A Vizinha Distante

Da minha janela vejo-a. Entrega-se à tarefa, meticulosa, de pendurar a roupa lavada, numa corda esticada no terraço da sua casa.

Um inexplicável tremor apossa-se de mim. Ela tem um porte altivo, cabelos curtos, alourados ou branqueados. Quando termina de pendurar a última peça de roupa, senta-se de costas para mim, tira do maço um cigarro, acende-o, fuma-o e depois desce umas escadas, que eu apenas imagino, e volta para sua casa.

Mais tarde, quando o sol começa a declinar sobre o seu terraço, volto a vê-la. Ela vem apanhar a roupa já seca. Cada peça retirada da corda é cuidadosamente dobrada e colocada sobre uma cadeira. Em seguida, senta-se, acende um cigarro e fuma-o. Imagino que todos aqueles gestos pertencem, certamente, a algum ritual íntimo e exclusivo.

A distância que nos separa, não me permite distinguir-lhe as feições, mas a sua figura e a sua presença, por uma razão estranha, excitam as células mais sensíveis do meu ser e despertam-me memórias que já começam a esfumar-se nas brumas do passado. Ela, sem suspeitar de nada, faz-me recuar no tempo, a uma época em que a felicidade brilhava intensa sobre mim, e em que eu sonhava com o entardecer ameno da minha vida, numa imaginada casa na montanha, lá, onde florescia e era embalada a amizade, uma amizade transcendental.  

Os dias, meses e anos vão passando, mas a rotina daquela mulher a es­tender e a apanhar a roupa lavada e a fumar repete-se. E eu, da minha janela, continuo a observá-la, enquanto vou resgatando com volúpia trechos do meu próprio passado.

Quando as circunstâncias me forçaram a um isolamento maior, a solidão em que eu já vivia, agigantou-se. Na monotonia dos dias sempre iguais e na ausência de convívio social, a visão da minha vizinha distante passou a ser a minha única relação com a Humanidade. A semelhança física, mais imaginária do que real, continuou a avivar, dia após dia, no meu inconsciente, a presença da minha A., há tantos anos falecida.

Afundado totalmente nos pensamentos que me povoam a mente, já um pouco alterada, começo agora a fantasiar se aquela mulher, sem nome nem rosto, surgiu no meu campo visual com o propósito de me comunicar algo.

Imagino que a encontro na rua e que lhe agradeço a alegria que ela, involunta­ria­mente, me tem propor­cionado. Sem demonstrar surpresa, ela apenas esboça um ligeiro sorriso. É uma mulher bonita, mas longe de se parecer fisionomica­mente com A. Depois, com um desconcertante suspiro de alívio, como se eu lhe tivesse tirado um peso dos ombros, diz-me: – ‘Finalmente, R.!’ – Estupefacto, pergunto-lhe como sabe o meu nome. Sempre sorrindo, ela limita-se a acrescen­tar algumas informações sobre o meu passado mais íntimo, das quais, só eu e A. tínhamos conhecimento. Sou dominado por um nervosismo súbito e questiono-a: – ‘Como sabe tudo isso?’  

 Então, ela diz-me algo espantoso:

– Todos nós temos uma missão a cumprir. A minha é a de lhe revelar que alguém que o ama muito, espera por si. Há um lugar numa montanha, que o senhor conhece bem, com uma casa onde se chega pelo arco-íris e onde a água de uma pequena cascata se despenha das rochas, salpicando as avencas e formando um regato pela verdura. É aí que ela estará, bela e sorridente, acariciada pela brisa morna e banhada pelas cores do pôr-do-sol, aguardando o momento de poder abraçá-lo.

Questiono-me se estes pensamentos são diálogos imaginários ou monólogos expressados por mim em voz alta, espelham alguma realidade ou se são o simples aflorar de desejos que se manifestam quando vejo aquela vizinha distante a pendurar e a retirar a roupa da corda, com a mesma meticulosidade com que A. o fazia.

Afinal, apenas sei que são devaneios de um homem que, no íntimo mais profundo do seu coração e no silêncio que o cerca, sofre a dor prolongada de uma ausência.

Reinaldo Ribeiro

15ABR2021

Notícias da Gandaia

Jornal da Associação Gandaia

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