Caminho do Pôr-do-Sol
As poderosas trevas vencem a luz do dia e a noite misteriosa instala-se vitoriosa.
O luar, claríssimo e brando, surge do nada e enche a mata de sombras mornas. Desenha paisagens enfeitiçadas nas águas mansas do rio que com elas levam os sonhos, as tristezas, e as alegrias dos homens. As estrelas descobrem o rosário precioso que envolve, entontece e encerra o mito grandioso do céu de África.
Uma fogueira cansada recolhe nas cinzas as línguas esfarrapadas de fogo. O fumo eleva-se numa espiral fina por entre a rala folhagem em direcção à terra dos espíritos vigilantes, lá nas alturas, onde os homens se tornam deuses.
Um velho recorta-se em silhueta contra o último horizonte, na véspera do seu fim. É o sonhador que resta, a memória de um tempo longínquo, o sedimento de culturas e de paixões. Fala com a serenidade própria das grandes reflexões na solidão dos amplos espaços e na proximidade dos deuses.
À sua frente, enfeitiçados pela sua presença, dois jovens, quase crianças, bebem-lhe os gestos e sorvem-lhe as palavras, palavras essas, que são lições de vida, monumentos à dignidade, ao amor, à tolerância, à fraternidade. Nos seus corpos, nus e negros, banhados de luar e de estrelas, lampejam raios azulados na noite do insondável sertão.
Cansados, os olhos do velho fixam-se no fogo, tentando decifrar-lhe os mistérios e as mensagens ocultas na dança fantástica das últimas labaredas. Com gestos pausados, de quem viveu muitos dias, enche a mutopa com pequenos rolos de cânhamo e acende-a com um tição.
Interrompendo o vasto silêncio, a rapariga, respeitosamente, dirige-se-lhe numa torrente de palavras ternas:
– Paizinho, foi com alegria que vi triunfar no meu coração a claridade das tuas palavras sábias, pedras sagradas e testemunhas vivas da personalidade do nosso povo, sobre as trevas deprimentes da minha imaturidade. Sei agora, depois de te ouvir, que o objectivo da nossa vida é a compreensão e o amor, por isso posso afirmar-te, com a certeza que as tuas palavras me transmitiram: que o homem com quem eu casar há-de ser tão delicado como a lua nova ao nascer.
Por seu turno, o rapaz, envergonhado, mas igualmente reconhecido, acrescenta:
– Mais velho, tudo o que disseste tocou-me o coração como a carícia da brisa que sopra do poente quando o sol se esconde nos mistérios da noite. Compreendi muitas coisas que a tua experiência da vida me transmitiu. São ensinamentos que me vão ajudar a ser um verdadeiro homem, sobretudo, em relação à família que irei formar um dia, pois não devo ter mais do que uma esposa, já que o Sol, que é a luz da vida e rei, tem apenas uma só Lua como companheira.
O cheiro acre da lenha queimada perfuma o ar. As cigarras enchem o silêncio com os seus cânticos mas, subitamente, calam-se quando o velho pigarreia. Este estende as mãos descarnadas para o fogo, traga o fumo do cachimbo, solta longas baforadas para o céu escuro e volta a falar:
– Vejo que aproveitaram algo da minha experiência e da sabedoria que os nossos ancestrais me enviaram através das nossas raízes mais profundamente enterradas na quente terra africana. Mas antes que as sombras da noite se desvaneçam no crepúsculo da manhã, quero ainda contar-lhes como os nossos velhos aqui chegaram, para que um dia o possam transmitir aos vossos filhos:
“Um dia, já muito distante e perdido para lá do tempo, eles deixaram a terra Mãe, lá para aquele lado – e indicava o Nascente – procurando as terras para onde o dia foge.
Primeiro, atravessaram o mar, que é uma imensa savana com o chão coberto de água, onde o céu se mistura e desfaz, onde não existem montes, árvores, ou animais. Apenas há, e sempre, a eterna solidão que envolve e dói.
Depois de navegarem muito tempo em direcção ao sol poente, alcançaram uma grande terra. Pensaram que era ali que se escondiam os horizontes mas, rapidamente, perceberam que aquela terra com grandes montanhas era uma ilha enorme e que o sol ainda continuava a despenhar-se lá ao longe, para lá de um outro mar.
Mais uma vez, voltaram a enfrentar os perigos daquele deserto líquido e continuaram a perseguir um sonho que desaparecia no horizonte como a água na mão fechada. Um dia chegaram finalmente a uma praia de areias alvas sombreadas por coqueiros.
Andaram e andaram para o interior dessa terra ao encontro do fugidio sol poente e repararam que, ao fim de cada jornada, depois de mais uma longa viagem pelo firmamento imenso, ele ainda repousava no regaço morno daquela terra imensa.
Passou-se uma estação seca, veio a das chuvas, e depois outras chegaram, e eles a caminharem sempre, inabaláveis. Até que um dia, cansados, e vendo que a terra não terminava nunca, desistiram de alcançar o pôr-do-sol e ficaram aqui onde nos encontramos agora, e foi aqui que escutaram o pulsar do grande e generoso coração da nossa Mamã África.”
Reinaldo Ribeiro
23/12/98
Sempre a nossa querida África.
Mais um texto maravilhoso sobre a “nossa” África, como um chamamento.