A Ilha da Espingarda
Tanegashima é uma ilha japonesa, uma das Ilhas Ōsumi, mas não a maior delas. Tem cerca de 445 km2 e uma população de perto de 33 mil almas. Administrativamente pertencente à prefeitura de Kagoshima, grande cidade na ilha de Kyūshū, não muito longe da tristemente célebre Nagasaki.
A minha ida a Tanegashima, acompanhado do meu filho, começou em Tóquio, como já escrevi num outro artigo (ver aqui), tendo depois voado para Kagoshima onde me reuni a uma comitiva de Macau para participar no Festival da Espingarda. Sim, precisamente, aquela espingarda.
Fernão Mendes Pinto escreve na sua extraordinária obra, Peregrinação, que terá sido ele próprio a entregar uma espingarda ao dáimio (lorde) Tokitaka, senhor da ilha onde aportaram.
Hoje, os historiadores têm dúvidas da veracidade desta afirmação pois colocam-no, à data, na Birmânia, considerando ser muito mais plausível que tivesse sido Diogo Zeimoto e António Mota.
Seja como for, este episódio singelo e corriqueiro: a venda de dois mosquetes, momento que para nós é quase apenas um detalhe literário, para os nossos amigos japoneses é algo profundamente transformador que coloca o Japão numa rota de desenvolvimento, a começar pela sua própria unificação, terminando uma era de guerras entre senhores feudais.
Tudo devido à técnica do parafuso. Parece uma anedota, mas é a mais profunda das verdades.
Mas vamos por partes.
A pólvora e os seus usos eram há muito conhecidas dos japoneses, por via da vizinha China, seu inventor. Colocá-la em cilindros de bambu para obter diversos efeitos pirotécnicos era também já familiar.
A ideia de colocar um projétil num tubo, de forma a ser impelido por uma explosão de pólvora não lhes era completamente impensável, mas sim algo impossível para a técnica disponível na época.
De facto, após a venda destas duas armas a Tokitaka, elas foram imediatamente copiadas sem dificuldade, mesmo o sistema de gatilho. O que não conseguiram era terminar o cano da espingarda de forma a que aguentasse firme a explosão da pólvora no fundo do tubo, lançando o projétil para o lado oposto e aberto desse tubo – o cano – atingindo o que desejassem.
É precisamente aqui que se aplica a técnica do parafuso, a tal forma de encerrar com firmeza o fundo fechado do cano da espingarda.
Diz a história que só 10 anos após a venda das armas, quando os portugueses regressaram à ilha, é que finalmente resolveram o problema, ensinando a tal técnica do parafuso.
Quando os exércitos dos descendentes de Tokitaka começaram a dispor de mosqueteiros às dezenas e rapidamente às centenas e aos milhares, a vitória sobre todos os outros shogunatos foi avassaladora e só terminou com a unificação, ou seja, a derrota de todos os outros.
Esse ponto de contacto com tão profundas consequências, verdadeiro epicentro de um terramoto histórico-cultural, deu-se num dos areais de Tanegashima, em 1543, quando a lorcha chinesa com portugueses a bordo conviveu com os então conhecidos como léquios – os japoneses.
Acontece que Tanegashima, nome que atualmente denomina a ilha, vem precisamente do nome que na altura atribuíram à espingarda e passou a ser também, de forma coloquial, como os outros japoneses denominavam os habitantes daquela ilha, tal a importância daquele encontro.
Regressando à minha história, desembarquei no aeroporto de Kagoshima para me juntar à tal missão de Macau, que, por sua vez, se integraria nas comemorações oficiais do “Festival da Espingarda”, acontecimento anual, organizado pelas autoridades locais, que empenha e coordena os recursos de toda a ilha.
Ainda hoje se celebra.
