A “minha” Arrentela – Altos e Baixos – Parte 3/4

15 – Marca o Balhão!

 

O Fernando Balhão era um homem que eu conheci de uma grande simpatia e simplicidade. Jogou no Arrentela creio que muitos anos e recordo-me bem do entusiasmo em que os adeptos ficavam quando havia livres a nosso favor, pondo logo no ouvido do treinador a celebre frase: “Marca o Balhão”.

A razão está bem de ver, é que ele dispunha de um fortíssimo pontapé, muito difícil de segurar para as defesas e sobretudo para os guarda-redes adversários, vítima última.

Essa fama correu por todo o distrito com as equipas com quem o Arrentela se defrontava, sempre avisadas para evitar faltas perto da sua baliza.

Os jogos eram sempre às 15 horas de domingo e um dia o Imparcial de Alcochete veio jogar com o Arrentela e às tantas há uma falta a favor do Arrentela.

Grande alvoroço e todos os adeptos a incentivarem o Fernando para marcar. O Guarda-redes adversário tomou a iniciativa de um mano a mano com o Fernando, não querendo qualquer barreira, habitualmente dada pela colaboração dos seus colegas.

Provavelmente terá lançado ainda qualquer desafio verbal ao bom do Fernando.

Pontapé marcado, bola na barriga do Guarda-redes e este a vomitar feijoada abundantemente.

Não me recordo do resto do jogo, nem se foi golo sequer.

 

 

16 – Jorge Sarruca

 

O Jorge Sarruca era uma figura incontornável da Arrentela, um pouco vesgo, péssimo pedreiro, boçal até ao limite, mas sempre a dar ares de muito conhecedor para todas as questões que lhe punham, sobretudo com a resposta meio atravessada, mas sempre na ponta da língua.

Frequentava invariavelmente a taberna do José Mira e aí, jogando as cartas ia-se tentando sobrepor aos que o rodeavam, que, entretanto, já o topavam.

Algumas pérolas dele.

Trabalhou um tempo na CUF e então vinha comentar que os engenheiros de lá nem sabiam quantos milímetros tinha o metro, ele é que lhes ensinara.

Que eram técnicos pouco capazes a ponto de lhes ter afirmado que ele era capaz de fazer as suas caras em cimento. Ele um pedreiro de fracos recursos.

Um dia a mulher veio dizer-lhe que a filha estava adoentada e que precisava de beber leite como o médico havia dito.

Resposta do Jorge: – Qual leites, qual leitinhos, prega-lhe, mas é com meia langa* e um prato de batatas com bacalhau!

O José Mira tinha muita paciência para os clientes e certo dia vendo que o Sarruca tinha ganho um copo de vinho no jogo das cartas, chegou-se ao pé dele e perguntou: – Oh Sô Jorge é de 2 ou de 3*?.

Silêncio e concentração na vaza* que se estava a desenrolar. Nova insistência do Mira e nada. Passado mais algum tempo e o Mira porque teria de atender outro cliente pergunta de novo: – Oh Sô Jorge é de 2 ou de 3? – Isto agora acrescido com um toque no ombro.

Resposta dele em som prolongado: -Eh pá, enche para aí uma celha*.

*Significados: Langa – vinho; 2 ou 3 – decilitros; Vaza – jogada; Celha – tanque pequeno.

 

 

17 – Orquestra Beira Mar

 

A Orquestra Beira Mar foi uma lufada de ar fresco no ambiente musical do Concelho. Todos os conjuntos musicais desde os mais efémeros aos mais duradoiros eram sempre constituídos por instrumentos de sopro e palheta. Ainda não estavam em voga os instrumentos de cordas que se revelariam fundamentais no evoluir da música ligeira até aos nossos dias.

Um conjunto de homens da Arrentela todos novos, talvez trintões, aparece do nada, inicialmente com pouco repertório, mas depois sendo muito conhecidos com atuações várias por todo o distrito de Setúbal, mas também em Lisboa.

Ensaiavam na Casa da Palha pertença do Augusto Cabrita e depois no chamado “ferro de engomar” uma habitação pequeníssima, como o nome sugere e que ficava no cimo da calçada para o Adro, quando se ia das Bandeiras para a Sociedade.

Creio não correr o risco de me esquecer de alguém, dado que o grupo foi evoluindo com entradas e saídas diversas, os elementos eram por instrumentos:

2 Guitarras de acompanhamento: Pedro Lourenço e António Joaquim, depois o Cassiano e por vezes o Manuel Garcês.

2 Bandolas: Antero Aleixo e Crispim Xavier e mais tarde o Herminio da Torre

3 Banjos: Caetano Lopes, Horácio Alves e Carlos (Adão) Ferreira.

Os bateristas foram-se sucedendo, sendo inicialmente o Jaime Lourenço depois o Manuel Garcês e por fim o Alberto Matos.

