A Invasão dos Caranguejos Venenosos
A Baía dos Porcos, em Cuba, foi palco de uma famosa invasão organizada e patrocinada pela CIA.
No entanto, todos os anos, é palco da invasão dos caranguejos venenosos, graças a uma toxina letal.
Esta invasão de dimensões impressionantes, com animais envolvendo muitas dezenas de milhares de bicharocos, com uma tenacidade invulgar (têm duas tenazes, na verdade), tão tenazes (lá está) que atravessam praias e estradas, e matas, e portões e – como pudemos testemunhar – vêm mesmo tentar empurrar a porta do nosso quarto.
Ouvi o barulho na porta e até pensei que estavam a bater à porta – e estavam – abri-a e lá estava ele, de tenazes ao alto, com um ar feroz e sorriso pérfido nos lábios.
Calma, esta do sorriso e lábios é mero artifício pseudo-literário. Na verdade, mal teve tempo de ameaçar, a nossa guardiã, Ivone, deu-lhe uma valente vassourada que o fez levantar voo para os confins da paisagem.
O irmão da Ivone, César, biólogo de formação, explicou-nos tudo sobre estes caranguejos agressivos e intrusivos, enquanto nos trazia o pequeno-almoço, cheio de frutas suculentas e sumo ainda mais apetitoso, acompanhado pelo cheiro de café acabado de fazer.
Estávamos em Girón, porta da Baía dos Porcos, Baía de los Cochinos, ponto do maior desembarque da outra invasão. Mas estou a adiantar-me.
A nossa entrada na célebre baía foi em Playa Larga, que é como quem diz, Praia Grande, uns dias antes.
A tal invasão dita americana, dita porque foi organizada (e paga) pela CIA, na verdade foi… um regresso de emigrados cubanos. Um regresso bastante agressivo, sim, armados e treinados pelos americanos, mas essencialmente cubanos.
A invasão dos caranguejos dura muitíssimo mais tempo do que a outra, que durou 4 ou 5 dias apenas.
A ideia dessa invasão armada foi sendo desenhada ainda na presidência de Eisenhower, com apoio do ditador dominicano Rafael Trujillo, mas efetivou-se nos primeiros dias da presidência de Kennedy, o que fez toda a diferença.
O plano era de controlar uma porção de território, com o ataque anfíbio e o apoio da força aérea estadunidense, que não teve a dimensão planeada. Kennedy não desejou patrocinar um ataque direto, já que Nikita Kruschev, o líder soviético o ameaçou.
Como se sabe, a tal de “Operação Mangusto” foi um enorme fracasso. Apesar das manobras de camuflagem que incluíram ataques na outra ponta de Cuba, os invasores cometeram o grave erro de atacar numa noite de lua cheia. Além disso, também não deveriam faltar informadores entre os “voluntários”, sendo até geralmente admitido que os soviéticos conheciam os detalhes da invasão.
Quem não pode ser responsabilizado pelo fracasso… são os caranguejos. Comprovadamente, estes bichinhos não receiam absolutamente nada, nem – não digam nada – o próprio Fidel, quando vivia – nem o calmeirão que preside agora aos destinos cubanos. Nada. Comprovadamente, até aos nossos dias, na sua época própria, inexoravelmente, invadem a Baía dos Porcos. Mais, como pude observar, desafiam, no meio da estrada, mesmo os mais pesados dos autocarros, com as suas ameaçadoras tenazes.
Claro que ficam esborrachados no asfalto como os tomates da anedota. E ninguém os come! Venha lá quem vier.
Da invasão cubano-americana sobram diversos armamentos pesados que são tratados como arte pública, ornamentando praças e passeios por toda a baía, para não falar no Museu, em Girón, com tanques (não os de lavar), anti aéreas e mesmo um avião.
Diz-se que Che Guevara escreveu a Kennedy agradecendo a invasão. Dizia-lhe ele que naquela altura a revolução enfrentava vários desafios internos e graças à iniciativa da CIA o povo cubano uniu-se em defesa da sua revolução.
Mas deixemos o passado e regressemos ao presente, nomeadamente às fantásticas praias da Baía dos Porcos.