Encontrámo-nos, por fim, com o grupo organizador, patrocinado pelo Governo de Macau e liderado por Amílcar Martins, que tinha concebido a ideia e o plano da deslocação daquela complexa comitiva, com uma pequena ajuda minha, que incluía desde a Lorcha Macau– construída para o efeito – a Marinha Portuguesa, o Rancho Folclórico de Macau – envolvendo umas dezenas de pessoas, assim como diversos estudantes – figurantes do cortejo – e autoridades do Governo de Macau e ainda pessoas, como eu, que pagaram do seu bolso as despesas necessárias à participação.
Foi nessa altura que fiquei a saber que naquela noite iria ter lugar uma receção a todos os participantes, oferecida pelo nobre descendente do Dáimio Tokitaka, de seu nome Tokikuni Tanegashima, 15° titular do clã, atualmente engenheiro municipal.
Era como se Tokitaka, ele próprio, se estendesse pelos tempos para saudar os portugueses, uma vez mais, como terá saudado aqueles aventureiros de quinhentos, que deram à costa, nos baldões de uma tempestade.
Dizia imenso sobre a singularidade daquela situação, a importância conferida pelas autoridades de ambos os lados e também o papel que a nobreza local ainda tem no quotidiano.
Segundo a crónica japonesa do acontecimento, a forma como os portugueses foram percecionados pelos “japões” primava pela sua rudeza, nomeadamente à mesa, pelo vestuário andrajoso e até pelo seu intenso odor corporal.
Pela minha parte, ao contrário dos nossos ancestrais, os pauzinhos já não tinham segredos. Porém, confesso que as mesas japonesas sempre foram um desafio para mim. Simplesmente não sei onde pôr as pernas. A posição de lótus, no que me diz respeito, é qualquer coisa acrobática, mirabolante, numa palavra, inatingível.
Mas lá foi decorrendo, com as pequenas peripécias naturais em situações como aquela, com um detalhe pleno de significado. O nobre descendente de Tokitaka fez questão de brindar, mesa a mesa, todos os convivas.
Estamos a falar de mais de duas dezenas de mesas. Aproximava-se de cada mesa, com os seus três assistentes, um deles para segurar a bandeja, outro para servir a cerveja e outro para os obséquios, fazia o seu agradecimento pela nossa presença, dizia “Kampai” e bebia. De resto, bastante semelhante ao cantonês.
Desculpou-se com o brinde de cerveja, pedindo a nossa compreensão: “tantos brindes a saquê, nem um dáimio resiste!”
O sakê tinha vindo sendo servido sem perguntas, incessantemente, sendo substituídas continuamente as suas pequenas garrafinhas de cerâmica, vazias, por outras, cheias. E nós, bebendo-as.
Gozando da sua natureza tépida, adocicada e aparentemente branda, com o sabor nem agressivo nem ardente, de arroz, o sakê é um malandro que nos apanha, cobardemente, sem darmos por ela.
Acontece repentinamente, se não antes, quando nos vamos levantar, confiantes de nada haver que sugerisse maior cuidado, descobrimos, tarde de mais, que afinal, a cabeça também anda. À roda.
Contudo, o que tem de ser… e capturando todas as direções da cabeça numa só, lá rumámos ao hotel.
No dia seguinte havia que acordar cedo, arrumar bagagem que seguiria o seu caminho, deixando-nos livres para embarcarmos bem cedo na Lorcha Macau, que nos levaria até ao porto de Tanegashima, onde nos esperavam as autoridades numa cerimónia previamente preparada.
Depois da noite bem dormida, entrámos na Lorcha, estremunhados, para assumir as personagens que haviam sido anteriormente estipuladas, recebendo o respetivo guarda roupa. A mim coube-me o nobre, com um enorme colar de babado, cheio de folhos, demasiado desconfortável; ao meu filho, pajem, aconselhado pela sua idade.
Estava eu com o intrincado colarinho, a pensar no papel social do desconforto, assumido pela elite, quando as ondas, o balançar da lorcha, se interpuseram à minha cogitação. Eram muito mais desconfortáveis.
