DO PLANEADO TERMINAL DE CONTENTORES NA TRAFARIA

PauloMoreiraPor Paulo Pires Moreira
Barreiro

Publicado originalmente em Rostos.pt (clique para ver o original)

Mas, apresentando-se Setúbal (e/ou Barreiro) e Sines como substitutos naturais, porque é que tal não é realizado? Sendo verdade que por detrás do interesse neste novo terminal está o maior armador do mundo (na realidade trata-se de uma holding que opera igualmente terminais de contentores e redes logísticas em terra), esse interesse incidirá porventura na tentativa de concorrer com os seus competidores que operam em Sines, os quais seguramente devem, seja por que forma, obstar à entrada de um novo player nas suas “águas”.

Preâmbulo

Certamente que deve ser ponto concordante na ótica da generalidade dos lisboetas (pelo menos daqueles que já tiveram o privilégio de olhar a sua cidade do rio) que a silhueta de Lisboa é um autêntico postal ilustrado. O estuário do Tejo é um dos mais aclamados a nível internacional como sendo dos mais belos e, vista do rio, a cidade proporciona uma deliciosa panorâmica sobre as suas colinas e sobre o casario que se prolonga desde a entrada até à saída da barra e à qual qualquer visitante não deverá certamente ficar alheio.
Como tal, é necessário que estas potencialidades sejam exploradas para atrair mais turistas e visitantes de modo que estas vantagens comparativas naturais se traduzam numa economia sustentada e na criação de novos postos de trabalho diretos, indiretos e induzidos.
Sendo assim, será virtuoso afirmar que o novo terminal de navios de cruzeiro de St.ª Apolónia é uma aposta que deve ser materializada e constitui uma condição obrigatória para que se retirem os dividendos acima enunciados.
Para o turista (e para os nacionais), partilhar um espaço comum com montanhas de contentores não é propriamente o mais agradável (e desfigura a linha de costa) o que faz com que a presença incómoda destas caixas metálicas com 20 ou 40 pés tenham que ser transferidas para outro local… ou, em alternativa, que esta atividade seja pura e simplesmente descontinuada para ganhar espaço para construir o tão almejado terminal de cruzeiros. Vejamos como.

Soluções

Se o terminal de contentores de St.ª Apolónia não for transferido para outro local e simplesmente desaparecer, o remanescente – Alcântara – não terá capacidade nem para acomodar o movimento que o anterior recebia nem espaço físico para crescer, limitado pela malha urbana como está (e isto se o contrato de concessão não for, futuramente, denunciado).
Deste modo, as linhas de serviço terão que optar por outras alternativas para assegurarem a cadeia de abastecimento, ou seja, a conexão dos fluxos de origem e destino dos bens transacionados.
Assim, as alternativas para os armadores e restantes atores intervenientes na cadeia de distribuição corporiza-se nos portos de Setúbal e de Sines o que fará aumentar a escala das suas atividades e criar pressão adicional para que o assunto das ligações céleres e fiáveis por via ferroviária de bitola europeia entre portos e plataformas logísticas saia de uma vez por todas do papel. Existem fundos disponíveis da UE que correm o risco de se perderem… É facto assente, por exemplo, que a linha férrea de mercadorias que ligue Sines ao Poceirão e daí até Caia/Badajoz é essencial para criar uma nova dinâmica para captar mais tráfego com origem e proveniência em Espanha, aumentando a competitividade em relação a Algeciras e promovendo este porto como um gateway de entrada e saída de mercadoria contentorizada para a Península Ibérica.
Os cerca de 220.000 TEU/ano (2011) que St.ª Apolónia movimenta seriam assim tráfego a captar pelos dois portos; Setúbal (o principal porto exportador em relação à carga movimentada mas que apresenta atualmente valores totais de carga ao nível de 2003, ou seja, encontra-se estagnado!) e Sines (que, sendo o primeiro porto nacional no segmento de contentores precisa criar massa crítica para construir o Terminal Vasco da Gama). Estes portos são portanto os substitutos naturais para o desvio deste tipo de carga após se eliminar o terminal em St.ª Apolónia. No entanto, uma terceira alternativa surgiu em público mais recentemente e por iniciativa da própria APS: a hipótese de deslocalizar esse terminal para o Barreiro, ocupando parte dos terrenos da ex-Quimiparque.
Apenas e só por estas localizações alternativas, um novo terminal de contentores na Trafaria deixaria de fazer qualquer sentido e obrigaria pelo menos a que especialistas dos vários setores que não apenas os diretamente ligados aos portos fossem chamados a se pronunciar. Mas há mais. A terra é o ativo mais importante de qualquer porto, seja pelo seu valor implícito seja pela escassez. O espaço onde se pretende implementar a nova infraestrutura na Cova do Vapor é limitado na sua vertente terrestre. Um terminal moderno de contentores obriga à ocupação de grandes espaços de modo a acomodar contentores vazios, áreas de movimentação de cargas e zonas industriais adstritas à capacidade de incorporar valor adicionado às cargas, algo que faz aumentar o âmbito das atividades portuárias e potencia o crescimento de emprego e a racionalização dos espaços sob gestão das AP´s.
Essa limitação física pode ser parcialmente suprida se for recuperada terra ao mar, é certo, no entanto tal ação obriga a que os custos de construção (a que se juntarão os custos com a superestrutura), se elevem sobremaneira o que ao final se deverá repercutir obrigatoriamente no clausulado respeitante aos valores a cobrar que terão que ser mais favoráveis a quem se prontificar a investir na construção e tomar o negócio entre mãos, logo mais desfavorável para o concedente: o Estado.
Deste modo o contrato de concessão pode não se revelar assim um tão grande negócio para o estado e restantes stakeholders (nós portugueses), ou seja, o anúncio da tentativa de captar ganhos financeiros para os depauperados cofres nacionais, pode não passar disso mesmo; uma mera intenção.