Antes de mais, chamar baía ao facto geológico em causa deixa-me perplexo. Esta baía tem uma embocadura de cerca de 9 Km e quase 21 Km de profundidade até atingir o fim, a Playa Larga. É uma espécie de Florida ao contrário.
Como é próprio do Caribe, goza de águas azulíssimas e vários pontos arenosos, especialmente apreciados por turistas e locais.
Vamos omitir a presença de crocodilos a poucos Km porque estes desagradáveis bicharocos não se aventuram no mar, o que se agradece, tendo em conta os seus desagradáveis hábitos alimentares.
Porém, o mar ali não só é azul, como fica dito, como riquíssimo em peixe. Infelizmente, os barcos de pesca não são autorizados a ter motor, vão à vela, a remos e mais não.
Fica a cerca de 200 Km das ilhas Caimão, o que é o dobro da distância de Miami a partir do lado norte da ilha de Cuba.
Na Playa Larga ficámos numa casa particular na 2ª linha de casas a partir do mar, o que significava uns 50 metros a caminhar. Uma canseira.
Como não estávamos em época alta pudemos gozar de umas horas de fantástica praia, quase sozinhos, Com todo o cuidado, claro, porque aquele sol queima mesmo.
Descansados na areia, olhando o azul do céu, recortado nas folhas largas das palmeiras e o azul do mar, recortado em recifes e barcos de pesca, só precisávamos manter alguma atenção numa senhora local, obviamente tocada pelo desarranjo mental, que deambulava pela praia, gritando e gesticulando contra qualquer coisa que nunca precisámos ao certo qual fosse.
Encontrámo-la depois sentada em mais do que um restaurante, alimentada graciosamente pelos donos. Era mais um exemplo da solidariedade cubana que pudemos testemunhar um pouco por todo o lado. Tal como nos disseram muitíssimas vezes: “somos todos irmãos”.
Os pequenos-almoços eram substanciais, confecionados por Joriol, o nosso anfitrião, como em todos quantos ficámos em Cuba, com sumos, ovos e fruta da época e café muito bom, sem esquecer os expresso, que sempre fomos encontrando, não nas casas mas em restaurantes, com melhor ou pior qualidade.
Porém, Joriol era cozinheiro encartado e afamado, tendo feito questão de o demonstrar, desde a inescapável lagosta, ao peixe grelhado ou porco assado, tudo com um toque caribenho delicioso.
À tarde chegavam as nuvens que iam escurecendo até desabar copiosa e ruidosamente fornecendo um espetáculo adicional ao azul matinal.
A seu tempo chegou a altura de encontrar forma de sair da Playa Larga, no fim da baía e chegar a Girón, no princípio dela.
O dono da casa explicou que existia um autocarro que fazia esse percurso, mas não era certo de dias, mas era sim de horário. Mais ou menos, enfim.
Por volta das 11:00 horas iria chegar, ou não, passando pela porta. Ele próprio iria contactar o motorista, que confirmou que no dia seguinte lá estaria.
Fizemos as malas e esperámos na estrada à porta da residência. E esperámos. E esperámos. Joriol já ficara de pé atrás, dizendo-nos que se não viesse o autocarro ele próprio nos levaria, afinal era uma coisa de menos de 20 Km. Mas acabou por vir.
Na camioneta, no banco ao nosso lado, estavam duas jovens alemãs que descobriram, com aquela expressão de surpresa alemã, exuberante como uma porta, (fechada) que apenas poderiam pagar a viagem com cartão de crédito. Nada de numerário.
Olharam para mim como um náufrago olha para uma boia. Eram 10 euros, porque iria recusar? Disseram-me que me enviavam o dinheiro por Paypal assim que chegassem.
Pessoalmente não tinha esperança de reaver o dinheiro. Tinha feito a boa ação do dia e pronto. No entanto, o certo é que passado umas semanas, já em Portugal, recebi mesmo o dinheiro. Afinal, nestes tempos de ganância e falsidade, ainda há gente honesta, não é só nas fábulas.
Foi nesta viagem a caminho de Girón que pude testemunhar o duelo entre um autocarro soviético e um caranguejo vermelho solitário no meio da estrada, tenazes em riste. Adivinhem quem ganhou…
Já em Girón, falei com o motorista para sair na morada da casa e ele mandou-me ficar descansado. E eu fiquei.
