Património Abandonado

Torre de São Sebastião: Património histórico ao abandono

De braços abertos para o Tejo e Lisboa, o Cristo Rei saúda quem chega à cidade de Almada via ponte 25 de Abril. Inaugurado em 1959, e construído como agradecimento por Portugal não ter entrado na II Guerra Mundial, é um dos principais monumentos nacionais. O que a maior parte dos moradores desconhece é que existe um outro monumento considerado património nacional no concelho, a Torre de São Sebastião, no Porto Brandão, na freguesia da Caparica.

A praia, na zona lateral poente, é agora ocupada por depósitos de combustível, o que acaba por ter um impacto ambiental e estrutural prejudicial para a Torre. No entanto, a vista privilegiada sobre o rio Tejo e a natureza envolvente aliadas ao factor histórico são motivos suficientes para despertar alguma curiosidade acerca deste local. Ainda assim, não deixa de ser estranho como  passa despercebido a tanta gente, mesmo aos residentes do concelho.

A Torre de S. Sebastião, também designada Fortaleza da Torre Velha, foi classificada como monumento nacional a 29 de Maio de 2012, através do Decreto n.º 11/2012 de 29 de Maio, da Presidência do Conselho de Ministros, publicado em Diário da República.

Destacamos um excerto desse documento, como ponto de partida, “A proteção e salvaguarda da Fortaleza, através da classificação, favorecem o seu usufruto pela população, porquanto possui um elevado potencial do ponto de vista monumental e patrimonial, determinando que a área onde se localiza venha a tornar-se, cada vez mais, uma zona de valorização patrimonial.”

Posto isto seria de esperar que, sendo património nacional, fosse público, e que quem tivesse interesse em visitar o monumento o pudesse fazer livremente. No entanto, tal não é possível por duas razões: a falta de informação sobre a entidade responsável pelo monumento e o elevado estado de degradação em que a Torre se encontra atualmente.

 

Terra de ninguém?

O que devia ser uma reportagem a um monumento de interesse local transformou-se numa investigação jornalística à terra de ninguém. E esse descuido/negligência pelo que é nosso, pelo que é nacional, parece ser tão relevante como a impossível visita, pelo que que faria todo o sentido abordar o tema, ainda assim.

 

O Notícias da Gandaia contactou a Direção Geral de Património Cultural (DGPC), que informou que a entidade responsável pelos proprietários de imóveis, classificados ou não, públicos ou privados, é a Direção-Geral do Tesouro e Finanças. Na tentativa de chegar à actual proprietária da Torre de São Sebastião, contactámos esta última, de quem, até ao momento de fecho desta edição, não obtivemos qualquer resposta.

A Estamo, Participações Imobiliárias, S.A., também foi apontada como possível proprietária da Torre, no entanto nada tem a ver com este património, conforme nos esclareceu. Segundo fonte da Estamo, “o imóvel foi vendido em Outubro de 2010, à Diraniproject V – Projectos Imobiliários, SA. O que foi transmitido pelo Estado à Estamo e por esta revendido foi um imóvel contíguo à mencionada Torre de São Sebastião e denominado de Lazareto. A dita Torre de São Sebastião nunca foi vendida (ou revendida) à Estamo, devendo, provavelmente, continuar nas mãos do Estado.”

Segundo o Notícias da Gandaia apurou, a entidade responsável pela Torre de São Sebastião é actualmente a Administração do Porto de Lisboa (APL). Uma fonte da gestão dominial da APL, confirmou-nos que a Torre de São Sebastião se encontra supostamente na jurisdição do Porto de Lisboa. Este supostamente não é por acaso, foi assim mesmo que nos foi dito, pois parece que a situação não é tão objectiva quanto seria de esperar.

No entanto lamentamos para já não poder avançar com mais informação acerca deste património local, que parece destinado a sucumbir no tempo, perdendo-se assim a oportunidade de valorizar o seu tempo na história.

