Hotel Timor

O Hotel Timor é um caixote branco atirado para a frente do porto. Não tem artifícios arquitectónicos nem vestígios de uma preocupação estética ou sequer de um qualquer efeito visual. Aparentemente, nunca foi essa a preocupação.

Não sei qual foi a ideia que presidiu à sua construção, no entanto, tanto como qualquer outra pessoa, imagino que, quase logo no início da reconstrução de Timor, decidiram que era necessário ter um sítio onde ficassem as pessoas que estão habituadas a um certo conforto. Provavelmente, pessoas como aquelas que decidiram que era urgentemente necessário construírem o Hotel Timor.

Eu sou uma dessas pessoas. Não das que decidiram, mas das que precisam de um certo conforto. Claro que o “certo” não é indefinido por acaso, umas precisam mais, outras de mais e outras nem por isso. Para mim o Hotel Timor não era o meu sítio, aprecio o conforto, mas não tenho dinheiro nem função para lá viver. Bastava-me ir lá jantar, e isso, era um grande, enorme privilégio em Dili e, seguramente, em todo o Timor.

Dili tem uma certa atmosfera de Casablanca na segunda guerra mundial e o Hotel Timor tem um ambiente de “Rick’s Caffe” com música de fundo em tom de “world” mas com bom gosto, e onde não faltava o próprio “A kiss is just a kiss” numa versão orquestrada muito mais melosa.

No fim do primeiro jantar, quando saía do Hotel, depois de entreabertas as portas de vidro pelos inescapáveis porteiros, fui ultrapassado por dois ingleses, num passo muito mais nórdico que o meu e muito menos aconselhável no clima tropical da noite, mas não tão depressa que evitasse poder escutar a frase que ficou pairando na espessura da humidade: “afterall a timorese is just a timorese”.

Não eram australianos, o sotaque parecia colocá-los mais em Inglaterra, mas também podiam ser de uma elite australiana que desconheço, ou até americanos de Boston, não sei. A frase, porém, ecoa-me até hoje. O que quereriam eles dizer? Provavelmente o que ficou por ouvir, ou antes ou depois do que me chegou. A verdade é que se podia dizer o mesmo de qualquer povo de qualquer país do mundo.

Imediatamente começou a funcionar a minha máquina de juízos. Não a consigo desligar. Desata a funcionar quando muito bem entende e a única coisa que posso fazer é criticar o que produz. Até porque nem sequer sou juiz, nada tenho a ver com a justiça e, aqui entre nós, nutro uma secreta desconfiança em relação a quem faz disso profissão, especialmente no nosso desventurado país. Refiro-me a Portugal, claro.

Mas ali estava eu, a atravessar isolado a pequena rua que bordejava o hotel e a pensar o que seria então essa instância da natureza: o timorense. Não receiem. Não cheguei a nenhuma conclusão, não há nenhuma onde chegar. Parte-se do óbvio: uma pessoa que nasceu em Timor, e pronto. A partir daí passamos por características pessoais, cultura local, etc. fascinantes, naturalmente, mas que não iluminam essa condição irredutível de um timorense ser, apesar de tudo, um timorense.

A noite estava calma, quente, abafada. O céu anunciava nuvens que não se compadeciam na chuva que todos desejávamos. As árvores ficavam sombras fractais apontadas ao céu, sem estrelas, só nuances de sombra. A fraca iluminação era varrida por motas ou por um ou outro arrogante jipão branco da ONU que levava o funcionário à sua vida, ao seu jantar ou apenas a mostrá-lo aos outros.

Cheguei rapidamente ao meu caminho, ladeado pelo muro branco, de uns dois metros, encimado por grandes cantoneiras de ferro aguçadas como espadas e iluminadas por potentes holofotes, retilíneo até à porta do “Kampung” da Cooperação, paredes meias com um quartel Neozelandês.

À porta, na casinha dos guardas, uma televisão reproduzia a nossa RTPi, com o i mais irónico do universo. Estavam os guardas a ver o Portugal no Coração, partilhando os diálogos em tom familiar de uma senhora da Várzea do Vouga, os doces de um casal empreendedor de Leiria e ainda a desgraça de uma criança que não tinha cadeira de rodas que acabaria já comprada no fim da emissão. Só mais tarde, ao ver jovens deficientes montados em carrinhos de rolamentos, aquelas imagens me vieram à memória. Que grande “i” aquele, significando que chegava a todo o lado, mas com a sobranceria de ligar coisa nenhuma a quem não estivesse no rectângulo, gritando que o mundo que interessa, afinal, cabia todinho no jardim à beira mar.

Atravessei o jardim, bordejado em canteiros geometricamente talhados, obrigando-me a um ziguezaguear por carreirinho de gravilha até, finalmente, entrar na casa. Fechei-me no exíguo quarto, a minha cela de missionário da língua e cultura.