Não era nenhuma tempestade, eram apenas ondas, grossas de mar aberto, que faziam a lorcha – filha da caravela e do junco – subir e descer, abanar de um lado para o outro, obrigando toda a gente a segurar-se bem para não rebolar no chão.
Foi o suficiente para alguns de nós, incluindo eu, ficarmos de plantão na amurada a “atirar carga ao mar”. Curiosamente, esse momento foi fotografado e posteriormente publicado, mas com uma legenda que atribuía a situação à saudade. Pois, saudade do gregório…
Só a visão, ainda longínqua do porto de Nishinoomote, a maior cidade da ilha, deu a segurança que acalmou os estômagos, especialmente quando percebemos que no cais nos aguardava a nata da ilha com banda filarmónica e uma grande faixa que dizia: Bem Bindos. Apesar da ortografia, não podíamos deixar a História ficar mal.
Amílcar Martins, fazendo o papel de Fernão Mendes Pinto, entregou a réplica da espingarda ao Presidente da Câmara, ao som de uma marcha épica e rápida da filarmónica, que vim a perceber mais tarde que pertencia à escola secundária local.
Ao fundo, uma estátua estilizada do Infante D. Henrique, ali denominado como “Homem do Mar”, parecia concordar com a cerimónia.
O Festival – Teppo Matsuri
O ponto alto do festival é o cortejo que atravessa a rua principal da cidade e atrai os habitantes de toda a ilha. Há um outro cortejo, de forma e natureza xintoísta mas onde nós não tínhamos cabimento.
O nosso cortejo era uma coisa assim à americana, algo pensado tendo em vista o espetáculo e os espetadores.
À frente, abrindo a longa procissão, um grande carro descapotável, vermelho com estofos brancos, com as jovens misses da ilha, alardeando a sua graça e beleza.
Depois, seguiam-se alguns carros das autoridades locais, um corpo de arcabuzeiros, vestidos a rigor e, claro, com o espingardame preparado, de rigidez militar, sem responder às frequentes saudações e comentários dos que assistiam, de pé, ao desfilar de todos nós; seguia-se então um carro decorado com flores, onde estava instalada a banda filarmónica, tocando solenemente trechos indecifráveis para mim, mas aplaudidos pelos presentes.
Após estes elementos, surgia a componente “estrangeira”, abrindo com uma réplica da Lorcha, efusivamente aclamada e suscitando uma imensa curiosidade, com vários adultos apontando às crianças a tripulação composta por alguns jovens portugueses, um dos quais o meu filho, sendo seguida por todos nós, a pé, claro, ostentando orgulhosamente o nosso fato especial, cada um a sua personagem; atrás de nós, encerrando esta componente proveniente de Macau, seguia o rancho, com diversos momentos que paravam o cortejo para apresentar uma dança mais composta em alguns locais do percurso previamente combinados e onde se acumulava uma ainda maior audiência.
Encerrando todo o cortejo, de novo, mais alguns carros de organizações locais que se associavam – e patrocinavam o Festival – e surgiam depois, várias dezenas de crianças de seus 12 anos, todas impecáveis, de uniforme escolar, marchando e tocando, nas suas flautas, nem mais nem menos do que o tema do filme “A Ponte do Rio Kwai”. Esse mesmo.
Finalmente, encerrando todo o cortejo, como seria de esperar, mais umas dezenas de arcabuzeiros, e, finalmente quem quisesse. E muitos queriam.
Volta e meia, para gáudio de todos os espetadores que preenchiam os passeios ao longo do percurso, o Kapitán dava ordem, tudo parava, os arcabuzeiros ajoelhavam em pose militar e catrapum! Uma nuvem de fumo saía de cada cano e o cheiro a pólvora sublinhava o momento.
Nessa altura os populares soltavam grandes uááá e as senhoras davam gritinhos e sorrisos. Uma festa!
