Sombras do Anoitecer

Não foi gradual a forma como ele tomou consciência do seu envelhecimento. Pelo contrário, essa percepção ocorreu de um modo brusco, inesperado, como se a sombra da morte, emboscada num recanto escuro do caminho, lhe tivesse saltado à frente com o intuito de o assustar e de lhe anunciar que o seu tempo estava a terminar.

Já tinha ultrapassado os setenta anos de uma existência rica em experiências. Não se angustiava com o avançar da idade porque, interiormente, não a sentia. Acreditava que outros motivos e outros valores continuavam a abrir-se à sua frente e a satisfazê-lo tanto quanto as alegrias e os prazeres passados. Sempre tinha defendido a ideia de que se procurasse alcançar as ilusões poderia vir a transformá-las em realidade.

Aprendera, desde jovem, a viver intensamente cada momento e a aproveitar o que de melhor cada situação com que se deparava tinha para oferecer. Era a sua maneira de pavimentar o caminho para o dia seguinte, ou seja, para uma continuação natural do dia presente.

No seu espírito, o futuro não existia. Ele baseava-se na noção de que este só seria real quando se tornasse presente, caso contrário, seria apenas o amanhã que nunca chega e só podia considerá-lo como uma porta aberta para lugar nenhum.

Ele era um ser bastante sociável e a amizade crescia dentro de si com o desejo que dela tinha. Por esse motivo, raras vezes se sentiu só. No entanto, receava a solidão e a sua incapacidade de a suportar, e até talvez a si próprio, se nela viesse a encontrar-se. Pensava mesmo que todo o inferno estava contido numa única palavra: solidão.

Quando ficou viúvo, as recordações passaram a ser a sua companhia constante e a memória foi tudo o que lhe restou do passado.

A partir daí começou a sentir o terror da noite e a angústia dos pesadelos que o importunavam quando a perversa escuridão lhe sussurrava, com o seu hálito frio, que ele estava só. Envolveu-se, então, no casulo da sua alma, fez-se crisálida e aguardou a metamorfose, porque acreditava que ela acabaria por chegar no momento que julgasse oportuno.

Como um paradoxo, ele amava a vida mas também era atraído para o seu passado, que sabia irrepetível. Vivia-o como se ainda fosse o presente, tal como lhe sobrevivera na memória, e de onde extraía e bebia cada gota dos prazeres antigos.

Com relutância aprendeu a conformar-se com o novo rumo da sua existência. Já nada mais ambicionava, a não ser poder continuar a construir passados e a pintá-los de acordo com os desejos da sua fantasia.

Caminhava, solitário, sob o céu indiferente, e pensava que a ausência da sua companheira o fazia sentir-se amputado de uma parte importante de si mesmo. Faltava-lhe o calor humano e o carinho que ela lhe dispensava. Sem eles, julgava-se uma estátua que todos apreciam, mas que ninguém afaga, como se fosse apenas um bloco de granito esculpido.

A sua mente, aberta, tal como o seu corpo, permanentemente activo, nunca o tinham decepcionado nem lhe dado motivos para pensar na idade, apesar de, intimamente, sentir que a velhice, gradualmente, ia avançando.

No entanto, mantinha-se forte porque movia-o um desejo bravio de desenterrar as recordações, bem como de alimentar as amizades antigas e as que continuava a semear por todo o lado. E era isso o que lhe dava vontade de viver. Só que ele agora já não sonhava. Embora tivesse sido um homem do sonho, isto é, a utopia sempre foi a seiva que lhe percorreu o corpo e a alma, agora deixara de acreditar nos amanhãs que cantam.

Numa noite de Verão, um encontro inesperado alterou-lhe a melancólica rotina em que vivia.

Deslumbrado, com os olhos cheios de um excesso de beleza e luz, imaginou ter encontrado o acolhimento que os seus últimos anos desejavam. Seria, talvez, um adeus definitivo à solidão opressora que lhe sombreava os caminhos. Ele voltou a sorrir e, mais importante ainda, a sonhar.

Foi, então, que reparou que o sentimento da solidão desaparece muito rapidamente quando se é recebido com amizade e com os braços bem abertos. E foi isso o que lhe aconteceu. Para ele, aquele foi o abraço essencial, um abraço no centro do mundo.

Sentiu uma euforia já esquecida, além do calor daquela mesma chama antiga, que provinha de uma fogueira que ele imaginava extinta. Num devaneio incontrolável quis reaprender a amar.

Pensou até, que a energia perdida tinha voltado e despertado no jovem que ainda existia no seu espírito.

A sua vida construída sobre valores antigos, com ligeiras fugas a esses princípios, e aquela súbita ressuscitação num palco estranho, tão oposto ao seu, evidenciou-lhe o desconforto da sua inabilidade de o pisar.

Também as novidades, que lhe surgiram numa idade avançada, a redescoberta tardia do amor e a impossibilidade do seu florescer, e ainda o medo, o medo do tempo breve que se esgotava, eram obstáculos à concretização do sonho de felicidade que fugazmente acalentou. 

Quando descobriu que o seu corpo já não acompanhava a alegria e a vontade da sua mente, a perplexidade dominou-lhe a razão.

Sem compreender a falência física tentou justificá-la com a viuvez que tanto o abalou e que o lançou nas margens daquela solidão dolorosa. A partir de então, cresceu dentro de si uma imensa sensação de frustração e até de vergonha.

Só mais tarde, no decorrer dos dias sempre iguais aos precedentes, se convenceu de que o seu tempo tinha passado e que ele tinha desempenhado o papel de uma personagem fracassada e ridícula no último palco da vida.

Agora, novamente sozinho, ali no ponto de encontro das suas duas eternidades, olha com tristeza para a fraca luz do ocaso que desenha com traços imprecisos a sua sombra no pálido caminho do anoitecer.

Reinaldo Ribeiro

16/12/2018

One thought on “Sombras do Anoitecer

  • 18 de Janeiro, 2019 at 20:58
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    Como eu te compreendo meu amigo. Um grande abraço companheiro

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