Carta a Minha Mãe
Escrevo-lhe esta carta, sabendo que nunca a remeterei, pois ignoro onde está. Sei apenas que a mãe deve habitar num campo florido situado, algures, na imensidão da eternidade. A ternura do seu coração jamais lhe permitiria viver numa paisagem mais agreste, onde a luz e a natureza esplendorosas não fossem rainhas, as eternas soberanas do belo.
Conheço-a desde quando me aconchegava no seu colo nu e ternamente me amamentava (ainda hoje me recordo da maciez da sua pele) e me cantava canções de embalar. Talvez até já a conhecesse antes (quem sabe?), desde sempre, desde o alvorecer dos tempos.
Cresci no seio da nossa família, num ambiente pobre, de quase penúria, mas rodeado de carinho e, principalmente, do seu amor, mãe, que com a sua alegria de viver e com o brilho terno dos seus olhos a iluminar-me os caminhos, fez de mim uma criança feliz.
Recordo, com nostalgia, a minha infância despreocupada e risonha, semelhante em tudo à dos filhotes dos cães, que parecem sorrir enquanto brincam abanando as caudas. A memória é o cimento que constrói a base da nossa vida futura e a minha está impregnada de sons, de cheiros, de imagens, de amor. São fragmentos soltos, coisas simples que brotavam de si como de uma fonte da eterna felicidade e que me extasiaram e extasiam até hoje.
Uma das mais vívidas recordações que me tem acompanhado recua até aos meus dois, três anos: estávamos no jardim da Quinta das Rebelas, era um fim de tarde de verão, a passarada aninhava-se no arvoredo num imenso chilrear e os últimos raios do sol infiltravam-se pela folhagem. A mãe chamou-me, eu corri para os seus braços estendidos e a mãe levantou-me no ar. Nesse momento, vi o seu rosto iluminado pelo sol e fiquei com a sensação inesquecível de ter voado como os pássaros. Mais tarde, já homem, constatei que, naquele momento, nós nos transcendemos e fomos, momentaneamente, personagens de um quadro de John Constable.
Mãe, jamais esquecerei também o seu empenho em ensinar-me as primeiras letras e o orgulho, indisfarçável, que sentia ao ver-me progredir na escola. A minha própria felicidade foi tanta que, egoisticamente, me esqueci de lhe agradecer aqueles primeiros impulsos, fundamentais para o meu desenvolvimento, e de como foram dados com tanto carinho.
Mais tarde, já adolescente, ligava a minha viola (precariamente electrificada) à telefonia lá de casa. A mãe ralhava e reclamava do barulho, mas o seu rosto traía-a e eu lia nele o consentimento, porque o seu desejo era ver-me feliz, mesmo que avariasse o aparelho.
Um dia, o seu semblante ficou sombrio e eu, sem nada compreender, vi pânico nos seus olhos. Tinha começado a guerra em Angola e eu ia fazer quinze anos. Talvez o conflito terminasse antes de eu ser chamado a cumprir o serviço militar, pensou a mãe, mas nunca fiando! Lembro-me de que a mãe moveu céus e terra para que eu não fosse mobilizado. Quando, finalmente, o conseguiu, o alívio iluminou-lhe o olhar. Agora já podia ir, tranquilamente, recomeçar a vida que tinha sonhado com o pai, nas terras promissoras de França. Inconscientemente, aceitei os seus esforços, mas não reparei no amor que eles continham e um dia, sem ninguém saber da minha vida e dos meus projectos, enviei-lhe uma carta proveniente das margens do Índico…
Não imaginei a sua dor, nem a angústia que viveu, ao descobrir que eu estava em África, onde havia guerra. Não lhe disse que não tinha ido para lá combater e que eu só quis singrar o meu próprio caminho.
Com a irreverência da minha juventude imaginei que a iria compensar quando, um dia, lhe bati à porta, em Paris, sem a ter avisado de que já não estava em Moçambique.
Foi a partir dessa altura que a vida (ou o destino) nos afastou, fisicamente, um do outro. A mãe fugindo da miséria, seguiu o pai e, como verdadeiros pioneiros, foram para França abrindo o caminho a milhares de outros portugueses que, numa contínua vaga humana os seguiram, e eu, eu respondi ao apelo que me veio de África e perdi-me naquelas paisagens dos horizontes infindos.
