17 Mil Insetos em Casa

O nosso Presidente da Mesa da Assembleia Geral, António José Zuzarte, foi tema de um grande artigo na edição do Público do passado dia 3 de junho. O caso não era para menos: doou a sua coleção de 17.499 insetos ao Museu Nacional de História Natural e da Ciência da Universidade de Lisboa.

Como é nosso costume, reproduzimos aqui o artigo de com fotos de 

António José Zuzarte tinha mais de 17.000 insectos em casa. Museu vai dar-lhes uma nova vida

A uns passitos da praça de Monforte, depois de passarmos debaixo de um arco que marca o início da rua, batemos à porta: truz-truz! Logo do lado de lá se sente que alguém aí vem – é António José Zuzarte. Vem em sobressalto e faz um alerta: “Já não vinha aqui há um ano. Há insectos atacados!” Nota-se o seu esmorecimento, mas de imediato nos pede para subirmos as escadas e vermos por nós próprios. Há duas portas como caminho e escolhemos a entrada directa para o que viemos ver – insectos. O “cofre” é um escritório que, além de muitos e muitos livros, tem uma estante de madeira com gavetas – cheias de insectos –, uma mesa enorme que suporta caixas de gelados e Tupperware® – com insectos – e tem caixas por baixo – com insectos. Em todo o lado vamos encontrando partes da sua colecção – de insectos. Entrámos no mundo de António José Zuzarte.

O entomologista amador começa a abrir gavetas, de onde saem caixas de madeira envidraçadas por cima. Há alguns insectos atacados por predadores, mas outros nem tanto. Abre depois as caixas de gelado e os Tupperware®. Aí, os insectos parecem não ter sido tão atacados. “Os dos Tupperware® estão bem”, descansa-nos o antigo engenheiro técnico agrário, agora com 83 anos.

Nesta casa, em Monforte (no distrito de Portalegre), António José Zuzarte guarda desde os anos 80 uma colecção com insectos de Portugal, e não só, que apanhou e recebeu de outras pessoas desde os anos 60. Aqui, nesta casa, montou insectos em caixas e caixinhas, pôs-lhes uma etiqueta com a indicação do local onde foram apanhados e com a informação de quem os apanhou, e estudou-os. “Passei aqui belos tempos”, recorda a olhar para as paredes repletas de fotografias com as suas aventuras entomológicas, e não só.

Vive neste momento na Costa da Caparica e já não vinha a Monforte há um ano. Regressou agora para dar a sua colecção de insectos ao Museu Nacional de História Natural e da Ciência (Muhnac) da Universidade de Lisboa. Antes que investigadores do museu cheguem para levar os insectos, António José Zuzarte aproveita para nos contar esses belos tempos.

Sempre no Campo

“Vivi sempre no campo. Nasci em Veiros. Sou alentejano puro”, conta, sentado à camilha, com as pernas cobertas por um pano de Nisa. Para nos levar ainda mais para dentro da sua história, aponta para uma fotografia da sua infância. “Olhe, sou eu ali! Sou eu em pequenino sentado em cima de uma vaca alentejana em Santo Amaro.” A sua mãe nasceu nesta aldeia do concelho de Sousel. É este um dos sítios de onde tem mais insectos.

Mais tarde, vai estudar para a Escola de Regentes Agrícolas de Santarém. “Lá, tive uma cadeira de zoologia e comecei logo a gostar um bocadinho [dos insectos]. Depois, tive patologia vegetal, que era sobre a doença das plantas, e tínhamos de fazer uma pequena colecção.” O bichinho pelos insectos e pelas colecções começou aí. Ainda passou pela “tropa” e foi apanhando logo insectos. Estávamos em meados dos anos 60.

Mas o momento que marca, oficialmente, o início da sua colecção de insectos surge quando se torna assinante de uma revista de entomologia para amadores, a L’Entomologiste. A sua revista acaba por ir ter ao Porto, colada à de Tristão Branco, um outro coleccionador amador de insectos. Como tinha o endereço de António José Zuzarte, Tristão Branco entra em contacto com ele para lhe dar a revista e, pelo caminho, ensina-o a organizar uma colecção entomológica, desde a montagem dos insectos em caixas até à escrita das etiquetas. “Ele já estava batido naquilo e sabia como havia de fazer as etiquetas e aquelas coisas todas.” Tristão Branco era engenheiro químico e também deixou uma extensa colecção a um museu no Porto, conta António José Zuzarte. “É uma colecção fantástica!”

