Trafaria, a Ota deste Governo
Artigo de Daniel Deusdado no Jornal de Notícias sobre a instalação do Porto de Contentores na Trafaria.
Se nada for feito, o investimento público mais importante dos próximos anos será a construção do novo porto de Lisboa. É uma PPP (parceria público-privada) na qual corporações internacionais fazem o investimento e pedem, naturalmente, largas contrapartidas – muitos anos de concessão e infraestruturas rodo-ferroviárias pagas por fundos comunitários e Orçamento do Estado.
É estimulante para o Governo bem como para o fortíssimo sindicato financeiro que assegurará a obra. Também parece ótimo para Lisboa-cidade: uma margem ribeirinha livre de contentores. Mas a questão central é esta: um novo porto na Trafaria faz sentido?
E aqui começam os problemas. A estratégia do secretário de Estado dos Transportes, Sérgio Monteiro, conflitua com a realidade empresarial do país – as exportações concentradas a Norte e Centro. Qualquer cidadão de bom senso sabe que nem tudo o que cria emprego e milhões em redor da capital é ouro. A verdade é que um novo porto na margem sul, com a ambição de dotar ‘Lisboa’ de capacidade para navios transatlânticos de grande calado, é estrategicamente absurdo. Porque, das duas uma: ou se acaba o que se está a fazer em Sines (o reforço da capacidade do porto e a nova via ferroviária para Madrid em bitola europeia) ou se faz um porto novo na capital. O Governo quer os dois, em simultâneo?
Outro contrassenso. Na próxima terça-feira realiza-se em Setúbal uma conferência intitulada “Porto de Setúbal, a solução ibérica disponível”. Ora, isto mais não é que os operadores da foz do Sado a dizerem com jeitinho que não querem ficar esmagados entre dois portos gigantes – Sines e Trafaria. Setúbal seria o quê? Será curioso ver o que diz Sérgio Monteiro aos presentes (se aparecer). Claro, pode sempre vender-se um mundo ideal em que todos os barcos da China vêm descarregar a Portugal, para depois os contentores rodarem milhares de quilómetros de comboio até ao centro da Europa… Isto pura e simplesmente não faz sentido. Os navios deixam a carga o mais próximo possível do destino. Sines existirá, se correr bem, como porto de Madrid.
Bom, mas o risco é dos privados, dir-se-á. Não é bem assim. Por um lado a Trafaria torna-se concorrente de Sines, porto onde Portugal está a investir milhões. Depois, porque é preciso gastar quase mil milhões de euros em infraestruturas rodo-ferroviárias para pôr a Trafaria a funcionar (e o financiamento de tais infraestruturas é estatal). Por fim, porque todo este dinheiro e estratégia continua a centrar-se na capital quando a crise provou, uma vez mais, que as empresas exportadoras estão massivamente concentradas a Norte e Centro e precisam desesperadamente de modernização logística – portuária e ferroviária de bitola europeia.
Três pontos extra. O primeiro: retirando-se o porto de Lisboa para a margem sul complica-se ainda mais a gestão logística das empresas do Norte de Lisboa para atravessarem a saturada Ponte 25 de Abril. Vai-se fazer uma nova ponte? Ou pretende-se encher, ainda mais, a atual?
Em segundo lugar, uma questão-chave: não há qualquer pudor do Governo em garantir os tais mil milhões para infraestruturas na Trafaria. Entretanto, no porto mais exportador do país, Leixões, o reforço de capacidade para navios de maior dimensão custaria 300 milhões de euros. O que fez o Governo até agora? Nada. O anterior presidente de Leixões, João Pedro Matos Fernandes, demitiu-se por contestar a inação deste Governo. Ano e meio depois, Leixões continua sem ter à vista qualquer projeto de ampliação. O mesmo se diga da nova ferrovia no Norte e Centro.
A questão não é investir em Leixões, ou no Norte, em vez da Trafaria, mas sim onde é útil. E esse é o terceiro ponto: é glamoroso deixar Lisboa sem contentores. António Costa e o PS permitirão ao Governo que se avance sem olhar para a economia que estão a sufocar? A venda da ANA em monopólio à Vinci, com a Câmara de Lisboa a receber uma indemnização colossal (286 milhões de euros) pelos terrenos da Portela, calou o PS. Mas nem todos os negócios que são bons para PS/PSD/CDS são bons para Portugal. Fazer a Trafaria compara-se ao inacreditável aeroporto da Ota: é a pior prioridade de todas. Assim sendo, não se debater este erro colossal é criminoso.
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