça, basta ver o encerramento de Tribunais de proximidade e o deslocamento forçado dos interessados para resolver os seus problemas; os milhares de processos amontoa­dos provocam o descré­dito da população na justiça; a falta de funcionários para satisfazer as necessidades burocráticas; a corrup­ção generalizada; e o servilismo dos agentes judiciais perante os governos e partidos.

Quanto à Economia, só tenho a dizer que está totalmente dominada pela política financeira e que há uma promiscuidade indecente entre os governos e os negócios que, além de permitir a corrupção pode levar ainda a convulsões sociais num futuro próximo.

Já me alonguei demasiado, mas ainda te peço que me apontes um único sector da vida nacional que esteja realmente a funcionar bem.

– É difícil discutir contigo devido a esse radicalismo que te domina. Para ti, tudo ou quase tudo o que se faz neste país está errado, por isso, não adianta argumen­tar. Como acontece sempre, tu não cedes um milímetro na tua opinião, pelo que sugiro mudarmos de conversa.

– Tens razão! A falha é minha, porque a minha função de ‘catequizador’ tem sido um fiasco completo. Não consigo converter ninguém à ideia de que deve­mos lutar por um mundo melhor, sem opressores nem oprimidos, e que o desejo de uma sociedade de homens iguais deixe de ser uma utopia.

Apesar de não terem sequer chegado a um vislumbre de entendimento sobre qualquer dos seus pontos de vista, aqueles dois homens, entrados abertamente na velhice, mas irmanados por uma amizade sincera, saem da esplanada com uma mão sobre o ombro do outro, como dois colegiais.

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