Em Jeito de Homenagem
Há 40 anos, ao levantar-me na manhã do 25 de Abril, ainda antes de acordar o Pedo, para o levar ao jardim infantil, começo por programar o que teria de fazer durante a jornada. De repente lembro-me que tenho de telefonar à Blé, a dar-lhe os parabéns. Quase em simultâneo surgem as imagens, a preto e branco, daquele 25 de Abril de 1972, em que a Blé, amiga de todos os tempos, de todas as resistências e de toda a solidariedade, juntou no seu quarto alugado, nas avenidas novas, um punhado de amigos, para comemorarmos o seu aniversário. No meio de conspirações e de música revolucionária. Entre o Zeca Afonso, o Sérgio Godinho, o Adriano e o Zé Mário Branco, havia um disco do Cília que um amigo meu tinha trazido de Paris. Disco esse, que nem tão pouco tinha sido editado em Portugal, devido à censura. Líamos poemas, bebericávamos vinho do Porto e trocávamos informações. E cantamos, pois a música nessa época era fonte de consciencialização politica e de sabermos que não estávamos sós. Dessa vez trocamos os Vampiros, pela Grândola, sob as explicações de um amigo presente, que nos elucidou como é que a canção tinha surgido. Uma noite, que registei na memória. Noite alta ao sairmos de sua casa, deparamos com o frio e os nossos silêncios. Silêncios como mordaças invisíveis. Cada um seguiu o seu caminho. Solitária na escuridão da noite, pensava, até quando?Despertei das minhas memórias com a campainha da porta. Era a D. Ofélia, uma vizinha, que vinha informar para não sairmos de casa. A rádio estava a passar comunicados para a população se manter em casa. Tinha havido um levantamento militar. De que lado? pensei. Será aquele que há muito esperava, o da libertação, ou seria um golpe dos ultras do regime, do Kaulza de Arriaga? Rapidamente, liguei o rádio e só ouvia marchas militares. Nada. Após me ter arranjado e ao menino, saí para a rua, munida de um pequeno transístor ao ouvido, e do Pedro ao colo. Lá fomos, Av da Igreja a baixo. As pessoas que encontrávamos estavam como eu, expectantes, e davam palpites. “É de esquerda, é da direita”, “são os militares que vêm resgatar os camaradas presos no golpe de 16 de Março”, “não, não é o estertor do regime, é um golpe do Kaulza”. Olhávamo-nos com olhos de esperança e falávamos alto, acelerados, numa pressa de quem tem muito a dizer e não pode. Voltei para casa e de repente ouvi na rádio uma música do Zeca. O coração disparou, brotou uma alegria imensa. Começaram os telefonemas. Era a euforia, mas ainda nada de concreto sabíamos. Com o Pedro em casa, por lá fiquei, agora agarrada ao televisor. Começaram a aparecer imagens do Largo do Carmo, da rendição do Marcelo. Com o pretexto de ir à rua comprar jornais, pedi à minha mãe que ficasse com o menino, e rumei à Baixa. Uma alegria imensa perpassava pela multidão que ia encontrando. Davam-se abraços e beijos a quem não se conhecia, chorava-se de alegria. Qualquer coisa de indescritível. E, vendiam-se, muitos jornais, os primeiros não censurados em 50 anos. E, como na canção “A liberdade estava a passar por aqui”. São imagens a cores que guardo desse dia. Na confusão, esqueci-me de dar os parabéns à Blé. Ela, tal como eu estava na Baixa, a comemorar a chegada da liberdade e da esperança, mas naquela multidão não nos encontramos.Nos 40 anos do 25 de Abril, irei outra vez para a rua gritar a plenos pulmões, contra a situação atual, contra a destruição do Estado social e de todas as conquistas que obtivemos com a revolução do 25 de Abril. Não quero que os meus filhos e neto passem pelas situações que existiam antes desta data. Nos 40 anos do 25 de Abril, quero também gritar, 25 de Abril para sempre. E, já agora não me esquecer de telefonar à Blé.
Teresa Sales