Pescador Enfeitiçado
Pequeninas ondas salpicadas de espuma alva, coroam a imensidão atlântica.
O mar, cadinho de cores, belo e majestático, mistura no seu seio o verde-esmeralda da água com o azul-cobalto do céu. Junta-se-lhe ainda o branco das nuvens esparsas que sobrevoam a superfície do oceano.
Os raios do sol reverberam no manto líquido e ferem-me os olhos.
Embora acostumado por anos e anos de trabalho duro no mar ainda sofro com o reflexo da luz do sol sobre o espelho da água.
Também não é de admirar, porque ali, no mar dos Açores, o céu está quase sempre nublado e os raios de sol apenas fugazmente rompem a barreira de nuvens.
Sou baleeiro e, juntamente com mais quatro companheiros, passo a vida no mar dentro de um barco muito menor que os cetáceos que procuro arpoar.
A minha vida é vivida na expectativa constante de ver os dorsos escuros e luzidios das baleias que abundam naquelas águas e aproximar-me o suficiente para acertar uma delas com um lançamento rápido do arpão.
De pé na proa da baleeira, mantenho-me tenso, horas a fio, a perscrutar atentamente o mar em meu redor, para descortinar os repuxos de água denunciadores das baleias quando vêm à superfície para respirar.
Ao fim de algum tempo o olhar fica-me toldado por lágrimas provocadas pela fixidez, mas que o vento seca logo em seguida.
Entretanto, o pensamento voa livre pelo espaço ilimitado da minha imaginação.
No início da faina conversamos e rimos muito enquanto o barco, impulsionado pelos braços fortes dos meus companheiros, se encaminha para um ponto imaginário no mar que eu determino.
Chegados lá, eles mantêm-se nos seus lugares agarrados aos remos enquanto eu verifico os arpões e os rolos de corda que têm de estar perfeitamente desembaraçados.
E olho o mar…
Aquele mar misterioso tanto pode ser fonte de alegrias, como pode trazer um rosário de tristezas e desgraças. Mas a fé é grande e eu rezo com fervor para que nada de mal nos aconteça e para que a faina seja produtiva.
A minha atenção concentra-se então somente na possibilidade de ver surgir uma baleia ali, bem próximo do barco, que eu possa arpoar e levar para terra.
Mas o tempo escoa-se lentamente e elas não aparecem. Na minha cabeça começam a surgir pensamentos estranhos ligados ao mar e aos seus mistérios.
É o momento mais belo que tenho e surge como se fosse um sonho que me leva através de lendas e estórias antigas, povoadas de seres e deuses marinhos que habitam castelos em reinos escondidos nas profundezas abissais do oceano.
Como espectador espiritual desloco-me facilmente através dos seus longos corredores com paredes primorosamente decoradas, passeio-me pelos jardins paradisíacos e dessedento-me em fontes de água cristalina.
Escuto aqueles entes em longas discussões filosóficas sobre a organização da sua sociedade.
Participo nos seus banquetes luxuosos em feéricos palácios, iluminados com luzes suaves da cor da esmeralda e do cobalto, que desenham nos espaços mais recônditos sombras ténues e acolhedoras.
Assisto ainda a espectáculos de bailado e de cânticos aquáticos, que me conduzem para outra dimensão através da sua rara beleza.
Perco a noção do tempo e do espaço e sinto que ali os meus padrões de referência confundem-se.
Inconscientemente recuso-me a voltar à realidade. A sensação de paz e tranquilidade que me envolve o imaginário recebe também impulsos de um amor suave e lânguido.
Não sei de onde vem, só sei que o sinto penetrar forte no mais íntimo do meu ser.
A fauna marinha vive em total liberdade no espaço comum infinito. Graciosa e silenciosamente, os seres marinhos deslizam entre verdes algas que os saúdam à passagem. Vêm umas vezes sozinhos, outras em cardumes qual nuvem multicolorida e ondulante.
Naquele dia inesquecível, via-a…
Estava só, sentada sobre uma rocha revestida de limos verde-escuro, conchas e corais.
Os seus olhos azuis da cor do céu, sombreados por enormes pestanas, fixaram os meus e ela sorriu. Os seus dentes alvos sobressaíam numa boca perfeita de lábios vermelhos e carnudos.
Aquele sorriso iluminou-lhe o rosto lindo de menina, quase mulher, emoldurado por uns longos cabelos louros.