Na sequência da solicitação de uma declaração oficial do Porto de Lisboa acerca deste assunto, e após inúmeros contactos, e com a garantia que iriam encaminhar o nosso pedido, não nos foi dada uma resposta objetiva até ao fecho desta edição. Ficou assim por justificar o porquê da Torre de São Sebastião não poder ser visitada de momento e se está planeada alguma recuperação/reabilitação da mesma, para que no futuro possa vir a ser um local de interesse público.

Quando, em Janeiro de 2016, o Notícias da Gandaia teve acesso à Torre de São Sebastião, referiu “a aura de encanto e mistério que costuma caracterizar os lugares abandonados”, mas também já na altura terminou a reportagem com um alerta: “Na Torre de São Sebastião da Caparica, a história manifesta-se ao longo do tempo e em cada pormenor. Seria realmente um desperdício de potencial se deste património nada mais restar senão ruínas.”

Dois anos mais tarde, sem qualquer tipo de preservação deste património, com a vegetação a irromper selvagem no seu curso natural, o cenário parece ter piorado drasticamente, de tal forma que nos foi impossível aceder ao local em questão. A própria Administração do Porto de Lisboa, que não autorizou a visita a Torre, até justificou que numa visita recente ao local, um colega seu da Proteção Civil comentou: “eu punha o pé sem saber o que tinha por baixo”. O cenário fica à imaginação de cada um.

Património em causa

O que o futuro lhe reserva ainda é uma incógnita, mas a história que respira é incontornável. Considerada a mais antiga fortificação portuguesa destinada à defesa marítima, a Torre de São Sebastião, ou Fortaleza da Torre Velha, é uma das componentes de um sistema de três torres da barra do Tejo. As outras duas são a Torre de Santo António de Cascais e a Torre de São Vicente de Belém. Esta última, bastante mais conhecida, encontra-se alinhada com o forte, na margem oposta do rio. A distância entre estas torres não permitia o alcance total do rio, daí a existência de uma nau no centro do Tejo, para reforço de tiro das baterias que não alcançavam a distância pretendida.

A Torre de São Sebastião, através deste sistema de artilharia de defesa da barra de Tejo e da cidade de Lisboa, está portanto ligada à génese da «expansão marítima» portuguesa. Para além da sua função de defesa, esta fortaleza é ainda um dos mais importantes exemplos da arquitectura militar renascentista do país, tendo em conta a modernidade dos dispositivos que possui, bem como a originalidade da sua implantação. Mandada construir por D. João II nos finais do século XV, e reedificada em 1570 por D. Sebastião, serviu enquanto estrutura militar de defesa até 1859.

A partir de 1815, parte da Torre passou de fortaleza a Lazareto. Em 1869, foi construído um novo, local destinado a albergar, em quarentena, todos os tripulantes dos navios que chegavam com suspeita de epidemias, provenientes de países assolados por doenças infecto-contagiosas. De grandes dimensões, apresenta uma planta em forma de ferradura, semicircular, com saída para vários edifícios, cada um destinado a um tipo de maleita diferente. A entrada para o Lazareto era feita pelo rio. Quando já se encontrava fora de funções, em 1919, durante a revolta monárquica do Norte, foi utilizado como presídio. No pós 25 de Abril, o Lazareto do Forte de São Sebastião passou a ser baptizado como Asilo 28 de Maio, albergando então retornados das ex-colónias.

Na área pertencente ao forte, um tesouro natural resiste. Um dragoeiro, de 150 anos, árvore que deve o seu nome à sua seiva vermelha, que era comercializada com o nome de sangue-de-dragão. No seu tronco e ramos encontram-se inscrições de antigos militares.

O valor histórico, patrimonial e cultural da Torre de São Sebastião, que devia ser uma herança preservada entre gerações, vai-se perdendo assim no tempo. Sorte a dos que a puderam visitar no passado e testemunhar a sua importância ao vivo e a cores. Afinal, trata-se de um património classificado como monumento nacional, que o parece ser só em papel. Destino diferente teve a sua “companheira” da frente, a Torre de Belém, ponto de grande interesse turístico, que está longe de cair no esquecimento.

