Arrentela – Parte 2

A “minha” Arrentela – Altos e Baixos

Parte 2/4

 

6 – D. Sara e as 4 classes em simultâneo

Todos nós temos as melhores memórias do nosso professor primário. Eu também.

A D. Sara de Jesus Santinho Castelejo, era uma mulher de pequena estatura, mas grande capacidade de ensinamento e controlo do pessoal.

Quando cheguei à chamada instrução primária a D. Sara dava as suas aulas num primeira andar por cima do Café do José Barreto, onde mais tarde foi a sede do Arrentela.

Quatro filas de carteiras uma para cada classe, só rapazes, aulas de manhã e de tarde, um quadro, alguns mapas, mais uns complementos em madeira de figuras geométricas e aquela mulher era capaz de por tudo a trabalhar sendo que as tarefas eram naturalmente diferentes e por vezes punha uns a ensinar os outros, sempre controlando.

Tudo isto com o Carmona pendurado na parede, a assistir, claro.

Ao sábado de manhã, ainda tinha tempo para dar instrução física, no campo do Arrentela ao estilo da Mocidade Portuguesa.

Não se ensaiava de distribuir as suas reguadas quando o pessoal estrilhava.

Aliás os rapazes tinham à época, outra forma de se baterem e ninguém morria, com as chamadas apostas por tudo e por nada e quem perdia levava um murro nas costas do ganhador. Mas que murro! Até o sofredor ficava embaçado, como se dizia.

Para concluir devo-lhe a apreciação que de mim fez ao meu Avô, sugerindo que eu continuasse a estudar.

Paz à sua Alma.

 

7 – O Algodão

O Algodão era filho da Júlia Náná, a mulher que comia sabão.

Era muito alto, cabelo rapado, com fortes sintomas de atraso mental e sempre descalço.

Conhecia-o porque ele passava todos os dias frente à casa da minha mãe, antes de almoço, com uma vara enorme às costas onde iam enfiados vários cabazes, indo da Arrentela para o Seixal e depois de almoço em sentido contrário

A minha mãe um dia me explicou que ele ia levando naqueles cabazes, os almoços dos operários da Mundet (no Seixal) que viviam na Arrentela e não tinham tempo, nem dinheiro para vir almoçar a casa. A indicação seguinte é que me deixou perplexo. Continuou ela dizendo que ele não recebia nada por aquele trabalho somente tinha direito a comer o resto que os outros deixavam nos seus cabazes.

Ontem, hoje e sempre a miséria choca e ainda mais quando somos novos.

 

8 – Jaime da Amália

Durante anos a fio fiz a excursão para Fátima, Batalha, Alcobaça e Nazaré, sempre organizada pelo Jaime da Amália, homem com grande poder de mobilização e que tomava sempre iniciativas interessantes.

Os filhos dele eram da idade dos filhos do meu Avô António e em seguida eu e o João Manuel éramos netos de ambas as famílias com as mesmas idades. Temos fotografias com as duas famílias em pose, provavelmente em algum casamento.

Era assim, como agora, que se desenvolviam as amizades.

Normalmente aquele dia de excursão, representava as férias a que as pessoas aspiravam, completando um pouco de cada: Religião, História e Praia.

Saída num autocarro da Beira Rio pelas 5 da manhã, Ponte de Vila Franca e depois aquele repetido trajeto com as mesmas 40 ou 50 pessoas todos os anos. Não era toda a gente da Arrentela que tinha posses para tal. O regresso seria sempre já pela noite dentro.

Um dia o Jaime da Amália quis copiar para os mais pequenos a iniciativa que então decorria para os adultos, as marchas populares.

A final dos graúdos tinha sido no Campo do Bravo no Bairro Novo e para não ferir suscetibilidades o 1º lugar nunca fora atribuído, para evitar caseirismos para o Administrador do Concelho o Tenente José Magro, que era casado com a Filha do Ramalhete da Taberna.

Dizia-se à boca pequena que o Jaime da Amália queria era ganhar com as vestimentas dos marchantes pagas pelos seus pais, pois claro.

