Ercília Costa: “ O Meu Amorzinho”
“O Meu Amorzinho”. Era assim que Mário Bengala, agora com quase 90 anos, tratava Ercília Costa, embora fosse mais de vinte anos mais novo que ela. Tratava-a por tu e conhecia-a desde garoto.
– Uma vez até disse isso à frente do marido dela, e parece que ele não gostou muito – contou o Sr. Bengala a rir muito – É que ela era muito bonita e tratava toda a gente bem. Só tinha a quarta classe e, apesar de se ter tornado famosa, não era nada vaidosa.
Mário Bengala não se lembra bem de como era a família dela. Acha que ela era filha do Manuel e da Vicência mas não tem a certeza. Tinha duas irmãs que também cantavam mas não tão bem como ela.
– Eles viviam nas barracas ali para os lados da Rua Costa Pinto e um dia houve um fogo e as barracas arderam todas…
Lembra-se também que ela era familiar do Augusto Franco que cantava e todos os dias se sentava à sombra a tocar viola e guitarra.
– Parece que ainda há alguém da família dela que canta as cantigas do Augusto. A Ercília costumava cantar no casino da Costa da Caparica que ficava onde é agora a casa de jogos na Rua dos Pescadores. Ela vivia em Lisboa e a casa que tinha aqui era a casa de Verão, mas sempre que vinha costuma ir lá cantar…
Recorda-se ainda que ela vinha para a Costa de táxi, porque ainda não havia autocarros, e que alguém um dia se meteu com ela por causa disso ao que ela respondeu: “Quando se pode, joga-se”. Sabe ainda que Ercília teve dois maridos, mas não faz ideia qual deles era o pai do filho que morreu, porque nesse tempo era tudo muito escondido…
– Mas ela teve mesmo um filho? – Perguntámos
– Então não vê que ela até fala dele nas canções….
Nascida na Costa da Caparica a 3 de Agosto de 1902, Ercília Costa foi actriz de revista e cinema, compositora e fadista e foi a primeira fadista portuguesa com uma projecção internacional que a transportou aos palcos de Hollywood.
Tornou-se popular na primeira metade do século XX, tempos em que recebeu as alcunhas de “Sereia peregrina do Fado”, “Santa do Fado” e “Toutinegra do Fado”, mas o seu nome é hoje pouco recordado pois as gravações discográficas que realizou são anteriores à década de 50, altura em que o discos gravados começaram a popularizar-se em Portugal.
Nasceu filha de pescadores, num meio pobre, onde o fado servia de regozijo para muitos, e foi baptizada Ercília Botelho Farinha Salgueiro, tomando mais tarde o apelido “Costa” numa referência às suas origens, “das quais se orgulhava”.
Quando tinha apenas 3 anos a sua família mudou a sua residência para a Rua Maria Pia, em Lisboa, facto que resultou no seu grande carinho pelo bairro de Alcântara, o qual a fadista afirmou durante toda a sua vida.
A entrada de Ercília Costa na vida artística resultou do gosto que desde muito nova tinha em cantar. Para ajudar na subsistência familiar iniciou a profissão de ajudante de costureira, mas ainda adolescente, apresentou-se numa audição no Conservatório de Lisboa, em resposta a um anúncio, para integrar o elenco de uma récita a realizar no Teatro São Carlos. Apesar de ter sido uma das seleccionadas o projecto acabou por ser cancelado, mas Eugénio Salvador, actor que com ela se havia cruzado no Conservatório, lembrando-se da voz que escutara naquele dia, convidou-a novamente para o teatro, e é assim que Ercília entra, ainda adolescente, para a companhia do Teatro Maria Vitória.
No entanto, embora tenha estreado como actriz de revista, actuado com vedetas como Luísa Satanella ou Beatriz Costa, foi como fadista que mais se destacou.
O seu início de carreira como cantadeira de Fado deu-se no ano de 1927, no Teatro da Trindade, onde fez um dueto com Alberto Reis e em 1930 a fadista vence o 1º prémio de cantadeira, no Concurso de Fados do “Sul América”, uma organização do jornal “Guitarra de Portugal”. O intérprete masculino vencedor foi Alfredo Marceneiro, com quem integra, pouco tempo depois, a “Trupe Guitarra de Portugal”, um conjunto de fadistas e instrumentistas que se disponibilizam para digressões pelo país. A este grupo pertenciam, para além dos já mencionados Ercília Costa e Alfredo Marceneiro, os cantadores Rosa Costa e Alberto Costa, e os instrumentistas João Fernandes e Santos Moreira.
Ao longo da década de 30 Ercília Costa, a exemplo do que já vinha acontecendo com Adelina Fernandes, fará parte das fadistas convidadas a apresentar-se regularmente na interpretação do Fado no Teatro de Revista, substituindo as intervenções de atores no Fado e criando assim um espaço próprio de apresentação dos profissionais do Fado, que será seguido por grandes nomes como Berta Cardoso ou Hermínia Silva.
