A Cidade de Areia
Jaisalmer fica no deserto Thar, no noroeste da Índia, sendo a última cidade indiana antes daquela fronteira com o Paquistão. Neste local sensível, a presença militar é proeminente.
Jaisalmer foi fundada em 1156, por Jaisal Bahti, pouco depois de Afonso Henriques fundar o nosso país, em 1145. A família Bahti dominou a região até à independência da Índia, em 1947.
A riqueza da cidade deveu-se em grande parte à sua situação geográfica, a qual determinou a sua importância na Rota da Seda. Porém, ao longo dos séculos, à medida que as relações internacionais se alteravam, culminando com a inclusão no Império Britânico, que acentuou as relações marítimas e a ferrovia, a economia da cidade foi mudando.
É com a independência e, sobretudo, com a partição do Paquistão, que Jaisalmer ressurge, mais uma vez, igualmente devido à sua localização geográfica, mas agora como centro militar e aduaneiro, quanto mais importante conforme crescia a animosidade entre os dois países.
No entanto, imunes à passagem do tempo, os camelos manifestam a sua presença e a sua importância, tanto no turismo quanto na paisagem. Tal como em outras cidades do Rajastão, celebra-se mesmo um grande festival anual para os celebrar.
Jaisalmer é imponente, encimando a montanha de arenito, sendo construída com esse mesmo material, fazendo jus ao nome que a celebrizou: Cidade Dourada: na verdade, um verdadeiro castelo de areia.
O Forte de Jaisalmer, que empresta a sua imponência à cidade que vive ainda entre os seus muros, é Património da Humanidade, consagrado pela UNESCO.
Curiosamente, a entrada do forte teve de resolver um imbróglio aparentemente impossível: suficientemente grande para permitir o trânsito de elefantes e, também com alguma forma de parar a sua entrada em caso de necessidade. Ora, parar um elefante, é mais fácil de dizer do que fazer.
Por outras palavras, deixar passar os seus elefantes, mas deter os elefantes dos inimigos. Como cumprir esta proeza?
A solução passou por uma sucessão de enormes portões, criando uma entrada em zigue-zague, com inúmeros pontos de defesa, janelas bem altas, que permitiam atingir as investidas indevidas, graças à força da gravidade, mas suficientemente altas para ficarem resguardadas das setas vindas do solo. Engenhoso.
Transpondo as enormes portas da cidade, uma população de mais de três mil almas distribui-se por estreitas ruas, emaranhadas, desafogando em pequenas praças, polvilhadas pelo palácio e pelos templos, na maior parte, jainistas, mas não só, que nos surgem, imprevistos, ao dobrar uma qualquer esquina.
Um labirinto, sempre imprevisível, especialmente porque tudo tem a mesma cor, dourada, e a mesma configuração. Nunca se está certo da nossa posição.
Quando chegámos à estação de comboios, de madrugada, ficámos a saber que o nosso alojamento tinha solicitado a outro que nos transportasse. Eram os “Rapazes do Deserto”, solícitos, que não perderam tempo para nos convidarem a fazer tours de camelo. Que não, obrigado. Para camelos, bastávamos nós.
Todos os dias negociávamos o labirinto para ir onde queríamos. Mas parecia que estávamos sempre no mesmo sítio. Ilusão. Por outro lado, bastava seguir em frente e, mais tarde ou mais cedo, chegávamos onde queríamos.
Percorríamos vielas, subíamos escadarias até às muralhas – ena a vastidão do deserto – descíamos, mais vielas, procurando o bom do café expresso, que, surpreendentemente encontrávamos.
Também encontrávamos – ai – nesta ou naquela viela, a vaca desgarrada, ruminante, olhando-nos com ar de “e agora, o quê?”