Começaram os ensaios na Casa da Palha do Augusto Cabrita e para mim acabaram logo no 2º ou 3º dia quando houve uma disputa para se definirem quem era o par de quem. Houve duas raparigas que se envolveram à pancada e a minha Avó tutelarmente não me deixou ir mais.

Nunca consegui avaliar a minha qualidade de marchante por causa daquele incidente.

 

9 – Cobradores de quotas

A rivalidade ente a Sociedade e o Clube levava a situações extremas e por vezes caricatas.

Situação ridícula esta criada pelos caciquismos locais, no qual o meu Avô António era figura.

Para ilustrar melhor esta rivalidade havia os dois cobradores das quotas de ambas as instituições, sendo por parte da Sociedade o Américo da Luciana e pela Sede o Catraio.

Andavam de bicicleta pelos cafés, tabernas, barbeiros e outros locais públicos a tentar caçar os devedores das quotas, mas curiosamente evitavam-se, não sei se para não coincidir nos mesmos devedores ou se era mesmo porque não se falavam.

 

10 – Os figurões do Concelho

Sempre que havia qualquer festa no Concelho, a Banda da freguesia respetiva era convidada a exibir-se.

Tocava no desfile pelas ruas ou depois num Concerto, em local nobre.

Acontecia que o famoso Carelhas, natural da Amora, era um figurão proeminente quando tomava a dianteira da Banda no desfile e sobrepondo-se ao Regente respetivo, avançava e já com os seus copitos, ia ziguezagueando no passo, fralda de fora, qual Cantinflas, fazendo as delícias da pequenada e o discreto sorriso dos mais velhos.

O que me surpreendia era que o homem fazia sempre aquilo e ninguém o tirava de lá.

O meu Avô António uma vez me explicou que ele era bom homem, excelente operário e que só o vinho o levava àquelas tristes figuras.

Toda a gente no concelho conhecia o Carelhas e ainda hoje, quando alguém perto de mim começa a fazer macacadas, aplico-lhe logo: -Pareces o Carelhas da Amora!

Outra figura que o concelho não esquece é o Quirino.

Ajudava a missa na Igreja do Seixal e tocava o sino respetivo e tanto quanto sei, nada fazia de errado nessas tarefas.

Tinha um evidente atraso mental, mas andava minimamente composto, envergando sempre uma enorme boina muito puída pelo tempo.

Como não dispunha de família que o orientasse, fazia-o ele próprio.

Assim fazia-se de convidado aos casamentos e batizados que ocorriam na igreja do Seixal e rapidamente alargou a sua campanha a todo o Concelho.

Criou-se o mito: “Casamento onde o Quirino não fosse, não era abençoado.”

Passou a vida inteira a visitar as igrejas do concelho, onde os casamentos ocorriam e sempre com lugar marcado para as bodas respetivas.

Nem sei até, se não tirava alguma foto com os noivos…

 

11 – Tio Adi

O ti Adi era a personificação do sorriso em pessoa.

Sapateiro de consertos simples, paupérrimo, vivia no Largo da Palmeira numa pequena casa que lhe servia de oficina. Não era um profissional de grande alcance, mas vivia.

Com muita fome, mas sempre com um sorriso rasgado e contagiante como nunca vi.

Infelizmente não dispus de grande convívio com ele, dado que o nosso sapateiro era o tio Henrique, mas mesmo assim há uma saída dele que retracta bem o modo como ele gozava com a sua própria miséria.

Duas pérolas dele.

Como se sabe a sola é o elemento principal do calçado e um material caro já na época, havendo depois uma serie de materiais acessórios para o trabalho como facas, fio, cola, ferros de marcar e de brunir, cera e também o vidro que uma vez partido servia para as aparadelas e ajustes.

O ti Adi queixava-se então, quando os clientes iam em busca do sapato que julgavam já consertado, que não podia trabalhar pois sola tinha ele com fartura, mas a grande necessidade era o vidro que não encontrava para comprar.

