Estátua e Gesto

Ele costumava permanecer imóvel perante as escul­turas e estátuas, como se estivesse hipnoti­zado ou em êxtase, e possuído por uma estranha obsessão.

Nessa prolongada observação tentava, com persis­tência e grande imaginação, perscrutar o espírito que dominava o artista no momento da idealização da expressão corporal que queria cinzelar.

Na verdade, o que mais o atraía numa estátua eram a expressão e o gesto definidos pelo artista. Se a expressão o como­via, a eloquência do gesto, muda e está­tica, fascinava-o. Sentia que havia ali uma simbiose poética entre o seu olhar de observador e o gesto, como se fosse um poder que lhe advinha da grandeza divina.

E ele questionava-se: – Porque teria o artista escul­pido aquele gesto e não outro? Que simbolismo ou o que pretenderia transmitir com eles?

Que significado teria para o escultor um braço erguido em sinal de paz ou de saudação no corpo de um ditador ou de um guerreiro sem armadura ou armas? E um punho erguido ou uma espada demonstrando força, ira, no corpo de um padre ou de num santo? Seriam aqueles gestos meras repre­sen­ta­ções de hipocrisia ou haveria algo mais que ele não conseguia alcançar?

Era essa a sua porfia, a sua luta, a sua obsessão.

O gesto e a expressão facial esculpidos intrigavam-no porque lhe pareciam ser, quase sempre, uma espécie de pantomina ou de máscara que escondia e desvirtuava o verdadeiro carác­ter do representado. Os olhos das estátuas, mortos e sem luz, evidenciavam-lhe essa percepção e provocavam-lhe um arrepio ao ocultarem-lhe o íntimo da pessoa representada?

Para ele, toda a simbologia gestual e expressiva deveria ser natural, sem ambiguidades, sem nada oculto e onde toda a escultura transmitisse somente a Verdade.

Ele conhecia um pouco da história da estatuária e verificara que, desde tempos imemoriais, os homens representavam em estátuas os seus heróis, os seus santos, os seus reis ou os seus deuses. Dessa forma eternizavam pessoas e momentos, contavam histórias e guardavam um significado. Muitas vezes exaltavam apenas a beleza.

Reparou também que a evolução do gesto e da atitude naquela arte tem sido lenta mas gradual. No início as figuras eram representadas, de um modo geral, formais e rígidas, sem espontaneidade ou movimento, e quase sempre apresentavam as figuras humanas em poses estereotipadas.

Depois deram-lhes maior beleza ao acrescentarem o movimento rítmico e ondulatório, principalmente, nas figuras leves, delicadas e espontâneas que, muitas vezes, parecem flutuar no meio de ondas. Foi quando passou a haver uma busca pela forma ideal expressa na representação do corpo humano como a manifestação máxima da perfeição, da beleza e do equilíbrio.

Os escultores compreenderam que as formas proporcionavam um tom mais realista enaltecendo as qualidades plásticas do corpo idealizado, através da exaltação dos movimentos gestuais, em que procuravam representar uma acção.

As figuras passaram, então, a ser mais realistas, menos idealizadas e com o interesse voltado para a expressão facial, em que denotavam sentimentos exacerbados e expressões trágicas, evidenciando o carácter, a honra e a glória do retratado. E, em vez de deuses e histórias divinas, passaram a representar a história dos homens, e das suas conquistas rompendo o sereno equilíbrio das épocas anteriores.

Mas, afinal, o que é uma estátua? Apesar do fascínio que nele exerce, ele julga-a a materialização da vaidade humana, da soberba, da demonstração de poder, do desejo incontido e ingénuo de alcançar a posteridade e, por vezes, de se igualar ou substituir à divindade.

No entanto, ele também tem a noção de que a estátua é apenas “a superfície da pedra, é só a superfí­cie da pedra, é o resultado daquilo que foi retirado da pedra, a estátua é o que ficou depois do trabalho que retirou pedra à pedra, e nada mais”, como bem a definiu José Saramago.

Ele acabou por se convencer de que toda a escultura é apenas isso, a capacidade de perceber e retirar do bloco bruto da pedra toda a beleza e harmonia ocultas que só o olhar sensível do artista descortina no seu interior.

A expressão artística é imensa e abran­gente, a significação do gesto esculpido fá-lo sonhar, intriga-o e até interfere com a sua vida quotidiana, como da vez em que disse para a um amigo que se encontrava sentado: – “Por favor não te levantes! Se o fizeres, isso será um gesto e esse gesto irá interromper um sonho!” Ele estava a olhar para o amigo, não por dentro da realidade, mas num patamar mais transcendental, para onde a sua imaginação o tinha levado.

Um dia, enquanto apreciava a famosa escultura em bronze de Rodin – Le Penseur – sentiu-se, simultanea­mente, na posição de observador e de observado e isso impressionou-o. Num desvario, julgou ter penetrado no íntimo de Rodin no exacto momento da criação. Aquela obra transmitiu-lhe o esforço da imensa meditação do artista, e da sua luta com a poderosa força interna que travou para lhe esculpir os traços e os gestos magistrais, que era comparável ao seu próprio esforço para a compreender. E até a posição em que ele se encontrava na observação da escultura era semelhante à da figura esculpida.

Foi quando sentiu que o artista também o tinha observado e compreendido o seu próprio esforço de entendimento.

Reinaldo Ribeiro

27DEZ2018

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