 

 

 

 

Crónica

Jorge Rocha

O Lazareto visto por excursionistas há 75 anos

 

A consulta às hemerotecas pode ser bastante interessante, sobretudo, quando se descobrem textos cuja existência desconhecíamos e são alheios aos que íamos previamente procurar. Foi o que me sucedeu duas atrás quando consultava uma edição do Diário de Lisboa de 5 de Dezembro de 1942 e dei com um título sugestivo: “Visita ao Lazareto onde ficavam de quarentena os passageiros chegados ao Tejo.” Assinava-o Gabriela Castelo Branco, que presumo ser uma das integrantes do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, organização fundada por Adelaide Cabete em 1914 e que Salazar proibiria a partir de 1947.

A curiosidade que esse documento suscita tem várias razões a fundamentarem-na. Por um lado não podemos esquecer que se viviam então momentos particularmente dramáticos além-fronteiras com Hitler a ver a campanha da Rússia travada em Leninegrado e, sobretudo, em Estalinegrado, prenunciando-se a viragem de uma guerra, que se saldaria com a sua derrota. Mas, numa época em que o turismo ainda não existia como indústria, tem alguma piada o pioneirismo dos passeios a sítios considerados de interesse pelos diletantes, que não perdiam o ensejo de, para o efeito, contratarem guias habilitados.

Na peça jornalística Gabriela Castelo Branco começa por descrever o acesso à margem sul a partir de Belém: “Tomámos o pequeno vapor da carreira para Porto Brandão eram quase onze e meia da manhã. Gente humilde à nossa volta na lida de todos os dias, transportando canastras com sardinha, hortaliças, sacos, fardos pesados e falando, comentando, gesticulando.”

Numa época em que era obrigatória a descrição da paisagem em que se evoluía, Gabriela Castelo Branco é bastante detalhada no que vê: “pousávamos a vista sobre o panorama do rio, verde-seco e agitado pelo vento agreste que soprava. Gaivotas donairosas e brancas traçavam no firmamento arabescos diversos e flutuavam sobre as águas revoltas. Barcos à vela, aqui e além, um vapor de carga atracado e outros mais pequenos, atravessando o rio para cá e para lá. Junto ao Bom Sucesso um hidroavião solitário parecia perdido e esquecido do mundo…

Junto do nosso barco uma chata com dois homens andrajosos, que lançavam uma rede para pescarem alguma coisa.”

Deixando para trás a cidade, onde a autora referencia os pavilhões sobreviventes da Exposição de 1940, passa para a visita do edifício onde, em tempos, funcionara o Lazareto, que descreve como sítio de internamento dos doentes “atacados de moléstias pestilenciais, como cólera, peste e febre amarela, e passageiros vindos de portos onde grassavam essas epidemias, ou que, a bordo, haviam estado em contacto com aqueles enfermos.”.

O sítio era – e continua a ser ainda hoje em dia – beneficiado por paisagem encantatória: “fica situado num morro, de onde se desfruta panorama soberbo por sobre o rio. A capital resplandece olhada daquele alto. E tudo ali à volta respira uma quietude que se presta à meditação.”

Segue-se a sua história: “existe do lado de lá do rio um velho forte, datando talvez do século XVII, conhecido pelo Forte de S. Sebastião (ou Torre Velha). Duma certa altura em diante para lá iam parar as pessoas atacadas de doenças pestilenciais que desembarcavam em Lisboa e os passageiros que ficavam em quarentena. Verificando-se, porém, a necessidade de melhores acomodações para estes, porque a navegação aumentara e o número de desembarcados era maior, a meio do século XIX deu-se início ao grande edifício do Lazareto e em 1884 ficou concluído.