As suas roupas eram sempre dadas por amigos que sabiam da sua miséria.

Sempre que iam levar-lhe roupas, estas não eram naturalmente as adequadas às suas medidas, mas ele na necessidade de ficar com elas, ia-se remirando nos tamanhos, mas retorquia sempre que pareciam ter sido mesmo feitas para ele. Algumas eram completamente disformes…

 

12 – Os Irmãos Campos

Os filhos da tia Adelina eram o João, alcunhado de Capela por ser guarda redes e forte adepto do Belenenses, o Alexandre e o Ercílio.

Estes dois últimos tinham grande envolvimento com os teatros que sazonalmente aconteciam na Sociedade e onde a apresentação passava sempre por uma primeira parte séria, normalmente com uma história de faca e alguidar, complementada com as chamadas Variedades, com música, canções e rabulas isto sempre com um compère a fazer as ligações.

Os irmãos Campos entravam em tudo e sempre com um desempenho de aplaudir e chorar por mais.

Uma das rábulas de que me lembro, era acerca do desempenho sexual de um velhote numa analogia com a guerra, em que ele dizia que sempre que ia para disparar a mão lhe tremia e então se treme a mão, treme a espingarda.

Treme a mão, treme a espingarda! – Era um dito muito popular e repetido na Arrentela que chegou aos nossos dias.

Outra vez era numa cena de aleijados com canadianas em que eles faziam uma espécie de jogo de espadas com as muletas e cantavam: – Cá com a gente ninguém se meta, senão leva na corneta, Zás, pás!

Que saudades eu tenho destes ditos!

Uma nota última para referir que os arranjos musicais tinham sempre a autoria do Manuel Marques (da Aurora) um autodidata fantástico.

 

13 – João Balazão e José Valete

É difícil falar destes irmãos e sobretudo explicar a sua comicidade, com as devidas distâncias faziam lembrar o grande Actor Vasco Santana pois mesmo em silêncio a sua imagem era contagiante.

Só olhar para eles e ouvi-los comentar o que quer que fosse, dava imediatamente vontade de rir. O João era mais popularucho e o José mais fino no trato, porem raramente se apresentavam juntos onde quer que fosse, dada a sua diferente posição social.

Eram filhos do João da Gata e da Balbina e estes tinham ainda uma ligação familiar em grau indefinido com a minha Avó Etelvina.

Sendo difícil falar sobre os filhos recordo um episódio passado com a Balbina e o marido, também eles muito cómicos apesar das enormes dificuldades em que viviam.

Numa altura em que ir a Lisboa passava por Cacilhas para tomar o autocarro da Beira Rio, enquanto esperavam pela carreira, resolveram ir a uma pastelaria comer um bolo, o que se pensa que era normal, quando o João perguntou porque é que ela estava a comer o bolo de arroz com o papel e tudo, ela respondeu que o fazia sempre e que nunca dera por isso.

 

14 – Guilherma da Rosa

A 1 de Novembro, dia de Todos os Santos, há na Arrentela a festa principal da freguesia com o seu ponto alto na procissão em honra de Nossa Senhora da Soledade, que não sendo a padroeira é muito venerada por todos os Arrentelenses.

Na procissão é sempre destacada a banda de música da Sociedade para acompanhar a procissão, ocupando no cortejo um lugar no final entre o último andor, o da N.S. Soledade e os crentes acompanhantes.

Nas semanas que antecedem o evento, os músicos ensaiam com afinco as marchas a propósito.

Os músicos daquele tempo tinham os seus méritos próprios da sua categoria, oscilando naturalmente entre os muito bons e os medíocres e de entre estes, havia o Guilherma da Rosa que teria tanto de vaidoso como de bêbado e não tendo categoria para outro instrumento ficou arrumado na percussão, tocando pratos, tarefa menor.

À noite, já na taberna o Guilherme contava para quem o ouvia que no desenrolar da procissão e quando finalmente os pratos de fizeram ouvir, a Santa virou-se para trás e disse: – Muito bem Guilherme, assim é que se toca!

 

(CONTINUA)

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