O Desaparecimento dos Mundos

No princípio, a curiosidade e o desejo de aventura alimentavam-lhe os sonhos adolescentes.

Digladiavam-se no tumulto dos seus pensamentos, um receio envergonhado assente numa excessiva humildade aldeã e a impetuosa curiosidade de descoberta de novos horizontes, a que ele, tal como os mareantes dos anos de quinhentos, chamava de ‘novos mundos’.   

Simultaneamente, cresciam dentro de si num surpreendente movimento caótico, as raízes de uma incipiente ideologia, uma insaciável fome de cultura, um inexplicá­vel desprendimento material aliado a um certo sentido de justiça, o desejo de conhecer outros povos, outras realidades, bem como, uma enorme capacidade de sonhar. Para que tudo isso se pudesse concretizar, ele convenceu-se de que necessitava de outros ares, de uma nova luz, de mais liberdade, e de uma outra alegria que não sabia explicar.

Foi, pois, como um navegante dos tempos antigos, que ele rumou para o mundo insuspeito levando na mala apenas estes desejos.

Começou essa viagem, naturalmente, pelo país que confinava com o seu. Os dois eram países muito pobres, ambos afundados na miséria e governados por ditadores. No entanto, a realidade do outro lado da fronteira mostrou-lhe que havia diferenças enormes entre os dois e que a menor delas estava nas línguas faladas, aliás, nascidas da mesma raiz.

Depois foi mais para Norte e descobriu lugares onde a arte, a cultura, o desenvolvimento e o civismo, de tão estranhos, lhe pareciam coisas de ficção. Foi aí que aprendeu os conceitos de liberdade, de ideal, de democracia e onde, até, aprendeu a amar.

Porém, o destino, guardião dos segredos do futuro, reservava-lhe uma surpresa que iria alterar o curso da sua vida, onde se incluíam os seus próprios sentimentos.

Ele vivia, então, os últimos anos da adolescência quando foi enviado para uma das várias colónias que o seu país dominava e que lutava para alcançar a liberdade e a independência.

A passagem pelas imaginárias e infalíveis linhas equatoriais, viria a revelar-lhe o continente negro, que sempre o tinha fascinado através das suas leituras. Essa revelação deu-se de um modo, que ele considerou como mágico, ou antes, como um encantamento. O calor tropical, o esplendor dos crepúsculos, o cheiro da terra, a simplicidade das gentes, o pulsar da vida, o halo espiritual, eram uma simbiose perfeita no cadinho telúrico da Mamã África.

Foi, com surpresa, que ele percebeu que aqueles eram os componentes da sua oculta metade africana, tão diferente e contrastante com a outra que tinha deixado para trás, material, curiosa, culta, moderna, europeia.

Nas cálidas atmosferas do céu africano ele respirou o feitiço que ali pairava e aquela antiga mandinga dominou-o fazendo-o percorrer, a partir de então, variados caminhos de África.

Aquele foi o tempo da realização do seu sonho. Os luminosos raios da felicidade brilhavam intensamente. Casou, teve filhos, estava na terra a que julgava pertencer e idealizou o futuro. A vida tranquila numa paisagem de vastos horizontes, alimentou-lhe o interrompido prazer da leitura permitindo-lhe elevar os pensamentos a níveis jamais imaginados. No silêncio introspectivo das longas noites, propício à reflexão, ele sentiu que os rudimentos de uma filosofia incipiente começavam a chegar-lhe ao espírito e, sem disso se aperce­ber, e até com alguma surpresa, reconheceu que a utopia, a igualdade universal e a Natureza eram a sua verdadeira religião.      

Podia dizer que era feliz!

Entretanto, as circunstâncias que giravam na roda da vida, iam moldando o presente e definindo o futuro sempre imprevisível.

 As antigas colónias tinham, finalmente, conquistado a independência dese­jada e merecida, quando, subitamente, ventos loucos surgidos dos quadrantes obscuros da intolerância humana voltaram a soprar furiosos sobre as savanas e cidades. E ele foi apanhado no seu turbilhão.  

Com o coração destroçado e a tristeza na alma foi forçado a abandonar África, a terra que tanto amava. As suas leituras tinham-lhe mostrado que o original continente Pangeia, nas convulsões do crescimento do planeta Terra, tinha-se fragmentado e que o grande oceano Atlântico se tinha interposto entre a África e o subcontinente sul-americano. Sem qualquer projecto de futuro, ele limitou-se a pensar que do outro lado do mar iria encontrar a outra metade de África.

O antigo espírito aventureiro voltou a manifestar-se, e ele atravessou o oceano para se radicar na outra margem longínqua.

 Passou anos a tentar encontrar África ali, mas, além de algumas mani­fes­tações culturais trazidas pelos antigos escravos e já enraizadas nos costumes locais, nada mais viu que lhe fizesse lembrar a distante e autêntica metade africana.

O tempo, no seu lento deslizar, tinha-o aproximado da velhice, os seus cabelos ficaram grisalhos, o corpo perdeu o vigor, mas a saudade de África manteve-se inalterável.

 Com o respeito de quem cumpre uma promessa, um dia ele voltou à terra onde tinha sido feliz. A ansiedade dominava-o. Quis sentir os cheiros, ouvir os sons, partilhar a amizade das gentes e sentir de novo o pulsar da terra africana.

O seu espanto não podia ser maior. As recordações que acalentou na memória não se espelhavam na realidade que via. Nada poderia estar mais distante do passado.

Os seus mundos tinham desaparecido!

Reinaldo Ribeiro – 9 de Fevereiro de 2020

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