Era formado por cinco quarentenas (ou setores) todos ligados entre si, mas onde as pessoas se encontravam numa completa separação. Cada setor – de três pavimentos – possuía os seus quartos, a sua cozinha, a sua sala de jantar, as suas instalações higiénicas, a sua entrada. Uma capela grande – duma disposição original porque estava inteiramente isolada das quarentenas, mas fronteira a estas, e cheia de janelas que se abriam para que os internados assistissem à missa sem terem de penetrar nela – permitia o culto religioso.”

Prosseguindo com a mesma preocupação de rigor com os factos, Gabriela Castelo Branco conta que a preocupação em evitar o contacto dos internados com o exterior era tal que recebia-se a comida a partir de uma roda e existiam diversos barracões para a desinfeção das roupas e das mercadorias, a acomodação das bagagens e para os serviços aduaneiros. Os excursionistas, que acompanhavam a repórter, também usufruíram das informações prestadas por Gonçalves Braga, ex-inspetor geral da Sanidade Marítima, sobre o início da prática das quarentenas em Veneza ou em Marselha antes do século XVII, que serviram de referência para a publicação do “Regimento do posto de Belém” em 20 de Dezembro de 1695, pelo qual se instituía o primeiro lazareto na Trafaria. A transferência para a Torre Velha ocorrera em 1815, sendo aí criado o Hospital de Isolamento, definitivamente desafetado em 1918.

Perdendo a função original, o Lazareto servira de quartel até 1927 e tornara-se Asilo de educandas de três instituições: o de Manuel Pinto da Fonseca, o da Almirante Reis e o da Ajuda, que se congregaram no que passou a ser o Asilo 28 de Maio. Quando Gabriela Castelo Branco e os demais excursionistas do passeio visitaram as instalações andavam por lá 300 raparigas com idades entre os sete e os 12 anos. “ A diretora, Fernanda de Sousa Carvalho, inteira-nos sobre a educação que recebem. Instrução elementar, música, ginástica, trabalhos domésticos, não lhes faltando amparo moral e religioso.” Ou seja, uma instituição do Estado Novo no seu esplendor…

O último doente do Lazareto ali estivera até 1912, atacado de febre-amarela contraída no Brasil de onde proviera. Mas figuras consideradas ilustres ali haviam passado alguns dias, nomeadamente D. Pedro II, imperador do Brasil, e o caricaturista Rafael Bordallo Pinheiro. É da autoria deste a ilustração que acompanha este artigo, porquanto o notável artista não perdeu a oportunidade para reportar pelo desenho o tipo de experiência por que estava a passar.

Para quem viveu na Caparica nas décadas mais recentes o Lazareto significou diferentes ciclos controversos: do tal asilo para raparigas desvalidas tornou-se num espaço abandonado depressa apossado por quem não tinha um teto e ali se acoitou. Mas depressa ganhou péssima fama por ser tido como foco de diversos tipos de delinquência. Quando as autoridades transferiram os seus ocupantes para um dos bairros sociais situados entre o Monte e vedaram o acesso a quem tivesse a curiosidade de visitar a antiga Fortaleza, deram ensejo ao negócio imobiliário, que transformou o lazareto num investimento, que não parece passar das intenções.

Ninguém duvida, porém, que cuidando de reabilitar toda a área entre a Torre e o Porto Brandão, o antigo Lazareto tem o potencial de ali se criar um polo turístico de assinalável interesse para quem o vier a usufruir.

 

2 thoughts on “Património Abandonado

  • 27 de Maio, 2020 at 22:36
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    Parabéns pelo artigo. É muito interessante fazer este levantamento histórico destes locais que agora se encontram ao abandono. Procurei muita informação sobre este conjunto de edifícios, desde que os avistei, sem grande sucesso até encontrar esta reportagem. Deixo o desafio à autora e ao jornal para fazer algo semelhante sobre as fortificações militares que se encontram no alto da arriba fóssil quer na zona da Trafaria quer na zona a sul do miradouro dos Capuchos.

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    • 28 de Maio, 2020 at 10:42
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      Olá, Daniel Santos! Gratos pelo comentário e pela sugestão 😉

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