Fomos os últimos a sair. Explicou-me que daria a volta ali mesmo e saiu connosco. Perante a minha surpresa, acrescentou: A Ivón – Ivone para nós – dá-me um cafezinho. E lá fomos todos.
A Ivone era uma enfermeira aposentada, de modos assertivos mas extremamente afável. À entrada tinha várias obras suas em macramé. “Gosto muito de manualidades” comentou.
Indagou depois se queríamos jantar. Claro que queríamos, mas perante a nossa hesitação inicial ela acrescentou que viria um chef amigo, Jesus de seu nome, para confecionar o repasto.
Devo confessar que naquela altura a nossa grande e premente questão era “onde é que está a praia”?
Depois de arrumarmos as malas, que nem eram muitas – uma para cada – nem eram grandes, que as cabines de avião são exigentes, lá nos pusemos a caminho.
Havia que ir pela estrada por onde chegámos e atravessar a orla de uma mata, com um burrito a pastar, tendo à nossa direita o museu da invasão imperialista e à esquerda um campo aberto, com um grande palco de betão – para o 1º de maio, por exemplo – uma “oficina dessalinisadora” fechada evidentemente há séculos e ao fundo, entre nós e a praia, um resort turístico imponente mas sem turistas à vista, mas com café expresso.
Aquela praia, apesar de apetecível, não seria a melhor, conforme as indicações de Ivone. Tinha uma construção muito delapidada, tipo muralha protetora, entre a praia propriamente dita e o oceano, fazendo uma restinga que garantia uma zona de águas calmas banhando a areia.
Tomado o café, regressámos à estrada e contornámos o resort para, aí sim, encontrar a bela praia, a Playa Coco – atenção aos acentos – com palmeiras e respetivo passaredo.
Recuadas em relação ao areal, estavam vários quiosques vendendo bebidas, uma com pizas, servidas por largas mesas de madeira com bancos acoplados.
Só tínhamos olhos para o mar… Lá longe, após o recife rochoso, um pescador remava lenta, mas vigorosamente.
Por lá ficámos umas horas, comprámos umas bolachas para enganar a fome, já contando com o jantar e, antes que virássemos tostas, fomos regressando aos nossos aposentos.
Já no quarto, gozando do ar condicionado – enquanto não cortassem a eletricidade – banhocas tomadas e roupa lavada vestida, com a proteção integral do corpinho, contando com a selvajaria dos insetos, ousámos sentar no exterior, gozando o ar fresco do fim de tarde.
Em boa hora o fizemos, já que coincidiu com a ronda dos colibris pelas flores do quintal.
O colibri, passarinho minúsculo, tem a capacidade de bater as asas tão velozmente que escapa à nossa vista, ficando apenas o seu corpinho diminuto pairando no ar, enquanto o seu longo bico penetra na intimidade da flor. Depois, num ápice, passa a outra.
Bem tentámos a foto, porém, exigia uma destreza e competência fotográfica que deve ter ficado esquecida algures no nosso universo.
Veio a chamada da janta, numa mesa também no exterior mas em frente à cozinha. Conhecemos Jesus, o tal chefe, e, para nossa grande alegria, podíamos beber vinho, uma adega da Galiza que descobriu Cuba, na verdade, tal como a família de Fidel.
Fomos para a cama com uma satisfação total. Adormecemos e só fomos acordados pelos tais caranguejos. Mais uma novidade…
No dia seguinte era dia de museu. É em Girón que fica o Museu que celebra a Invasão patrocinada pela CIA e que se chama simplesmente Museu Girón.
Não se pode dizer que esteja muito recheado, são maioritariamente fotografias, mas não deixa de ter bastantes artefactos, principalmente armas capturadas, de aviões e carros de combate, até metralhadoras, uniformes, etc.
Quando a bexiga apertou, fui à rececionista e guia turística, e se calhar líder do partido, perguntar pela casa de banho. “Oh o WC está avariado há mais de uma semana. Estamos à espera que venham as peças para a reparação.
Fizemos o resto do tour, que incluía o visionamento de um documentário num pequeno auditório e zarpámos para o resort uns metros abaixo, que tinha café expresso e… casa de banho operacional.