Agora nada. Voltar atrás e virar na primeira oportunidade para, às vezes, ir dar com o rabo pachorrento, da mesma vaca. Parecia um jogo de vídeo…
Rapidamente, porém, estabelecemos a nossa rotina: manhãs no labirinto, lojas, palácios e templos, almoço algures, mas não no mesmo, tardes no labirinto, lojas, palácios e templos, e a pérola do dia: pôr do sol nas amuradas do forte, bebendo tranquilamente um lassi, perscrutando os confins do deserto Thar, para lá das muitas antenas de diversos feitios, bem no fundo, distorcidas pelo calor e que proporcionava um pôr do sol simplesmente inesquecível. Todas as santas tardes.
Aos nossos pés, uma larga avenida que circundava as ameias e para lá dela, casario e tendas, tudo povoado por humanos, ovelhas, cabras e, claro, um ou outro dromedário no seu passo lento e desengonçado.
Há um palácio indissociável do forte e das muralhas. Tudo é indissociável do forte e do palácio e da montanha. Construído juntamente com os grossos muros, com a mesma matéria prima dourada, o arenito, porém, ao contrário da solidez deles, o palácio é rendilhado e ornamentado até à loucura.
Percorremos as salas, corredores e vestíbulos, trabalhados até à exaustão, sendo difícil imaginá-los como palco das violentas batalhas e terríveis cercos que sofreu ao longo dos séculos, contra Mughals de Deli e Rathores de Jodhpur.
O palácio, tão elegante como todo o Rajastão, tem sete andares, oferecendo um labirinto de salas, com uma ala ainda privada, para uso da família Bahti e, no topo, um panorama privilegiado da cidade e do Thar.
Curiosamente, uma dessas salas era dedicada à exposição de uma opulenta coleção de selos(!) que parecia especializada no Rajastão.
As janelas, abertas para o interior da cidade, iam oferecendo cenas do quotidiano, uma das quais, a construção de um edifício, apresentava a particularidade dos trolhas serem mulheres e, como sempre, envergando o tradicional sari. Parece mentira, mas é tão verdade que aqui fica a foto.
Certa vez, no jogo que parecia o PacMan, mas seria mais uma espécie de PacVaca, não dei uma volta suficientemente larga, ou a vaca fez marcha atrás, não sei bem, o que sei é que fiquei bem de frente para ela, a poucos centímetros dos seus cornos ameaçadores.
O certo é que ela não gostou e nem sequer hesitou. Deu-me uma cornada, digamos, amigável, porque, em querendo, decerto me mataria. Mas não, atirou-me para a minha direita, fazendo-me entrar, voando, numa loja, entre tantas, de máquinas de costura.
E não, não eram da Singer, como seria de esperar, mas sim de uma marca de que nunca ouvira falar: Rita.
Os donos, deveras fleumáticos, olharam-me ainda durante o voo, como se tivesse sido algo do mais natural. Eram pai e filho e este ajudou-me a levantar. Disse-me então: “o meu pai quer oferecer-me uma viagem e deu-me à escolha: Londres ou Hong Kong?”. Isto, com a naturalidade da conversa mais apropriada para o momento.
Compreendem os leitores, nem estava à espera da cornada, e muito menos da questão. Fui-me recompondo, sacudindo a roupa, verificando que não me faltava nenhum membro, e respondi: “escolha difícil meu amigo, ambas as cidades são interessantíssimas, mas para mim, acho que se vai divertir mais em Hong Kong. No entanto – ressalvei – se procura museus, música ao vivo ou galerias de arte, Londres seria possivelmente a melhor escolha”.
Afastei-me das máquinas Rita – e da vaca – e continuámos o passeio.
Há nada menos que sete templos jainistas em Jaisalmer, todos eles com as pedras de arenito bordadas como se fossem crochet. Todos com homens santos e tabuletas a dizerem para não se dar esmolas aos homens santos. Em vez disso, devíamos colocar o dinheiro numa caixa.
Que faziam todos os homens santos em todos os sete templos? Pediam esmola. Confuso, não é?
