Mulher com Lágrimas

RETRATO DE MULHER COM LÁGRIMAS

Sobre a mesa repousavam um copo e as minhas duas mãos, apáticas e carentes. Nada mais.

Era uma mesa de bar antiga, com mármore no tampo redondo. Tão redondo como um olho, o olho do furacão, ou a tenebrosa cratera de um vulcão. Até ali se podia ver a manifestação da eterna e persistente ambiguidade: o olho carregava-me no seu turbilhão ascen­dente, a negra bocarra escancarada arrastava-me, irre­sis­tivel­mente, para as suas profundezas abissais.

Inconscientemente, o meu olhar perde-se, nos reflexos dou­rados da cerveja que, de tão fria, me gela o pensamento. E eu sinto-me só, amargamente só, pois sei que é uma ilusão pensar que estou acompanhado por mim mesmo.

Aquela mesa de tampo metafórico é o meu exclusivo imago mundi, uma cosmogonia própria, estéril e profana. À minha volta nada há. A mesa é uma ilha.

Penso a solidão. Sortilégio amargo, viajante ou demónio das longas noites que, entretanto, se insinua nas restantes horas do dia, vitoriosamente omnipotente e omnipresente.

Penso as palavras. Expressões vocais que não alcançam a condição de som e que se emudecem na garganta. São palavras inúteis, sem música, sem eco, sem o colo de um ouvido onde se aninhem. Sinto-as deambular, perdidas, entre o pensa­mento e a minha boca fechada, procurando, quase que alucinadas, um ouvinte imaginário.

Penso o riso. Com um formidável esforço da vontade exijo que a memória me traga farrapos dos meus risos juvenis que ressoavam nos longes dourados das tardes antigas. Oh desilusão! Aquele não sou eu. Não posso ser eu, não reconheço em mim aquela jovialidade.

Ela aproxima-se com timidez. Pede para se sentar e para beber uma cerveja comigo. Olho-a e reparo que ela também é uma ilha.

Depois, com uma tristeza infinita, ela começa a construir uma ponte entre as nossas duas ilhas, simultaneamente, tão próximas e tão afastadas.

E, com voz sofrida e meiga, fala-me de dor, de desilusão, de desencontros, de solidão. Reconheço-a, por inteiro, no seu discurso, que também é o meu indizível discurso.

Reparo que ambos somos náufragos do mesmo naufrágio e que ambos sobrevivemos – que sei eu? – agarrados a frágeis tábuas que as correntes da vida arrastaram para ilhas perdidas na imensidão.

Sobre o tampo redondo da mesa do bar, as nossas mãos tocam-se num gesto de súplica, numa secreta mímica de incomunicáveis ternuras.

Nada consigo dizer, mas vejo que no seu rosto se desenha um suave sorriso e que nos seus olhos bruxuleiam os cristais de duas lágrimas quentes.

One thought on “Mulher com Lágrimas

  • 28 de Abril, 2018 at 19:02
    Permalink

    Tanto sentimento amigo e companheiro.

    Reply

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Pin It on Pinterest