A minha vizinha Angélica

Angélica é uma mulher pequena e franzina de olhar doce e sorriso amável. Conheci-a quando fui morar para o prédio onde ela habitava com a família. Casada e mãe de três filhos, o mais velho casara recentemente e emigrara para o outro lado do Oceano. Nunca mais o vi. Nessa época, vivia então, com o marido e dois filhos, um adolescente e outro ainda bebé, que tinha nascido tardio.

O adolescente rapidamente concluiu os estudos, parcos, e logo casou indo morar para a cidade grande. Voltava aos fins-de-semana para um almoço dominical que Angélica confeccionava com amor. O mais novo era o seu menino. Mimado pela mãe ao longo dos anos.

Ao contrário de Angélica o marido era alto, rosado e anafado, com voz de trovão. Olhava as mulheres com desdém e comportando-se como se elas não existissem. Nem mesmo se dignava a cumprimentar as mulheres da vizinhança. Eram mulheres que saíam de manhã para o seu trabalho, contribuindo assim, para   despesas da casa. Para ele a sua mulher devia estar confinada à casa e não dar muita conversa às pessoas que a rodeavam. Nesse tempo, o seu mundo parecia ser o carro, que brunia constantemente. Um bom carro, no qual saía, ufano. Nunca estava em casa. Exceptuando na firma onde trabalhava, era em marisqueiras e restaurantes que o podíamos encontrar, rodeado de amigos e entre garrafas de vinho e muita cerveja, atirando baboseiras às mulheres que passavam.

Angélica nunca usufruía do carro, nem acompanhava o marido nas saídas, ficava em casa. Saía unicamente, de manhã cedo, a pé, pontualmente às 9 horas para ir ao mercado. Uma saída que assumia como a única tarefa externa a cumprir. Voltava e confinava-se à casa. O seu mundo, resumia-se a um pequeno perímetro, um gineceu para ela construído, com paredes altas. Era uma mulher de poucas falas. Com cumprimentos de circunstância saudava os vizinhos. Nunca se alongava nas conversas, estava sempre apressada. Quando interpelada para beber um café, ou para obter uma boleia de carro, rejeitava sempre, amavelmente, com um sorriso doce e uma névoa no olhar. Não tinha amigas que a visitassem. Não tinha férias, nem fins-de-semana. A única vez que se ausentou, foi para visitar o filho mais velho num país distante. Voltou, mais faladora. Contudo da sua estadia, relatava somente as impressões que retivera dos aeroportos e da casa do filho. “Não falava a língua”, dizia. O mês lá passado confinou-a uma vez mais à residência. Sempre a casa, o seu casulo.

O tempo foi passando dolente, nesse quotidiano morno com a cadência habitual.

Entretanto, a vida de Angélica sofre um revés. O carro desaparece. O marido, empresário individual, perde a firma. Deixa de ser tão arrogante, mas sem nunca reconhecer as mulheres como pessoas. Continua a frequentar os amigos, os encontros deixam de ser nos restaurantes e passam para a praça da vila, discutindo futebol e olhando de esguelha as mulheres que passam. Comentando-as. Acabaram-se as almoçaradas e as viagens no carrão.

Ela, tem de ir trabalhar. Tem de pôr o pão na mesa. Sai agora um pouco mais cedo, para fazer limpezas em casas alheias. Volta ao princípio da tarde. Tem à sua espera a lida da casa e o jantar para fazer.

O filho mais novo, cresceu, e cedo deixa de estudar. A situação em casa que até então se tinha pautado por uma aparente tranquilidade, transforma-se. Começam as discussões entre o marido e o filho. Frequentemente ouve-se a voz da mãe, alterada, interpondo-se entre eles. Sempre a defender o filho. Sem habilitações suficientes, o rapaz não arranja emprego. E aqueles que arranja, são temporários e mal remunerados. As discussões aumentam e o filho mais novo de Angélica entra em depressão. Entre uma gritaria imensa e muitos objectos partidos, os bombeiros são chamados e é levado para o hospital ficando internado. Quando o rapaz regressa após o internamento, fecha-se no quarto. Sabe-se que lá está porque à noite as discussões com o pai acontecem. Estabelece-se um vai vem entre a casa e os internamentos hospitalares. A mãe trata-o com desvelo. Fala com ternura do filho. Palavras breves, sempre com pressa de nos deixar. Pouco diz sobre a doença do filho.