Andávamos lentamente, acenando para um lado e para o outro, ensaiando eu o famoso “royal wave”, só cá por coisas, que não é todos os dias que um marmanjo como eu chegava a nobre, e os espetadores aplaudiam, entusiasmados.
Uma apoteose. Não me lembro de outra situação em que tivesse sido tão aclamado.
Pela ilha
As autoridades tinham preparado uma excursão para nos mostrar vários aspetos da ilha.
Começámos no belo museu que, como não podia deixar de ser, evocava a chegada dos portugueses e da espingarda.
Desde logo, o próprio edifício seguia o traçado de uma lorcha. Por dentro, uma série de espingardas apresentava a história da arma, as suas diferentes versões, assim como a sua evolução.
Um diaporama evocava a chegada dos portugueses e a lenda de Wakasa, a filha do ferreiro, artesão de tesouras, que se apaixonou perdidamente por Fernão Mendes Pinto e de quem acabou tendo um filho.
Ainda segundo a lenda, dirigia-se diariamente a um promontório na esperança de ver no horizonte as velas do navio do seu amado.
Perdida de saudades, acabou por se atirar dessas mesmas escarpas para as ondas que ditaram a sua morte.
Como é sabido, os nossos amigos nipónicos têm uma relação especial com o drama e a tragédia…
Depois do museu, seguiu-se a tal escola secundária onde assistimos ao ensaio da sua filarmónica.
Curiosamente, à chegada, cruzámo-nos com diversos alunos, também a chegar, mas munidos de baldes, esfregonas e detergentes. Como nos explicaram, cabe aos alunos providenciarem a limpeza da SUA escola.
Finalmente, o ponto alto da visita eram as instalações da Agência Espacial, a qual pudemos observar a partir de um outro promontório, porque a entrada no recinto é extremamente reservada.
Aquelas instalações foram ali edificadas precisamente porque foi em Tanegashima que a tecnologia transformadora chegou ao Japão – a espingarda – sendo desejável, segundo as autoridades japonesas, que também a exploração espacial tenha o mesmo papel para o seu país.
Regressámos à cidade ainda a tempo de entrar num grande armazém, de forma a comprar algumas lembranças, nomeadamente o meu filho que desejava trazer algo para a mãe.
Acabou por escolher um avental, que levámos até às caixas daquele piso, pagámos e fomos até um outro balcão, especial para embrulhar mesmo o nosso pequeno volume.
Foi a nossa vez de ficarmos com os olhos em bico.
Colocada a prenda numa folha de papel florido, a empregada dobrou, rodou, zás para um lado, zás para outro, virou, vincou, agarrou num pequeno pedaço de fita azul e, para nosso espanto, o embrulho virou uma camisa, de colarinho e tudo, com a fita a fazer de gravata. Que arte!
À saída, já na hora de fecho, todas as empregadas estavam à porta, perfeitamente alinhadas, em duas filas paralelas franqueando a saída entre elas, dizendo em coro: “domo arigato, gozaimasu” e fazendo a vénia tradicional…
Já na rua, encontrámos alguns jovens que tinham descoberto algures uma pizaria e lá fomos jantar.
Jantámos com prazer e, pelos vistos, a notícia da pizaria correu entre a comitiva portuguesa porque fomos encontrando vários dos participantes.
Levámos o nosso tempo, com alegria.
Quando saímos fomos percorrendo as ruas, já desertas, da cidade, olhando aqui e ali, descobrindo pormenores que nos tinham escapado anteriormente.
Já seria perto da meia noite quando nos apercebemos que as ruas desertas conheciam então um tráfego substancial de automóveis conduzidos por senhoras japonesas.
Paravam em determinado local, saíam e regressavam pouco depois ajudando os seus maridos obviamente já tocados pelo álcool.
Era a brigada dos carros vassouras: toca a recolher, que amanhã é dia de trabalho!