Mas, apresentando-se Setúbal (e/ou Barreiro) e Sines como substitutos naturais, porque é que tal não é realizado? Sendo verdade que por detrás do interesse neste novo terminal está o maior armador do mundo (na realidade trata-se de uma holding que opera igualmente terminais de contentores e redes logísticas em terra), esse interesse incidirá porventura na tentativa de concorrer com os seus competidores que operam em Sines, os quais seguramente devem, seja por que forma, obstar à entrada de um novo player nas suas “águas”. Caso contrário até faria todo o sentido que fossem parte licitante após a eventual abertura a concurso internacional do tão falado novo terminal de Sines, – Vasco da Gama -, com capacidade até 4,5M TEU.
Um outro facto interessante mas pouco sabido e que contribui para o incentivo da opção Trafaria junto dos decisores públicos prende-se porventura com a pouca tolerância dos agentes portuários como despachantes e transitários em se deslocalizarem para outras realidades físicas fora das imediações da capital.

Externalidades positivas vs. negativas

Por outro lado, os dirigentes políticos tentam aliciar os moradores e autarcas da zona de intervenção com potenciais ganhos locais e regionais em termos da criação de postos de trabalho, da dinamização da economia local entre outras benesses que o proto terminal irá invariavelmente criar e que servem para atenuar o desagradável sentimento de frustração reinante nas populações locais de que no fundo se trata da remoção de um monte de sucata da capital, eleita como destino para o turista endinheirado, para local mais apropriado, ou seja, mais degradado.
Mas esse aliciamento com base nessas premissas será mesmo verdade? Ora, um terminal de contentores é capital-intensivo, ou seja, necessita de pouca mão-de-obra para operar, embora especializada. Isto transforma o projeto em criador potencial de postos de trabalho que serão tão mais diminutos em número quanto se pressuponha que parte, pelo menos, da mão-de-obra atualmente empregada no terminal de St.ª Apolónia transite para o novo terminal.

Ajunte-se o facto que, decerto não serão os atuais 400mil TEU (isto já incluindo o terminal de Alcântara…) operados em Lisboa que devem ser o alvo estratégico do investidor; o terminal deva estar a ser pensado para essencialmente proceder à atração de tráfego de transhipment. Ora, neste caso, esta atividade secundariza qualquer impacto positivo em termos de desenvolvimento local ou regional uma vez que não interfere com o hinterland: o transhipment é a trasfega de contentores de navios maiores (mother-ships) para navios mais pequenos que repartirão as cargas para outros portos de destino através do feeder, isto é, da navegação de cabotagem.
Mas estes ganhos locais assim transmutados em ganhos residuais podem não ficar por aqui. Não apenas se retira potencial turístico a toda a área a ser intervencionada como se retirarão condições de promoção da qualidade de vida, seja por via direta da atividade industrial ou por via indireta nomeadamente por potenciais acidentes que surjam no terminal ou nas suas imediações.
A via direta é a mais preocupante uma vez que um aumento inevitável de trânsito de/para o terminal será feito essencialmente à custa de tráfego rodoviário que aumentará ainda mais a pressão sobre as infraestruturas viárias e no atravessamento para a margem norte do Tejo, sabendo-se que é a margem norte que mais contribui para o consumo e produção da maior parte dos bens exportados/importados.

