Viagem no SudExpress
Na estação de Austerlitz, em Paris, o comboio começou a mover-se, lentamente, em direcção ao Sul, por entre silvos estridentes e os ruídos característicos do ferro dos engates das carruagens.
Com curiosidade, um rapaz olha, por uma das janelas da carruagem toda aquela movimentação. Um observador atento, porém, podia notar-lhe uma certa nostalgia no olhar. Era a sua despedida daquela cidade, onde tinha ido pela primeira vez para visitar os pais, pobres emigrantes, que para lá se tinham deslocado em busca de um futuro melhor, que o seu próprio país lhes negava.
A excitação provocada por tantas experiências novas, ocorridas nas últimas semanas, dominava-o. Afinal, ele tinha descoberto, para lá da fronteira, um mundo muito diferente do que conhecia na sua pequena aldeia.
O compartimento de oito lugares em que seguia só era ocupado por um jovem, mais ou menos da sua idade. Não tardou para que se apresentassem: eu sou Manuel e eu sou Ted. Um era português, o outro era americano.
O acaso das frases e a juventude de ambos levou-os a um entendimento espontâneo. Cada um falou sobre o seu país, dos diferentes modos de vida, dos comportamentos e até da alegria de viver dos povos.
O americano, que andava há vários meses a percorrer a Europa, e que iria terminar o seu périplo em Lisboa, comentou, com algum azedume, sobre a frieza de relacionamento que notou nas raparigas europeias para com os rapazes, que era tão diferente da camaradagem e até da igualdade que havia entre os dois sexos no seu país.
O seu companheiro fez-lhe ver que a Europa tinha sido devastada pela guerra há pouco mais de quinze anos e que era natural que as feridas não estivessem ainda saradas nem o luto feito por tantos milhões de mortos. Daí a tristeza ou a alegria contida em que ele tinha reparado.
Com o orgulho habitual, onde se notava uma ligeira sobranceria, Ted não deixou de lembrar que essa guerra só tinha terminado com a intervenção do seu país que, com o seu poderio bélico e económico, tinha eliminado os exércitos da coligação nazi, na Europa, e as forças japonesas, na Ásia.
Manuel, sem dificuldade, reconheceu esse esforço e disse-lhe que tudo isso já fazia parte da História, acrescentando que o Plano Marshall tinha ajudado, e muito, no reerguer da Europa e que os povos europeus estavam gratos à grande nação Americana pela sua intervenção.
Mudando de tema, Ted perguntou ao seu companheiro de viagem se ele gostava de Rock’n Roll, pois na América só se ouvia esse tipo de música. O rapaz português respondeu-lhe que na Europa todos os jovens tinham aderido facilmente a esse novo ritmo vibrante, e a um novo modo de dançar que contrastava profundamente com os ritmos de antes da guerra. Porém, disse-lhe que estava a surgir, na velha Europa, um novo estilo de Rock, que começava a fazer furor, tocado por um grupo de rapazes da cidade de Liverpool, na Inglaterra, conhecidos como The Beatles.
– Já ouvi falar desses – disse o americano – toda a gente aqui fala deles, mas eu ainda não conheço a sua música que, provavelmente, deve ser alguma cópia menor da que se faz no meu país.
– Não vais deixar de os conhecer, garanto-te! – afirmou, lacónico, o português.
A juventude de ambos fazia-os mudar o curso da conversa para os mais diversos assuntos. Falaram de cinema, de desporto, de automóveis, de literatura. Aqui, após se terem questionado sobre os gostos literários de ambos e sobre os autores que mais os sensibilizaram instalou-se, pela primeira vez, um ar vitorioso no, até então, inferiorizado comportamento do português. Ted disse que se limitava a ler aquilo a que ele próprio chamou de best-sellers, e comics books, mas nem sequer conhecia os nomes maiores da literatura americana, já para não falar dos seus grandes poetas. Manuel admirou-se com o desconhecimento do seu companheiro e cresceu em importância quando lhe disse de cor algumas passagens de livros e até de um excerto do poema Raven de Edgar Allan Poe. Para rematar e afirmar a sua superioridade intelectual, ainda lhe falou de alguns clássicos franceses, espanhóis, sem esquecer os portugueses Luís de Camões e Fernando Pessoa. O americano limitou-se a ouvi-lo.
Foi, assim, nesse desbravar do conhecimento das diversas realidades que se mantiveram várias horas.
O monótono matraquear das rodas do comboio, a penumbra do anoitecer e a pálida luz amarelada do compartimento provocaram-lhes uma irresistível sonolência. Os dois rapazes, cada um no seu lado do compartimento, deitaram-se ocupando, cada um, quatro lugares, e logo adormeceram.
Ao fim de um tempo indeterminado, a porta do compartimento abriu-se e um vulto feminino assomou-se perguntando em francês se podia entrar e sentar-se.
O americano, na sua própria língua, logo avisou o português que não iria ceder nenhum lugar do seu lado e continuou a dormir.
Manuel disse para a mulher que se podia sentar aos seus pés, encolheu as pernas e cobriu os pés e as pernas com o seu casaco. Pouco tempo depois a voz feminina pediu-lhe se podia colocar os seus pés sob o casaco. Ele limitou-se a aquiescer.
Não voltaram a pronunciar qualquer palavra e Manuel tentou retomar o sono interrompido.
Porém, sob o casaco, os pés de ambos tocaram-se e começaram um jogo subtil de avanços e recuos desejados e consentidos. Se o rapaz, afoitamente, deslizava o pé pela perna da mulher, esta retribuía-lhe da mesma forma, até que ambos, em simultâneo, chegaram com os dedos dos pés à intercepção das pernas um do outro.
A excitação mútua tinha atingido o ponto mais elevado e aqueles dois desconhecidos não hesitaram em entregar-se por inteiro às delícias de um prazer absolutamente carnal.
Não trocaram carícias, palavras ou beijos, limitaram-se a uma cópula muda, que durou até o rapaz resfolegar num gozo animalesco. E, depois, dormiram.
A gargalhada jovial de Ted acordou Manuel quando o sol começava a inundar o compartimento.
Estremunhado, o português abriu os olhos e, com curiosidade, olhou para a sua amante daquela noite.
A sua perplexidade não podia ser maior. Sentada no seu lugar e ainda com o casaco sobre os pés, uma velhinha enrugada sorria com gratidão para o rapaz que, inconscientemente, lhe fizera recordar a impetuosidade dos anos longínquos em que ela tinha sido uma mulher jovem, bela e atraente.
Reinaldo Ribeiro
29 de maio de 2015
O que te direi Manuel desta tua linda história de amor e não só.