Vitória do Escravo

As vagarosas naus, com as velas enfunadas ao vento, navegam rangendo o madeirame do casco que sulca as ondas do oceano imenso, ora alterosas como cascatas, ora suaves como o algodão.

Levam pintadas no velame a Cruz de Cristo e os seus porões infectos andam permanentemente cheios de negros, que caçados nas suas aldeias na floresta, seguem acorrentados para o cativeiro, onde serão vendidos como mercadoria no entreposto de São Tomé.

Os caçadores de escravos fazem incursões rápidas nos povoados do litoral para agarrarem indistintamente todos os negros a que consigam deitar a mão, ou trocar por quinquilharias ou armas de fogo, os prisioneiros dos sobas locais.

É devido a isso que as embarcações saem pesadas de vários pontos da costa africana para aquela ilha de relevo montanhoso, revestida pela selva exuberante e situada sobre a linha do equador, na Costa dos Escravos.

Ao chegarem ao largo das praias de São Tomé, aguardam que os negociantes dos barcos ingleses, holandeses, espanhóis, franceses e portugueses façam as suas ofertas para as peças, que serão revendidas com altíssimos lucros nas colónias americanas.

Naquelas ilhas de águas quentes e límpidas, praias de areia branca, sombreadas pelos coqueiros de troncos inclinados pelo vento, os negros sofrem todas as humilhações que o homem pode suportar.

Amador, filho de escravos angolanos, nasceu no cativeiro e ali viveu uma existência sub-humana.

Foi retirado dos braços da sua mãe quando esta foi vendida num lote para o Brasil. Ele tinha apenas alguns meses de vida quando isso aconteceu. O seu pai já tinha ido antes, num carregamento para as Antilhas, num barco holandês.

Foi criado por várias mulheres que o alimentaram como puderam, antes de elas próprias serem vendidas e mandadas para um qualquer lugar longínquo. Passou a ser, sem saber, um filho de várias mães que o acarinharam enquanto esperavam ser levadas para outro lado, na sua condição de gado. Sofreu desde sempre as diferenças sociais que o modo de viver da época lhe reservou e assim cresceu, com muitas mães mas sem família e sem referências. O seu próprio nome, Amador, foi o que resultou, na língua portuguesa, da sua criação: amado na dor.

Ainda jovem reconheceu que era um sobrevivente da sangria que o povo negro sofria devido à ignorância e à ganância dos brancos, por isso fugiu e procurou o refúgio da floresta, onde viveu evitando a perseguição daqueles que consideravam os negros como simples objectos de troca.

Viveu na mata como um animal selvagem. Alimentou-se de frutos silvestres e de um ou outro animal que conseguia apanhar.

Rondava a cidade de São Tomé, que ele viu crescer lentamente, sempre a uma distância cuidadosa, enquanto sonhava um dia entrar lá, não como escravo, mas como um homem livre.

Ali na periferia, roubava aos portugueses tudo o que podia. Era uma espada hoje, uma lança amanhã, um barril de pólvora, um mosquete, um barril de sal etc., que carregava prontamente para o seu refúgio na mata.

Sempre que podia, mantinha contactos com os escravos. Procurava incutir-lhes a sua noção de liberdade e incitava-os a fugirem dos seus captores ou a reagirem-lhes. Alguns entre eles optaram por enfrentar esse risco, lograram escapar e erravam pela selva em busca de outros escravos fugitivos.

Amador, animado pelo seu ideal de luta contra a escravidão, procura reunir esses escravos em fuga. Dá-lhes todos os ensinamentos de sobrevivência que possui, num território controlado pelo inimigo branco, e incita-os à revolta.

O comércio de escravos continua a separar as famílias negras e a mandar os seus membros para um futuro de servilismo abjecto, sujeitos as todas as sevícias e maus tratos que os seus donos, eivados de um ignóbil sentimento de posse, infligem a todos os homens, mulheres e crianças de sua propriedade.

O continente africano é um manancial inesgotável de trabalhadores compulsórios para as grandes plantações que já existem por toda a América. Grande parte desses escravos passa por São Tomé. A maioria, amedrontada ou sujeita a valores culturais ancestrais, aceita a escravatura como componente normal do seu destino, no entanto, outros insurgem-se contra esse tratamento vil e desumano e encetam diversas formas de luta.