Para entrar em qualquer destes templos, temos de remover os sapatos, como seria de esperar, mas também qualquer acessório feito de couro, mesmo que seja minúsculo, como a correia de um relógio. As vacas são sagradas…
O maior destes templos chama-se Chandraprabhu e é o primeiro a explorar pois é esse que tem a bilheteira para todos eles. À sua direita situa-se o Rikhabdev, também de colunas infinita e rigorosamente trabalhadas, mas neste caso protegidas por vitrinas. Atrás do primeiro templo fica o Parasnath e aí, atravessando uma porta, acede-se ao pequeno Shitalnath, com uma imagem do seu fundador, desta vez em oito metais preciosos, e, mais uma vez, através de uma outra porta, acede-se ao Sambhavanth, onde sacerdotes moem sândalo para fazer objetos que serão oferecidos.
É através deste último templo que, descendo umas escadas, se tem acesso à Gyan Bhandar, uma preciosa, apesar de diminuta, biblioteca que preserva antigos e valiosíssimos manuscritos ilustrados. A biblioteca foi construída em 1500, e alberga manuscritos mais antigos ainda…
Uma outra coisa que não posso deixar de realçar é que o povo indiano, entre outras coisas, foi agraciado com a bênção do humor. Podemos encontrá-lo por todo o lado e podemos até exercitá-lo à vontade.
Até mesmo a ironia.
Num dos nossos percursos pelo labirinto da cidade levou-nos a um canto onde uma senhora ainda jovem parecia esperar por nós à porta da casa. Sem hesitações desafiou-nos: “não querem visitar a minha casa?” Nós, também sem hesitar, entrámos para a pequena sala, com o fogão – uma simples bancada com um orifício para o local onde arderia uma fogueira – uma cortina para o quarto com uma esteira, tudo iluminado por uma simples fresta, sem janela e tudo, adivinharam, de areia ou arenito, resplandecendo o inevitável brilho dourado.
“Dinheiro”, pediu-nos a senhora de mão estendida. Claro que sim.
Um outro aspeto curioso de Jaisalmer é que a venda de produtos comestíveis ou bebíveis com marijuana é legal. Mas não é questão para se andar de porta em porta procurando um “dealer”. Pelo contrário, há lojas especiais para o efeito e, podem não acreditar, mas chamam-se lojas Bhang.
Pois é, não sei se em indiano tem o mesmo significado, mas lá estão elas e em seu redor, tudo tem um ar mais feliz…
Todo este mundo dourado, a começar pelas muralhas, tem uma ameaça feroz: água.
Há uns anos, várias organizações, estatais e não só, iniciaram obras de restauro porque as muralhas começaram a abater. Afinal, estamos a falar de um forte de areia, e bem sabemos o que isso significa: areia e água…
Acontece que nos anos 60, os habitantes do forte se contavam em poucas centenas e agora são cerca de 3000. As canalizações e esgotos parecem ter sido responsáveis pelos danos.
Há quem advogue a redução forçada de habitantes, com a sua relocação fora das muralhas, além de várias outras medidas de restrição de uso de água.
Todos os turistas são recordados desta situação, sendo-lhes pedida a restrição do uso de água…
Em redor da cidade, fora das suas muralhas, fica uma parte significativa da população, cerca de 60 mil residentes. Há comércio, restaurantes e, claro havelis – as residências tradicionais indianas, com janelas protuberentes.
Quase tudo na mesma cor.
Saímos de Jaisalmer como entrámos, no comboio noturno, desta vez para Jaipur, acomodados num camarote com camas, recordando os tempos do Wagon-Lit e que nos permitia esperar uma viagem descansada nos braços de Morfeu.
O nosso camarote, para duas pessoas, era bastante apertado, mas, mesmo ao lado, um outro, para quatro pessoas, estava vazio – aliás, o comboio estava quase deserto.
Atacámos e ocupámos as camas, com as mochilas ocupando as outras camas.
Pouco depois chegou o revisor. “Os vossos lugares não são aqui”. Que bem sabíamos, mas prometemos voltar ao nosso se fosse caso disso.
Não foi. E dormimos como dois luizinhos até Jaipur.