Fugazes foram os nossos encontros a partir de então. Fui muitas vezes a França visitá-los e lá, além de vos rever, beijar e sentir o prazer de estar de novo em casa, aprendi a amar Paris, aquela cidade prenhe da cultura que a minha alma sensível exigia. Outras vezes, quando as minhas frequentes deslocações e permanência nas colónias permitiam, encontrávamo-nos no Vale de Santarém, a terra onde estavam as nossas raízes. Então, com as corações repletos de saudades antigas, recuperávamos tudo o que era possível do convívio dos tempos da minha infância e da adolescência.
Depois, o imponderável acaso, levou-me para a outra margem do Atlântico, para o Brasil, e a distância entre nós aumentou.
Recordo-me de uma vez o pai me ter pedido para ir imediatamente a Portugal. A mãe estava doente e o pai temia o pior. Foi em 1982 e eu, com o coração apertado, fui, Quando cheguei, para minha surpresa e contentamento, a mãe estava bem. Não imaginei que, mais uma vez, a mãe se tinha superado para que eu não a visse sofrer. Como o seu coração de mãe tinha nuances que eu nem imaginava?
Algum tempo depois, aceitou o meu convite e foi ao Brasil. Nesse momento, eu sabia que havia outra força a crescer dentro de si. Havia o desejo ver, além do filho, os seus netos, que se tinham tornado adolescentes sem que a mãe tivesse acompanhado o seu desenvolvimento. E, novamente, embora numa terra de clima tropical, a mãe pareceu-me estar bem, apesar da doença que a consumia.
Desses encontros, ao longo dos anos, nunca esquecerei a tristeza que os seus olhos transmitiam na hora das despedidas e de mais uma separação.
Mas, mãe, de todas elas, houve uma que para mim foi inesquecível e cuja lembrança, os anos que eu ainda viver, jamais apagarão.
Estávamos no Vale de Santarém, em Dezembro de 1989 e era uma noite tempestuosa. O céu de nuvens em declive e com rasgões de tormento e de luar enchia-se de poças que se fendiam, e de montanhas. Relâmpagos intempestivos ziguezagueavam na escuridão, enquanto a chuva diluviana caía, prenunciando o fim dos tempos. A mãe estava soerguida na cama e pediu-me para me sentar ao seu lado. Depois, fez uma retrospectiva da nossa vida, desde o longínquo dia em que me pariu. De vez em quando a mãe sorria, lembra-se? Aos poucos, sua voz foi enfraquecendo e ficou reduzida a um simples murmúrio. Com a lentidão e solenidade de uma deusa, afastou a cabeça do meu peito e olhou-me com doçura, e então, serenamente, beijou-me. Perpassou-lhe no olhar todo o amor que uma mãe tem por um filho e eu vi aflorarem-lhe duas lágrimas que, além do brilho, tinham a eternidade das estrelas. Eram duas pérolas de orvalho que cintilavam nas ervas matinais de um prado longínquo. O seu rosto resplandeceu de paz e de tranquilidade interiores, como se estivesse envolto numa aura. A mãe, voltou a encostar a sua cabeça no meu peito, apertou a minha mão e um frémito suave percorreu-lhe o corpo.
Lá fora a tempestade mantinha uma calma secreta e própria. Surgido de uma nesga do céu, um relâmpago, mais brilhante que todos os outros, riscou a noite e rasgou o céu, permanecendo estático no espaço, logo seguido de um imenso trovão que resvalou até se perder nos confins do firmamento. Estou certo que aquele relâmpago veio indicar-lhe a vereda luminosa a seguir, para lá do abismo do tempo.
A mãe morreu sem um gemido e sentindo, pela última vez, a batida do meu coração, o coração do seu filho.
Fiquei ali, só, amargamente só, impotente perante o destino inexorável, segurando contra o meu, o corpo que me dera a vida e do qual a vida suavemente se esvaiu.
Não sei se a mãe me ouviu, mas os meus lábios apenas balbuciaram estas palavras, que uma estúpida vergonha me impediu de pronunciar ao longo da vida:
“Mãe, eu amo-a muito”.
O seu filho
Vale de Santarém, 8 de Dezembro de 1989
Companheiro e amigo, um abraço bem grande por esta prova de Amor, que alguns guardam e não são capazes de mostrar para que os outros possam ler.