Fluxos de tráfego e intermodalidade

Acenar com a construção de uma nova ligação ferroviária da Trafaria até ao Poceirão parece ser desmedidamente otimista uma vez que não parece ser exequível, no atual estado da economia, lançar uma obra de tal dimensão, para mais sabendo-se do atraso que a outra mais importante (a ligação de Sines) tem sofrido e da falta de capacidade ou vontade para o fazer. Essa linha poderá entroncar na Linha do Sul a jusante do Pragal? A linha concessionada à Fertagus estará apta a receber trânsito de mercadorias sem afetar a boa exploração do tráfego de passageiros? Ter-se-á que duplicar a via ou as circulações de carga terão que ser realizadas à noite? Ou terá que ser obrigatório, em termos do bom funcionamento operacional, construir uma rede de raiz e conectar esta à Linha do Alentejo por alturas de Vendas Novas?
Além disso, e excluindo da discussão o demérito de prolongar a existência de gincanas ferroviárias que apenas fazem aumentam a fricção da distância (ver figura), depois do Poceirão (em bitola UIC, em bi-bitola?) que se faria ao ramal de Vendas Novas? E quanto à Linha do Norte? Fica-se com um rendilhado da rede em bitolas diferentes?

Tudo por explicar portanto, e não são pormenores de somenos importância mas sim decisivos para o aproveitamento integral de obras desta natureza, tomando em atenção o volume e custos e concorrem para se aferir da viabilidade ou não deste tipo de projetos, sabendo-se ainda que os mesmos devem obrigatoriamente ser acompanhados de estudos pertinentes para esse efeito: Análises custo-benefício que devem ser efetuadas ex-ante (e ex-post), algo que não foi feito e está longe de demonstrado à saciedade.
E não parece ser razoável esperar que qualquer iniciativa privada substitua o estado numa obra desta dimensão e CAPEX a qual, do ponto de vista do ROI, não apresenta escala para ser rentável a médio prazo e incorpora riscos significativos, principalmente se o terminal for dedicado ao transhipment ou se grande incidência da sua carga a este tráfego for afetada.

Notas finais

Do exposto infere-se que, se for realmente decidido levar para a frente com esta iniciativa, ela poderá ser multiplamente penalizadora: i) não criará emprego como é previsto, pelo menos nos moldes em que é anunciado; ii) será potenciadora de deseconomias a nível local nomeadamente por aumento da poluição, ruído, e desfiguração paisagística que se materializa na perda de qualidade de vida das populações moradoras nas imediações do terminal; iii) penaliza os portos de Setúbal e Sines retirando-lhes carga e capacidade de absorção (exceto no caso em que os contratos de concessão em vigor com os operadores dos terminais fossem de valor fixo, algo que não acontece pois é o regime progressivo de aplicação de royalties o adotado); iv) aumentará a fricção da distância e a pressão rodoviária entre ambas as margens do Tejo e, v) poderá ainda ser, do ponto de vista do rácio investimento (com a ferrovia)/retorno (com a concessão), um mau negócio para o estado.

Seguidamente apresenta-se algumas premissas retiradas do estudo efetuado sobre as duas opções lógicas para a localização do novo terminal de contentores do porto de Lisboa: Barreiro e Setúbal, sopesando pós e contras anuindo porém que, um estudo comparativo deste nível está sujeito a uma análise mais cruenta e detalhada. No entanto, este artigo tem como objetivo primordial lançar algumas luzes sobre um tema que tem tanto de atual, como de premente e como polémico, na pretensão de porventura servir de base a estudos mais elaborados e pormenorizados. Não se pretendem apresentar certezas absolutas mas sim contribuir para a discussão nacional que deve ser empreendida no que respeita à estratégia para um setor que atualmente se apresenta como crucial para o país.

PAULO PIRES MOREIRA
Mestre em Economia Portuguesa e Integração Internacional, ISCTE-Business-School
Doutorando em Sustentabilidade e Desenvolvimento, Universidade Aberta

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