Liceu Francisco Machado, Dili

Apagar a luz do quarto tinha sempre um certo toque de comédia porque o holofote exterior rasgava a janela, jorrando tanta luz como anteriormente. Com o tempo havia de tomar sabor de ritual, pontuado pela venda nos olhos para poder dormir e ainda nem tinha ultrapassado o jet lag. Na verdade, era como se ainda não tivesse chegado.

As minhas manhãs começavam de noite. Nunca percebi porquê. Mas com tantas coisas na minha vida que não têm porquê, essa não foi das que me perturbaram, e também não sei porquê. A verdade é que sem saber tinha iniciado um novo ritmo, um novo horário, nesse parêntesis de três meses na minha vida europeia: deitar antes das dez da noite, acordar antes das cinco da manhã.

O pequeno almoço era frugal, mas tudo é necessariamente frugal em Timor, tudo… menos o jantar no Hotel Timor, claro. Quatro fatias de pão de forma, alegrado com doce de qualquer coisa – o que houvesse na mercearia – café solúvel adoçado com leite condensado e, pérola das pérolas, uma cigarrilha 100% de tabaco de Sumatra. Um homem tem que ter os seus luxos, e lutar por eles.

Nessa altura ainda não sabia o valor que aquelas cigarrilhas, a matinal e as outras, iriam ter para mim, o que me faria correr de lojas a supermercados, até começar a procurar quem fosse a Bali para me fazer o divino favor de me trazer o que a minha incúria não soube prever: Gold Seal Premium.

Fumadas à porta da casa, no alpendre branco, sentado nas lajes quando não chovia, numa cadeira meio desconjuntada que já merecia a ferrugem quando o clima a trazia. Fumava e via o céu abrir-se para luz de um novo dia. Fumava e pensava que tinha de deixar de fumar, que o tabaco me matava e mais uma baforada. E a luz, muito rapidamente tomava conta dos seres e das coisas. Começava um novo dia acabando com as silhuetas, diminuindo a imaginação que a escuridão permite. Começava o dia mais depressa que acabava a cigarrilha. Coisa de trópicos, essa rapidez, como se entre o dia e a noite existisse uma infindável história de amor precoce.

Dentro da incessável descoberta e imensa surpresa que cada dia em Timor me trouxe havia uma rotina de repetição diária, gestos e objectivos que de segunda a sexta se seguiam, inexoráveis, como só a sensação do dever nos pode impor. Cada um dos professores tinha a sua. A minha, própria de principiante que não teve ainda oportunidade de negociar os seus privilégios, era a de ter aulas durante a hora de almoço, das 12:30 às 15:30.

Como depois vim a compreender, estava ainda incluído o castigo de ser de letras e, pior ainda, dessa coisa da Língua Portuguesa, a tal que se elogia com muitos e infindáveis rapapés oficiais e públicos, para finalmente merecer apenas os pontapés da realidade dos dinheiros, nas ninharias das coisas reais. Neste caso, em vez das salas com ar condicionado, restava-me, a mim e aos meus colegas, as salas do antigo Liceu, cheias de vidraças às tirinhas, com quatro ventoinhas no tecto, girando desalmadamente, sempre à espera da surpresa de ver o tecto levantar voo abrindo finalmente a sala aos céus intemporais.

Mas esta coisa dos castigos, tem um problema: são terrivelmente subjectivos. Pode o poderoso imaginar que está a retirar uma prebenda e a vítima, pelo mesmo, a sentir-se abençoada.

O Liceu Francisco Machado era uma pérola da arquitectura colonial, com uma traça meio mediterrânica, eventualmente desenhado por um qualquer cidadão que nunca saiu da metrópole. Uma fachada de colunas que tornavam os portugueses demiurgos de toda a civilização ocidental, verdadeiros mensageiros do melhor que a sabedoria greco-latina inventou. Mais, mesmo à sua frente, vastos barracões obviamente abandonados gritavam a sua sigla SAPT, relembrando que o tempo e o espaço são uma e única coisa, e que o agora é o nunca e o sempre, vai tudo do que um homem lhe apetecer.

SAPT significa Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho, um nome que não deixava dúvidas sobre o regime que a tinha gerado. Mas não, era muito anterior, o que assustava, pois as dúvidas surgiram sobre o povo que tinha gerado o regime.

No varandim do primeiro andar do Liceu, à porta da sala que seria de aula, olhava para os barracões e sentia-me oprimido pela ditadura do passado. Lá em baixo, no pátio dominado por uma enorme e pujante árvore, os alunos brincavam e riam, alguns correndo, outros namorando, como se tudo fosse assim doce desde o tempo dos organismos unicelulares, e que assim haveria de ser para todo o sempre, dia após dia. E eu cismava. E pensar pode ser um castigo, bem o sei, mas é um castigo de que não me quero absolver. E mais cismava. E bem vistas as coisas, ficava-me sempre aquele sabor forte a sorte de estar ali, acompanhado pela dúvida arrogante se existiriam mais daqueles momentos, ou se não seriam feitos à minha medida. Decerto que o prazer era indubitavelmente meu.

 

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