A praia, protegida pelo tal muro era simpática e dispunha de um quiosque que vendia bebidas frescas. No fim do muro tinha uma construção abandonada, com dois andares e que deveria de ter sido um posto de observação. De invasões, decerto.
A praia estava deserta, só nós. O resort era composto por várias casinhas – bungalós, digamos – com arruamentos e um muro, o tal que na véspera havíamos contornado para a outra praia, aberta a todos.
O turismo é a principal fonte de divisa na ilha, pelo que até o socialismo tem de ceder…
O dia acabou em cheio, com os expectáveis colibris, repasto pelo chefe regado com vinho galego, com a inovação de inúmeros pirilampos, naturalmente pirilampando pelos céus obscurecidos. E caranguejos a bater à porta no meio da noite. Perguntei quem era, e o caranguejo não se dignou responder. Um malcriadão.
Acontece que acordei para o meu aniversário. Tínhamos como programa passar o dia na “Cueva de los Peces”. Um resort sem hotel, dedicado a passar o dia, mas não a noite. Tinha bebidas à descrição – mojitos, claro – e um buffet para almoço, mas a grande atração eram… os peixes.
Bastava mergulhar (não havia praia) a partir das rochas baixas ou de um ou dois pontões, meio escalavrados, e logo ali, no máximo a dois metros, uma infinidade de peixes com cores mirabolantes, andando por ali, se calhar a ver os turistas, que nestas coisas a reciprocidade é de ter em conta.
Já com um número considerável de mojitos, assistimos à invasão do edifício onde era servido o buffet. Uma vaga de turistas que não deviam comer há anos atacavam a mesa para descobrir a enorme deceção. De que estaríamos à espera? Claro que não havia lagosta, será preciso dizer?
Foi um dia magnífico, até porque estava um dia magnífico. Mojito, mergulho, espreguiçadeira, mergulho, mojito… Sem queixas.
De regresso, colibri, jantar, vinho galego e pirilampos. Na conversa, ficámos a saber que a presença do chef Jesus se devia ao encerramento temporário do resort onde trabalhava. Encerrou porque não conseguia garantir as bebidas na quantidade necessária.
No dia seguinte, sábado, regressámos à praia. Tudo diferente.
Logo na entrada, entre a estrada e ao areal, antes mesmo dos quiosques, um grande número de veículos esperava os seus ocupantes. Desde carroças com cavalos que não se viam, a galeras puxadas por tratores e, pior que tudo, uma carrinha de caixa aberta com duas enormes colunas de som assaltava tudo em redor, com o execrável reggaeton. Nada escapava. Até as aves tremiam no seu voo.
Todos os quiosques estavam abertos, todas as mesas ocupadas e em grande parte do areal, que realmente não muito grande, vários grupos de jovens disfrutavam a praia e, inexplicavelmente a música.
Completamente dissonante da música tonitruante, passadas as rochas que montavam uma breve restinga, um pescador remando calma e laboriosamente ganhava o seu pão, progredindo lentamente, fora de ritmo, fora daquele contexto, como se tivesse sido ali colado, proveniente de outro filme.
A espaços, algum dos jovens deslocava-se a um dos quiosques e trazia uma garrafa de rum que rapidamente se esvaziava. Tratava-se de uma marca local de rum muito popular, vendida em garrafas de plástico com 1,5 litros. Era essa a razão do seu sucesso. Enfim, não o provámos.
Pouco depois era um desses jovens que era levado em ombros até ao mar para se refrescar e lá ficava, azamboado, com os pés na água, para desanuviar.
Era tempo do nosso regresso, antes que as coisas descambassem ainda mais.
Voltámos para o nosso último jantar, notavelmente com a presença de Júlio César e Jesus, para descobrir que já não havia vinho galego. Mas o jantarinho e os colibris e o chef e os pirilampos não faltaram. Mas o caranguejo não compareceu. Terá sido por causa do vinho?
Era já tempo de regressar a La Havana e lá fomos para a estação de autocarros, mesmo em frente ao museu.
Sentadinhos à espera, com mais três ou quatro companheiros turistas, esperando o autocarro diário para La Havana, na estação composta por uma dúzia de lojas, a maioria fechadas, e com uma sebe a separar o passeio da estrada. E quem estava lá para se despedir?
Os colibris.