O marido entretanto, coxeia, anda de bengala. No entanto, continuamos a vê-lo na praça a discutir futebol. Um belo dia, também ele cai à cama doente. Sem se mexer. Angélica no seu corpo franzino é constrangida a tomar conta do marido, um corpo inerte, que usa fraldas. De onde lhe vêm as forças? Interrogo-me. Deixa o trabalho. Sai pontualmente às nove para as compras diárias e para as visitas ao médico – “vou ao senhor doutor para aviar os remédios”, como ela diz. O filho, que poderia dar-lhe uma ajuda, sai de casa – não consegue aguentar a doença do pai. No entanto, volta com o irmão do meio ao domingo para o costumado almoço. A doença prolonga-se. Alquebrada pelo trabalho árduo, aceita a ajuda de uma senhora de uma instituição de solidariedade. As ajudas que lhe são propostas pelos vizinhos, são sempre rejeitadas. Amavelmente.

Após anos de doença, o marido morre. Angélica não fala do caso, mas nos breves encontros, vai desvendando um pouco da vida da família. Fala do filho mais novo, que casou e que já tem um neto. Fala do neto. O único neto que refere, sabe-se que tem mais, mas nunca são mencionados. Por incrível que pareça é-lhe detectado um cancro. Reage como se nada fosse. Agora, um pouco mais faladora dá conta das conversas com os “senhores doutores”. Continuando as suas deambulações matinais.

Num dia de Verão encontrei-a a sair de casa. Interpelou-me, com olhos em água, num choro pungente. O seu menino tinha emigrado, disse a custo, entre lágrimas dilacerantes. “O seu menino tinha ido para junto do irmão mais velho”, para o outro lado do oceano. Com a voz entrecortada, repetia “nunca mais o vejo”. Daquela débil figura, solta-se um uivo lancinante vindo do mais profundo do seu ser. A dor imensa daquela mulher, transborda pela primeira vez. Uma dor de recalcamentos sem fim, uma dedicação sem limites àquele filho a quem tudo dera, transforma-se repentinamente num uivo aflitivo, que atravessa a atmosfera quente, produzindo-me um arrepio gelado. Foi a última vez que a vi.

Há dois dias que não sai de casa. Estranho. As persianas estão corridas. No primeiro dia, de vez em quando, um choro percorria o apartamento. No segundo dia não se ouviram mais ruídos. Preocupados, os vizinhos bateram à porta. Nada. Alguém tinha o número de telefone da casa. Não atende. Não há contacto com o filho que mora na cidade grande. Os vizinhos juntam-se. Após várias pesquisas e muito tempo despendido lá se conseguiu o contacto. O filho veio. Abriu a porta. Angélica tinha morrido. Só, como sempre vivera, sem conseguir quebrar a concha, que o marido, arquitectara à sua volta.

 

T.S.

 

 

 

6 thoughts on “A minha vizinha Angélica

  • 2 de Dezembro, 2014 at 15:19
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    …e tantas Angélicas ainda existem…

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  • 22 de Fevereiro, 2013 at 11:12
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    que fria nos fica a alma depois de conhecer a Angélica. gosto do que escreves.

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  • 2 de Fevereiro, 2013 at 14:44
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    Teresa
    Só hoje acedi a esta página e li mais um dos teus contos que uma vez gostei.Continua como tu sabes…mesmo que me deixem com a lágrima no canto do olho.
    Um abraço de Ana Paula

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  • 27 de Dezembro, 2012 at 16:09
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    Olá minha querida Teresa, belo texto e excelente mensagem para mulheres e homens, que nos tempos que correm tanta falta faz…
    um abraço
    Anabela Mangas

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  • 15 de Dezembro, 2012 at 13:25
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    Excelente texto, Teresa: um retrato bem realista das famílias do ‘Estado Novo’ mas, que ainda hoje persiste.
    A mentalidade patriarcal instituída que remetia a mulher para o espaço doméstico e oferecia ao homem o espaço público. Essa dictomia do público/privado, homem/mulher, instituída na Grécia clássica e que sobreviveu até ao presente, plasmada numa política discriminatória de género, mas também das classes mais desfavorecidas, uma divisão que nem as maiores revoluções lograram pôr termo e que tem como objectivo vedar o acesso dos mais desfavorecidos à coisa pública.
    Vivemos hoje o reacender dessa política de exclusão, quando vemos a educação ser reservada aos que a podem pagar e quando vemos o Estado a desvincular-se das políticas de cuidados, relegando para o privado as competências do Estado Social.
    De certeza que se não tomarmos medidas contra o presente sistema e nos organizarmos em termos locais, em breve o número de Angélicas aumentará exponencialmente.

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  • 14 de Dezembro, 2012 at 14:26
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    Olá Teresa. Mais uma tentativa de comentário, uma vez que nos artigos anteriores não consegui.
    Parabéns pelo texto.
    Através dele consegues dar-nos conta do que são e como são passadas as vidas de tantas Angélicas que as sociedades ainda comportam e toleram, infelizmente também ainda com muita indiferença.
    Beijoca

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