O primeiro levantamento de escravos que ocorreu em São Tomé, foi desencadeado pelos negros de uma grande plantação de açúcar, aos quais se juntaram escravos de outras propriedades.

Anos mais tarde eclodiu nova rebelião, desta vez chefiada por um escravo cego chamado Yoan Gato, que foi rapidamente controlada com punições severas para todos os revoltosos. No entanto, apesar do insucesso, esta rebelião serviu para demonstrar que os escravos não aceitavam pacificamente o cativeiro.

Naquela manhã, o calor húmido penetra forte pela ramagem das árvores da floresta. Na penumbra da mata, três vultos esgueiram-se por entre os ramos, lianas e silvados, silenciosamente.

São escravos fugitivos que avançam para o sul e tentam livrar-se dos portugueses que, acompanhados de cães, os perseguem há várias horas.

Os seus corpos magros e dilacerados pelos golpes do chicote e pelos espinhos da mata, cambaleiam de cansaço e fome.

A distância que os separa dos perseguidores vai-se encurtando gradualmente. O latido raivoso dos cães ouve-se agora distintamente.

Um dos fugitivos não resiste e, esgotado, deixa-se ficar para trás. Em poucos minutos é alcançado pelos cães que o mordem selvaticamente, indiferentes aos seus gritos de dor. Quando os seus captores se acercam, ele é apenas o corpo destroçado de mais um escravo que conseguiu morrer em liberdade.

Os outros dois, aproveitam para se distanciarem mais dos seus perseguidores e continuarem a alimentar a esperança de viver sem grilhetas.

Correm até à exaustão sem se preocuparem com o barulho denunciador do rumo que levam. Por sorte, são ouvidos e vistos por um grupo avançado de n’golas, que os acolhem, enquanto Amador dá a ordem de emboscar os perseguidores brancos.

São cinco os portugueses que tentam alcançar os escravos. Trazem com eles três mastins treinados para encontrar e parar os fugitivos. Seguem confiantes de capturar os dois negros restantes com a mesma facilidade com que apanharam o primeiro, mas não podem deixar os cães despedaçá-los como fizeram àquele. Afinal os negros valem dinheiro, por isso precisam de apanhá-los vivos e levá-los para a cidade.

Os cães farejam e ladram ao sentir a presença de estranhos. Os caçadores avançam resolutos com as armas na mão, mas não chegam a ver os negros que perseguem. Uma chuva de setas imobiliza-os ali mesmo, juntamente com os animais.

Os rostos negros e brilhantes de suor de Amador e dos outros ex-escravos, distendem-se em largos sorrisos, naquela que foi a primeira vitória alcançada sobre os esclavagistas.

Despojam-nos de tudo o que lhes interessa e deixam que as feras tomem conta dos seus corpos.

Fora da mata o céu tinge-se do vermelho do entardecer. É o fim de mais um quente dia tropical, que pode também prenunciar o fim de uma era de iniquidade e despotismo.

Esta acção foi a primeira de uma série que Amador, à frente dos seus homens, desencadeou a partir do sul da ilha.

Na verdade, estes homens armados precariamente, começam a invadir as grandes propriedades, incendeiam as plantações, destroem os engenhos e tentam até atacar a cidade.

A fama de Amador alastra pela floresta e chega à cidade. Organizam-se expedições para capturar o escravo rebelde que protegido pela floresta, a todas consegue escapar, muitas vezes fazendo contra-ataques rápidos que deixam mortos no terreno, muitos dos seus perseguidores.

Estes grupos de escravos passam a ser conhecidos por n’golas por serem compostos por escravos oriundos de Angola, que se refugiam nos quilombos da floresta e o empenho e a orientação que Amador imprime a estas acções de sucesso, fazem com que os seus seguidores o passem a denominar de Rei.

Os ataques e as vitórias sucedem-se com tal frequência e com tal intensidade que os escravos chegam a dominar um terço da ilha de São Tomé.

Num entardecer morno, quando a brisa suave do mar faz estremecer as folhas largas dos coqueiros, Amador entra finalmente na cidade. Livre como sempre sonhou.

A multidão de escravos libertos aclama-o como a um rei e os tambores de troncos ocos fazem soar no horizonte o batuque da liberdade.

Reinaldo Ribeiro

1995

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