O Espetáculo

A ovação retumbante ecoa como uma vaga de fundo naquela imensa e luxuosa sala de espectáculos, cujo tecto tem desenhado o mapa do mundo.

São os aplausos sinceros e esfuziantes, da selecta plateia de representan­tes de dignas e respeitáveis organizações mundiais.

Este ilustre público ostenta sobre o peito, como se fossem condecorações de tempos passa­dos, crachás identificado­res das organizações a que pertencem ou dos países que representam, e as siglas são múltiplas: FMI, EU, OCDE, ONU e tantas, tantas outras. Estão orgulhosos de mostrá-las, afinal, eles sa­bem que são os eleitos, a elite do mundo.

Todos aplaudem de pé, naturalmente aplaudem uma cena do espectáculo, modesta no contexto global da peça, mas incon­cebivelmente bem representada.

Os actores, com uma humildade forçada, agradecem. Um deles, comovido, reco­nhe­ceria mais tarde que ficou com “um aperto no coração” por ter incorporado tão veemen­temente o papel de rei que foi forçado a sacrificar muitos dos seus súbditos para salvar o reino. Um outro, que desempenhou o papel do tesoureiro da corte, afiançaria que passou algumas noites sem dormir, porque tinha de explicar ao povo as severas medidas decididas pelo monarca. – Foram grandes actores a viver intensa­mente os papéis que desempenharam.

À saída do teatro, a felicidade estampa-se nos semblantes dos espectadores, e os seus olhos sorriem de prazer, enquanto se diri­gem para as reluzentes viaturas que os aguardam.

Mas que peça é esta que tanto agradou?

É uma história banal, antiga, inalterável ao longo dos séculos. É a história de um governante que se impõe ao seu povo como um pai, um amigo. É idolatrado, porque de tempos a tempos organiza arraiais e festas populares e distribui alguns animais da sua propriedade e suficientes barris de vinho das suas adegas ao povo. Nesses dias, todos se divertem, todos comem e todos bebem, como se a sua vida fosse uma festa. Contudo, sob a capa de benemérito, o rei aproveita-se do reconhecimento dos humil­des e impõe-lhe sacrifícios cada vez maiores. Inexplicavelmente, o povo continua a adorá-lo.

A cena que tanto agrado provocou, mostra o governante numa das varandas do palácio, acompanhado da sua faustosa corte, falando ao povo. Entre os contínuos louvores e os gritos de exaltação, mal se ouvem as suas palavras, que diz:

“Meu povo, comei e bebei, a festa é vossa. Sabeis que vos adoro como se fosseis meus filhos, e sei que sois vós a força e a riqueza deste reino. Se não vos dou mais, é porque nada mais tenho para vos dar.

Como sabeis a última guerra que travámos com os nossos inimigos, custou-nos imensas vidas e exauriu completamente os nossos cofres. Agora, passado tão pouco tempo, voltámos a ter os nossos castelos ameaçados e temos de nos defender. Precisamos de fazer armas, e de encher os nossos celeiros para sermos fortes. É preciso que todos se sacrifi­quem e que contri­buam com tudo o que puderem e tiverem, seja em armas, animais, colheitas, homens, e anéis (sabeis bem que é preferível perder um anel para uma boa causa, que perder um dedo!). Como este é um momento particularmente difícil, todos terão de colaborar. Aqueles que se recusarem serão severamente punidos pela minha guarda, e eu não quero que os meus filhos sofram, por isso sei que todos se despojarão de boa e livre vontade dos bens que possuam para ajudar o reino em perigo.

Nada mais vos peço. Agora divirtam-se, meus filhos, cantem, dancem, comam e bebam e amanhã cedo ireis encher os nossos cofres com a vossa generosidade.”

Aquele público distinto e rico, adorou o espectáculo. Porquê? Porque a peça representava, na perfeição, a vida real. Era o domínio da opulência sobre os despojados, através da persuasão, da força e da mentira. Aquela era a única forma de solucionar os problemas do reino e de lidar com o povo. Afinal, todos eles tinham lido O Príncipe de Maquiavel.

Na rua, junto às escadas do Teatro, o povo anónimo, mos­trava o rosto sofrido do desânimo e do conformismo. Ninguém tinha visto a representação da peça. Mas conheciam-na bem. Todos eles, na verdade, eram os protagonistas do teatro da vida real onde também eram explorados, enganados e humilhados. E, tal como na peça, o seu governante também lhes dava, de quando em quando, um arraial para se divertirem.

Reinaldo Ribeiro – 30/10/2010

One thought on “O Espetáculo

  • 21 de Maio, 2019 at 18:33
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    O teatro da Vida é na verdade bem duro para tanta gente, por todo o Mundo fora…

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