Um Sorriso na Noite

O dia já declinava, perdia forças e a noite quente de Agosto lançava as suas sombras pelas ruas estreitas da velha Lisboa.

Um grupo de amigos estava reunido num espaço cultural para a comemora­ção de um aniversário.

Alguns dos presentes vinham para a rua fumar e receber no rosto a brisa ligeira vinda do rio e ali conti­nuavam a conversar animadamente, sempre acom­pa­nha­dos por alguma bebida.

Surgida do nada, como que vinda de outra dimen­são, ela apareceu. Era uma mulher bela, profunda­mente bela. Os cabelos louros caíam-lhe soltos, em cascata, sobre os ombros e os seus olhos azuis, não só lhe emolduravam o rosto, como sorriam, sorriam sempre.

Com desenvoltura e com uma alegria contagiante aproximou-se de mim e pediu-me para lhe acender um cigarro. A entoação da sua voz era ligeiramente musical e fez-me recordar o falar das gentes do Sul do Brasil. Um sorriso iluminava-lhe o semblante e era radioso, cristalino; hoje, estou certo, de que possuía algum estranho sortilégio. Um tremor apoderou-se de mim e eu tive dificuldade para lhe acender o cigarro, devido à súbita perturbação que me dominou.

Ela falava e o seu discurso, culto e apaixonado, versava sobre teatro, poesia, arte e encantava o grupo. Apesar de toda a alegria que demonstrava e, sem qual­quer motivo que o justificasse, pareceu-me notar-lhe uma diáfana nuvem de tristeza no olhar. Não saberia explicar a minha observação, mas creio que esse subtil vislumbre de nostalgia fazia parte de algo que eu tinha perdido e que complementava uma angústia antiga que se eternizava em mim.

No entanto, foi apenas um pensamento passageiro, a que não dei grande importância na altura, porque a sua beleza e simpatia eram soberanas e não me permitiram qualquer pensamento desviante.   

Falámos durante a noite mais alguns momentos e quando ela se afastava de mim, com a graciosidade de uma ninfa, e vitoriosa como uma amazona, eu sentia imediata­mente a necessidade da sua presença, como se ela fizesse parte do meu ser. Explodia no meu peito um desejo, imperioso e inexplicável, de voltar a vê-la, de estar na sua presença, de ouvi-la, de admirá-la.

Estava surpreendido comigo mesmo, porque já tinham passado mais de dez anos, desde o dia em que o destino me levou a mulher amada. Durante esses anos vivi numa espécie de nebulosa, em profunda solidão e criei um universo irreal, de sonho e de recordações. Construí um mundo de passados, de saudades, de desejos e afastei-me deliberadamente da vida material. Gradualmente, passei a viver uma vida, digamos, espi­ritual e fui esquecendo o encanto do amor, dos beijos ternos, das carícias e do prazer de um corpo feminino. Tudo deixou de me interessar. Eram temas que o meu próprio pensamento rejeitava e que o meu corpo, receo­so, evitava a qualquer custo. Eu tinha-me habi­tuado a procurar a amizade e a exercitá-la intensa­mente no seio dos meus inúmeros amigos e isso bastava-me, pelo que não compreendi a súbita emoção que me acometeu quando a vi.

A festa do aniversário continuou por mais algumas horas com cantos e leitura de poesia e muita alegria e eu voltei para casa já de madrugada. O imponderável e o insólito, por vezes, acontece. Apesar de cansado, mas movido por um misterioso impulso, liguei o computa­dor e fui ver as mensagens que tinha nas redes sociais. Logo uma onda de calor e de excitação me inundou o peito quando descobri, entre elas, um inesperado pedido de amizade.

Era ela! A mulher do sorriso lindo queria ser minha amiga.

Blaise Pascal disse um dia que ‘o coração tem razões que a própria razão desconhece’, também eu, a partir daquele momento, deixei de ter qualquer pensamento racional e comecei a agir apenas movido pelo desejo impositivo de estar com ela, que me chegava da parte mais terna do meu coração.

Dois dias depois, no final de uma manhã luminosa, encontrámo-nos à beira do Tejo. O encontro dos nossos olhares curiosos e ansiosos foi, imediatamente, seguido de um abraço impregnado de ternura, tal como o de dois amantes separados pela vida há muito tempo. Ela sorria feliz e eu, deslumbrado, fiquei com a sensação de que sempre a tinha conhecido e de que já havia uma simbiose entre nós, espontânea, verdadeira.

Ela, sem o saber, foi a chave que abriu a porta da fortaleza onde eu me tinha enclausurado durante tanto tempo e eu voltei a adquirir a liberdade e o prazer de amar. O seu sorriso radiante e o seu olhar doce deram asas e uma nova vida à minha felicidade esquecida. Ficarei seu devedor até ao fim dos meus dias.

Desde então, tenho vivido num êxtase permanente, mesmo sabendo que o futuro vai trazer-nos um afastamento físico tão inevitável como as sombras da montanha que avançam pelos vales em cada ocaso.

Sei que a minha marca nela, não será tão forte quanto a dela em mim, mas ainda assim, penso que deixarei no seu coração uma sementinha do meu amor por ela, bem como a recordação da minha entrega total, mesmo que ela, com o seu sorriso inolvidável, encontre noutros braços a felicidade merecida.

Reinaldo Ribeiro

21AGO2017

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