Um frémito de emoção percorreu-me o corpo e uma alucinação perturbou-me os sentidos ao ouvi-la entoar um canto estranho e belo que eu ouvi com o coração e não com os ouvidos. Completamente embevecido ainda a vi afastar-se vencendo as distâncias, impulsionada pela sua metade peixe, prateada, sobre bancos de coral e jardins com flores de cores deslumbrantes, que se abriam felizes à sua passagem.
Desde esse dia a minha vida mudou completamente.
Eu, pobre pescador sem cultura e sem poder, sou portador de um segredo que alarga as fronteiras do conhecimento humano. Vivo para aqueles momentos belos numa outra dimensão onde impera a paz, a sabedoria e o amor, e vivo também na expectativa de voltar a vê-la.
Nunca mais tive essa felicidade, mas eu sei que aquela sereia é a razão da minha vida e que poderei um dia dar-lhe todo o meu amor.
Os meus companheiros estranham o meu comportamento, mas não sabem que ali, por baixo deles, há um mundo maravilhoso em que o amor é rei, que eu conheço perfeitamente e onde deixei o meu coração.
Eles perguntam-me intrigados:
– Em que pensas João? Já estás outra vez no mundo da lua?
Eu sei que o meu comportamento os leva a pensar que algo de anormal se passa comigo. Já lhes ouvi alguns comentários a esse respeito e mesmo lá na aldeia começam a falar que eu não ando bom da cabeça.
Limito-me a sorrir e a dizer-lhes que estou a pensar na vida, mas que nunca me senti tão bem desde que me conheço.
Hoje, enquanto espero que as baleias apareçam, aguardo mais uma vez que as visões me transportem para aquele reino encantado.
Basta-me fixar um ponto qualquer no mar para que de imediato a imaginação me leve para lá. O brilho do sol ofusca-me e fecho os olhos. Sinto que o meu coração vai explodir dentro do peito.
Lá está ela sorrindo no seu trono de corais a acenar-me com o seu braço nu. Escuto-a e o seu canto é um convite para acompanhá-la. Não tenho dúvidas… ela chama por mim, João Pescador. Num arrebatamento apaixonado e também num impulso irresistível, subo para a borda do barco e mergulho no oceano seguindo aquele apelo.
Ainda ouvi o grito aflitivo dos meus companheiros antes de desaparecer no mar onde a felicidade me esperava.
Desci o mais que pude. A cabeça zunia-me e o peito parecia explodir com falta de ar. Os olhos dilataram-se nas órbitas devido à pressão da água, mas eu mantinha-os abertos para poder ver a minha amada naquelas águas cada vez mais escuras.
Ouvi o seu cântico e vi-a envolta em luz, antes de desfalecer e das forças me abandonarem. O meu corpo deixou de reagir e o meu cérebro já não pensava em nada. Os braços e as pernas balançavam nas águas como algas soltas.
Senti que me forçavam a expelir toda a água ingerida. Reanimei-me ao ouvir as vozes dos meus companheiros. Estava no barco, a salvo – diziam eles. Eu nunca me tinha sentido em perigo em momento algum.
Quando recobrei totalmente a consciência perguntei onde é que ela estava. Responderam-me que uma baleia tinha emergido repentinamente e que me trouxe enrolado na sua cauda. De um golpe depositou-me no fundo do barco e por pouco não o virou.
– Não é da baleia que eu estou a falar. Eu quero saber onde está aquela sereia de cabelos louros?
Os baleeiros trocaram entre si olhares cúmplices e as suas últimas palavras antes de desembarcarmos foram:
– Coitado, agora é que desandou de vez.
Nunca mais voltei ao mar. Os meus companheiros disseram na aldeia que eu me havia atirado à água para ir atrás de uma sereia. Acham que enlouqueci e que não podem controlar-me nem se responsabilizar por mim. Por isso é melhor eu não ir mais à pesca com eles.
Hoje deambulo pela praia vazia, esmagado pela solidão entre a terra e o mar, na expectativa constante de ouvir de novo o seu apelo, entrar num barco e voltar lá para abraçá-la.
Eles não acreditam em mim, mas eu sei que ela, aquela sereia formosa, está lá à minha espera, sentada sobre os corais e chorando lágrimas de amor, que lhe rolam pelo rosto como pérolas soltas de um colar.
Reinaldo Ribeiro
1994