Mário Bengala, a voz das terras

Mário Bengala tem 87 anos. Nasceu na Costa, tal como o seu pai e o seu avô. “Sou filho de algarvios e de ílhavos”, diz. O meu destino era o mar, mas por razões de família acabaei por ficar sempre ligado à terra”.

Conhece a Costa da Caparica por a ter percorrido a pé vezes sem conta. Conhece as suas gentes pelo nome, as suas famílias. Aponta para os prédios e faz transparecer outras dimensões antigas em que eram barracas ou medos, como nos melhores poemas de Pessoa. Mas vivos.

Emocionou-se por duas vezes até aos limites das lágrimas: “O que vai ser disto tudo? Como é que nos vamos amanhar, com o custo da eletricidade, do gasóleo… ” Acusa sem pudor o que chama de alcateia, “os lobos vorazes” e vai ensinando, aqui e ali, como proteger a terra da geada, como fazer o feijão crescer ou como irá plantar a aveia este ano.

“Tinha eu dois anos quando o mar bateu na rocha”, afirma. Na rocha? “Sim, na rocha, aqui, no largo, havia mais de dois metros de água, andavam os barcos grandes a remos a pescar gente. Muitos foram para a Vila Nova e nunca mais voltaram. Foi depois disso que se construiram as valas.”

Falámos também dos desafios da agricultura na Costa, e não só. “Toneladas, homem!” contrapõe quando falamos de venda na Costa da Caparica. “Ó homem, estas terras produzem que é um milagre, e se é boa a hortaliça daqui, não há melhor! Os grandes é que estrangulam tudo, exigem preços baixíssimos e pagam a mais de três meses. É quando lhes apetece!”, e adianta números: “vendi a cebola a 20 cêntimos o quilo! E pago a eletricidade como o senhor paga na sua casa, como é que posso? Só posso ligar um dos três motores para a rega”.

É um outro mundo que se abre perante nós, guiado pela firme memória de Mário Bengala, que nos leva pelos tempos e para outra  parte integrante da Costa da Caparica, num diálogo entre o mar e a terra, testemunho da passagem milenar da caça para a agricultura. Mesmo aqui tão perto, tão parte de nós. E no entanto, é como uma divisão da nossa casa cuja porta nunca abrimos.

“Eu sou um homem forte!” Afiança com toda a segurança. “A minha família… olhe, tinha um tio que esteve quatro meses à civil na tropa porque não conseguiam arranjar uniforme que chegasse. Tenho lá um poste de eletricidade, desses de betão, que pesam 300 e tal quilos, e fui eu que o carreguei”. Respirou e olhou-me, continuou: “ali no largo, antigamente era um  jardim de eucaliptos, estavam lá sempre os valentões, prontos a jogar ao sopapo, mas comigo… olá!” Olha para mim como quem mede e suspira, “o senhor sabe lá, ia daqui à Praça da Figueira a pé, ouviu bem, a pé!” Pela estrada? Perguntei incrédulo, “qual estrada homem, ainda não havia estrada nenhuma, era tudo areia, do Cai bem Por aí fora!”

Explica depois que o Cai Bem era uma taberna no fim da Rua dos Pescadores, onde depois foi o Papo Seco e agora está um prédio com a cerâmica do Cargaleiro. “O Cai Bem”, repete com os olhos do passado, “eles tinham lá uma guitarra e um acordeão para quem quisesse tocar… uma vez foram 8 dias e 8 noites sem parar… o Cai Bem…”

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