A missão na Guiné-Bissau

A partir daí, foi sempre somando insectos à sua colecção – dentro e fora de Portugal. Andava sempre com um frasquinho e um produto para os capturar. Trabalhou muitos anos em Coruche e apanhou nessa zona. Quando vinha ao Alentejo, aproveitava para apanhar. Assim que podia e em qualquer lado, apanhava. “Por todo o lado onde ia… Até quando ia passear e ia de férias para Espanha, onde fiz muitos anos campismo.” E até fez missões entomológicas com cientistas.

Uma dessas missões foi à Guiné-Bissau em 1983. O trabalho está documentado no livro Uma Missão Entomológica à Guiné-Bissau, escrito por António José Zuzarte. “Foi a primeira vez que uma missão de entomologistas portugueses se deslocou à República da Guiné-Bissau, depois da independência”, conta no livro. Foi com Artur Serrano, que era professor da Faculdade de Ciências (de Lisboa), e Claudina Alexandre, a sua mulher na altura. Todos tinham ajudado a fundar em 1978 a Sociedade Portuguesa de Entomologia.

A missão ocorreu entre 16 de Novembro e 7 de Dezembro. No livro, António José Zuzarte relata como o trabalho de colheita de insectos necessitava de muita paciência e muitas horas de trabalho. “A recolha de insectos durante o dia, fazendo batimentos com camaroeiros sobre as plantas, ou recolhas directas sobre elas, ou sob as cascas soltas das árvores e no solo, era a nossa ocupação quanto a noite não chegava”, escreveu. Na sua casa, em Monforte, ainda guardou alguns insectos (não muitos) que lá apanhou e agora deu ao museu. “Estes foram apanhados por mim”, indica. Na altura, muitos foram logo para a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

Já quando estava reformado, participou num outro projecto: um estudo de três anos para conhecer os insectos do Parque Natural da Serra de São Mamede, no distrito de Portalegre. Com ele, estiveram três biólogos: Artur Serrano (novamente), Mário Boieiro e Carlos Aguiar. “Foi a única coisa em que ganhei dinheiro.” Esse projecto decorreu entre 1999 e 2001 e foram feitas colheitas dentro de todo o parque e durante o dia e noite. “[Metia] armadilhas no chão, daquelas terrestres. Arranjava um copo e depois metia um produto e um bocadinho de cerveja, para eles gostarem de ir beber cerveja. Também tinha formol para os matar e os conservar”, lembra este “caçador” de insectos.

António José Zuzarte diz que apanhou de tudo. Fez-se depois um trabalho com o material apanhado e até espécies novas para a ciência foram encontradas. Hoje sabe-se mais sobre os insectos desta serra alentejana devido a esse trabalho.

Está nesta casa, em Monforte, desde 1987, quando veio trabalhar para esta zona do país. Além de insectos, no seu escritório guardou também as tais revistas L’Entomologiste e documentação sobre os insectos. “Estão aqui todos registados”, diz-nos a passar as folhas num dossier. Lá, estão mapas com as localizações da ocorrência de insectos, referências de artigos científicos sobre esses insectos e os seus nomes. Entre as folhas, há uns que ficaram com uma parte do nome de Zuzarte quando foram nomeados. Há um Athous zuzartei, um Ceramida zuzartei ou um Pimelia zuzartei. Todos são coleópteros, a ordem que engloba os besouros e as joaninhas – que também andam pela colecção de António José Zuzarte.

Entretanto, os investigadores do museu chegam. Vêm com uma carrinha buscar a colecção. Também sobem as escadas e, no escritório, António José Zuzarte vai apresentando as caixas e gavetas com insectos a Judite Alves (subdirectora do Muhnac e responsável por todas as colecções do museu), Roberto Keller (curador de entomologia) e Martim Baptista (estudante de mestrado na área da entomologia).

“Precioso! Está perfeito”, reage Roberto Keller a observar os insectos de uma gaveta entre o vidro. E António José Zuzarte também logo lhe diz sobre esse material: “Está tudo estudado e o material publicado.” Mas também avisa que alguns não estão em bom estado… Ficaram destruídos por predadores.