Tinham um vocalista (não na fase inicial) que foi o António Vargas e depois o Joaquim Portela.

O seu momento de glória e de maior impacto dá-se com as gravações feitas na Radio Graça e que são passadas nos discos pedidos, uma forma de divulgação então em prática, anterior, portanto ao “Quando o telefone toca” e com que as pessoas da Arrentela (naturalmente) massacravam os restantes ouvintes.

 

 

18 – Verdegaio atirou no Afonso

 

Num tempo em que as rivalidades clubísticas não passavam do trio lisboeta BSB (Benfica, Sporting e Belenenses) havia muitos adeptos e maiores rivalidades distribuídos por todos estes clubes. Na Arrentela era igual.

O Verdegaio tinha um talho no largo da Palmeira e era um inflamado adepto do Sporting.

Por sua vez o Afonso Lucas vivia junto ao Adro da Igreja e era igualmente fervoroso adepto do Belenenses.

Depois de um jogo entre estes dois clubes e provavelmente com antecedentes de conflito entre estes dois homens, sabe-se que o Verdegaio foi buscar uma arma e disparou sobre o Afonso.

Foi um domingo de juízo, com a GNR a tomar conta do caso, o Verdegaio foi de imediato preso, sendo posteriormente julgado e condenado, tanto quanto me recordo.

Eu tenho no Belenenses a minha única alienação, mas assim nunca vi.

 

 

19 – A sota é minha

 

Tendo os seus méritos e também deméritos, a Arrentela sempre foi terra de grandes batoteiros. É possível com grande grau de certeza definir que os jogadores de loto, jogo que à época era aceite pelas forças da ordem, desde que jogado nos clubes e para os seus associados, passada a meia-noite que era a hora limite para o encerramento dos clubes, normalmente e com a aquiescência dos diretores que não passavam de incluídos no rol dos batoteiros, as luzes eram diminuídas ou passavam a salas mais interiores e jogava-se a féria de uma semana de trabalho se tal fosse necessário.

As mulheres eram as vítimas imediatas da perda do rendimento semanal sendo que algumas mais afoitas, chegaram a participar às autoridades sem que daí viesse qualquer resultado.

Mas havia os mais aventureiros e, portanto, mais viciados, que iam jogar onde ninguém os importunasse e um dos locais que a GNR nunca descobriria, eram as casotas de guarda de ferramentas para trabalhar as terras, nos chamados brejos ali entre a Torre e a Arrentela.

Mas uma noite a GNR foi mesmo lá.

Havendo um dos jogadores que era coxo, seria o que mais dificilmente escaparia de ser preso.

Ele fugiu como todos os outros, mas sempre gritando: A sota é minha! A sota é minha!

Era a forma esclarecida de avisar os adversários da importância para a derradeira jogatana, do facto de a Dama ser da sua posse, mesmo com a GNR à perna.

 

 

20 – Diamantino das bicicletas

 

O Diamantino era um homem raçudo, duro mesmo e que face à sua proveniência beirã, falava “axim” e que como o título indica dispunha de uma oficina para arranjar bicicletas na Arrentela, junto ao Jardim do coreto.

Ao contrário do seu filho de quem se falará adiante, era um fraco ciclista no tempo em que decorriam as célebres voltas ao Concelho (do Seixal).

Esclarecendo, as voltas ao concelho eram provas para dias festivos no Verão, compostas por atletismo, ciclismo e natação, com a particularidade de serem corridas por atletas diferentes.

O Arrentela ganhava sempre pois tinha a prova desenhada à sua imagem.

No atletismo o melhor numa corrida de 1 quilómetro (mais ou menos) era sempre o Manuel Funileiro. A prova começava para o lado do Seixal e a meta para passagem do testemunho ao ciclista, era em plena estrada, junto ao café do José Rocha.

Aí o António Carlos Gomes, filho do Diamantino que já corria no Benfica creio que com a idade de júnior, ia direito à Torre, Cavadas, Paio Pires, Bairro Novo, Seixal e de novo na Arrentela fazendo esta volta umas 2 ou 3 vezes, derivava depois na Torre indo para o Fogueteiro e Amora onde o Guilherme Patrony (nadador olímpico do Sport Algés e Dafundo) mas filho da terra, fazia a travessia da baía para a Arrentela onde era recebido sempre em grande ovação.