Destacam-se na sua ligação ao Teatro de Revista as peças “Feira da Luz”, levada à cena em 1930 no Teatro da Trindade; “O Canto da Cigarra”, apresentada, no ano seguinte, no Teatro Variedades, onde Ercília Costa fez um grande sucesso com o tema “Fado Lisboa”, de autoria de Álvaro Leal e Raúl Ferrão; ou, ainda, “Fogo de Vistas”, em 1933, no Teatro Avenida; “Fim do Mundo”, em cena no Coliseu dos Recreios, em 1934; e “A Boca do Inferno”, apresentada em 1937 no Teatro Apolo.
A fadista fez, também, algumas aparições no grande ecrã, nos filmes “Amor de Mãe”, realizado por Carlos Ferreira em 1932, “Amargura”, “Lisboa 1938” e, por último, na longa-metragem “Madragoa”, estreada em Janeiro de 1952, onde interpretava o papel de mãe do protagonista, personagem a cargo de Carlos José Teixeira.
Ercília também se exibiu ao vivo na rádio, nas emissões da primeira estação de Portugal, a Chiado CT1AA, e em retiros e casas típicas, como o Ferro de Engomar ou o Solar da Alegria, mas cedo teve oportunidade de realizar longas digressões de espectáculos, em Portugal e no estrangeiro. Assim, logo em 1932, acompanhada por João da Mata, Armandinho e Martinho d’ Assunção, faz espectáculos na Madeira e nos Açores e, em 1936 faz a sua primeira saída do país, para apresentações no Brasil, iniciando uma série de deslocações de longa duração que a tornarão na primeira fadista a internacionalizar-se junto das comunidades emigrantes.
Na sua primeira ida ao Brasil fazia parte da Companhia de Vasco Santana e Mirita Casimiro, mas o seu sucesso foi de tal forma estrondoso que acabou por permanecer uma longa temporada nesse país, regressando apenas no ano seguinte, em 1937, altura em que Lisboa lhe realizou duas festas de homenagem, uma no salão de chá do Café Chave d’ Ouro e outra no Retiro da Severa.
Ainda nesse mesmo ano de 1937, Ercília Costa vai a Paris, para fazer espectáculos na sala Comédie Française nos Campos Elísios de Paris. Em 1939 desloca-se, a convite do Secretariado de Propaganda de Portugal, aos Estados Unidos, para fazer um espectáculo no Pavilhão Português da Feira Internacional de Nova Iorque, acompanhada por Carlos Ramos.
A esta actuação na grande exposição de Nova Iorque seguem-se dez meses de actuações por inúmeras cidades dos Estados Unidos, apresentando-se a fadista com grande êxito na Califórnia, onde actua em Los Angeles e em Hollywood.
Em 1945 faz a sua terceira digressão para actuações no Brasil, a qual dura quinze meses, e passa por espectáculos em teatros, cinemas e actuações na rádio. Nesta temporada Ercília Costa é integrada, como única artista portuguesa, na Companhia de Alda Garrido.
Muitas vezes apelidada de ”Santa do Fado”, por colocar as mãos em posição de oração, Ercília Costa é hoje pouco recordada, fruto possivelmente da falta de reedição em formato CD das muitas gravações que fez, por estas serem datadas da primeira metade do século XX. Neste formato encontra-se apenas disponível uma recolha das suas gravações com Armandinho, editada em 1995 na colecção “Arquivos do Fado” da Tradisom.
As suas primeiras gravações discográficas datam de 1929, altura em que se deslocou a Madrid para gravar para a Odeon, integrando uma comitiva constituída por Berta Cardoso, Joaquim Campos e Cecília de Almeida, sendo todos os fadistas acompanhados pela guitarra portuguesa às mãos de Armandinho e pela viola de Georgino de Sousa. Posteriormente terá também edições discográficas em Portugal, bem como no Brasil e nos Estados Unidos. O seu último registo discográfico, o LP “Museu do Fado” data de 1972.
Ercília Costa popularizou inúmeros temas como: “Amor de Mãe”, “O Meu Filho”, “Fado Tango”, “Fado Aida”, “Fado Ercília”, “Juro” ou “Fado da Amargura”, sendo também compositora de alguns dos seus maiores êxitos, caso de “Fado da Mocidade” e de “O Filho Ceguinho”.
Em 1954, após a sua participação no filme “Madragoa”, a fadista resolveu dedicar-se inteiramente ao seu casamento e, sem despedidas, retirou-se totalmente da vida artística. Ercília Costa não fez mais espectáculos ao vivo até à data da sua morte, em 1985, na sua casa de Algés. Tinha 83 anos.