Setenta e oito gavetas e 110 caixas para o museu

Para o museu, foram 78 gavetas e 110 caixas tipo Tupperware® da colecção de António José Zuzarte, indica Judite Alves. “Nas gavetas contabilizámos 9257 exemplares. Estimo existirem mais cerca de 2000 a 3000 exemplares nas caixas de plástico. Portanto, não estaremos a sobrestimar se pensarmos em cerca de 12.000 exemplares no total. A subdirectora do Muhnac informa que a colecção é sobretudo rica em coleópteros e, dentro destes, nas famílias Buprestidae e Cerambycidae. Numa contagem posterior mais exacta, Roberto Keller informa que foram contados 17.499 exemplares.​

A recolha dos insectos foi feita em diferentes regiões geográficas. Entre os que foram agora enviados para o museu, há uma boa representação da entomofauna geral da Serra de São Mamede. A maior parte dos insectos doados foi apanhada por António José Zuzarte, mas há também algumas ofertas que foi recebendo ao longo dos anos.

“Esta colecção é um tesouro por muitas razões”, assinala Roberto Keller a abrir as caixas. Primeiro, justifica, está concentrada em duas famílias e tem uma boa representação disso. “Às vezes, é melhor concentrar em algo do que espalhar em muitas famílias”, nota o curador. Depois, está “perfeitamente montada” e tem etiquetas com o local de onde o insecto foi capturado e quem o apanhou. “Está tudo identificado”, salienta ainda. “Está como um curador de museu quer receber”, diz, a sorrir, Judite Alves.

António José Zuzarte sente-se orgulhoso com a doação. “Já deveria ter sido há mais tempo. Se tivesse sido há quatro ou cinco anos, não havia aqui bichos”, diz, ainda um pouco desconsolado o entomologista. Mas o próprio museu o acalma: “Também não está assim tão má. Vamos concentrar-nos no que está bom”, afirma Judite Alves.

Agora está muito contente, cada vez mais, com o destino da sua colecção. “Já durmo mais descansado”, brinca. “Foram milhares as horas que dediquei a esta colecção.” Espera que o museu dê uma nova vida aos seus insectos, algo que a própria instituição se compromete.

— Temos a capacidade de tomar contar dela, de a preservar e de fazer com que esteja disponível de maneira mais fácil para qualquer investigador — garante Roberto Keller.

— Vai ser uma colecção que fica aberta à comunidade — complementa Judite Alves.

António José Zuzarte olha-os com frontalidade e decide precaver:

— Aberta, mas sempre guardada.

— Aberta no sentido de acesso. É engraçado que há muita gente que procura o museu para que o seu material fique exposto, mas os coleccionadores de insectos querem que seja guardado para que seja estudado — descansa-o Judite Alves.

— Isso é que interessa. É que o insecto exposto à luz vai perdendo cor — avisa o entomologista.

A sua colecção foi agora para o museu, onde, depois de uma quarentena, foi transferida para novas caixas. Pode agora também vir a ser (re)descoberta por investigadores que lá passarem. “Há aqui muitas famílias [de insectos] que nunca mexi”, alerta.

O próprio António José Zuzarte se surpreende com o que ainda descobre na sua colecção. Enquanto Roberto Keller segura uma caixa, o entomologista alentejano olha para insectos por detrás do vidro. “Não estou a conhecer as de cá. Estes ofereceram-me, por isso é que não os conheço”, vai desvendando. Depois de muito olhar, desvenda definitivamente: “São joaninhas!” Joaninhas que agora “voaram” para Lisboa.

Mesmo longe do Alentejo e sem a colecção, o entomologista não pára. Na Costa da Caparica, para onde foi viver, ainda foi fazendo umas recolhas na rua ou na praia. “A rua estava toda estudada”, diz a rir. E até já tem uma ajuda. Para a apresentar, António José Zuzarte mostra-nos uma pequena caixa com um insecto. “Este foi apanhado pela Leonor, a filha da minha enteada. Sabia que eu gostava de insectos e veio com a mão cheia de areia e disse-me: ‘Avô, está aqui um bicho!’” Este episódio ocorreu em 2011, quando a pequena Leonor tinha perto de três anos. Era um coleóptero negro que ele próprio nunca tinha encontrado – o Zabrus pinguis. Aliás, sempre que esta pequena “entomologista” encontrava “um bicho”, lá chamava o seu avô.

Agora, também o bicho apanhado pela Leonor foi para o museu. É este o mundo de António José Zuzarte.

 

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Jornal da Associação Gandaia

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