À noite, havia grande bailarico na sede do Arrentela, onde os vencedores eram naturalmente incensados pelos rapazes e cobiçados pelas moças.

O António Carlos Gomes era à época um caso sério no ciclismo a nível nacional, mas depois com a concorrência do Ilídio do Rosário de quem era muito amigo, tendo ambos a idade de juniores e também correndo no Benfica, foi-se eclipsando não sem que tenha ganho muitas corridas. Emigrou para a Alemanha e desapareceu.

Voltando ao pai Diamantino, será fácil pensar que este tipo de provas já tinha algum historial no Concelho. O Diamantino era o corredor do Arrentela que fazia a mesma prova que era encomendada ao filho, mas em anos anteriores.

Ele nunca ganhava a parte do ciclismo e o seu argumento era sempre o de que “se foxe mais uma boltita…”.

Era a forma arguta de não sair desprestigiado da comunicação, depois de sair pela porta pequena na corrida.

Mas este homem rude e matreiro tinha um bom coração, pelo menos para mim.

Na altura dos meus 14/15 aos, tive o meu primeiro emprego na Estância de Madeiras do meu avô José Pedro. Tinha por missão fazer recados, pagar ou receber faturas e letras e para isso usava as bicicletas a pedais primeiro e depois já as bicicletas com motor que os meus Tios e Avô dispunham na Estância.

Como era muito destravado (quem diria!) estragava imenso as citadas bicicletas, que como é logica iam para reparar na Oficina do Diamantino.

As contas avolumavam-se e o castigo para mim era passar de cavalo para burro.

Se as avarias eram nas bicicletas a motor passava a ir na de pedais, se fosse nesta de pedais tinha de ir a pé, o que me penalizava.

Então combinei com o velho Diamantino que fizesse as faturas mais distribuídas nas semanas de modo a que não se notassem as contas altas e ainda por cima quando ia buscar as contas dos estragos dava umas ao meu Avô para ele pagar e depois outras ao Tio Arlindo que refilava, mas deixava passar. Truques…

 

 

21 – Despedida do José Henrique e do Testas

 

Recordo perfeitamente o jogo de despedida destes dois jogadores dos juniores do Arrentela num jogo às 11 da manhã de Domingo.

Eles são mais velhos que eu, cerca de 2 anos e ambos pareciam ter um futuro promissor no momento da saída, mas os seus destinos foram diferentes.

Tinha andado com ambos na instrução primária e até os tinha passado dado que não eram muito voltados para a escola.

O José Henrique era um miúdo que todos os dias invariavelmente levava uma tareia da mãe a Maria Jesuíta, seguramente por fazer qualquer partida. Eu almoçava em casa do meu tio Henrique junto ao jardim do coreto e ele vivia a poucos metros, pelo que era testemunha disso. Mas ele era um miúdo terrível, fazendo mal a si próprio, pois uma vez na escola deu um nó na sua própria pila, fazendo disso gala na exibição aos colegas da escola. Felizmente que o futebol o privilegiou fazendo dele internacional e seguramente com uma remuneração confortável.

Perdi-lhe o rasto depois do casamento acidentado com a Rosa da Amora.

O José Soutinho Testas (Canuna) era uma joia de moço, mas com pouca cabeça. Não vingou no Benfica e andou a jogar em vários clubes, nomeadamente no Gil Vicente, Vitória de Guimarães, Barreirense, fazendo ainda uma incursão no Canadá, em clubes de origem portuguesa e voltou ao Arrentela sem dinheiro.

Tarde de mais, sem saber como trabalhar para além do futebol e depois de a mãe ter falecido, que ainda era o seu amparo moral e financeiro, deve ter-se sentido muito mal. Teve um salvador, o seu amigo Bonifácio, também da Arrentela que lhe deu 200 contos e um bilhete só de ida para o Canadá, de novo.

Sem família por aqui, ninguém na Arrentela soube mais dele.

Duas pequenas curiosidades na vida das pessoas da Arrentela de então.

Não havia a vulgarização das uniões de facto, hoje tão em voga, mas a primeira de que me lembro ainda na instrução primária foi entre o Pai do Teófilo nosso colega de turma com a mãe do Canuna, alcunha do Testas. Os miúdos reagiram de forma cáustica, como é apanágio das crianças de então e de agora.

Nos tempos da escola primária, a miséria era evidente no início dos anos 50 e tenho a imagem dos pés descalços dos amigos, nomeadamente do Catarino que era um aluno muito aplicado e com grandes capacidades para as corridas entre nós, pois ganhava todas.

 

 

(CONTINUA)

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