Celebrar a Derrota

O dia amanheceu claro naquele mês de Julho.

Pela faixa negro-cinza do asfalto da estrada, que sobres­saía como uma imensa cicatriz entre o amarelo dos campos circundan­tes que se perdiam nos horizon­tes distantes, deslo­cava-se um carro, sem pressa, pelas planuras do Alentejo em direcção ao Nascente.

Os seus quatro ocupantes comentavam a beleza tranquila e quase desértica daquela região, que só oca­sionalmente ganhava vida com uma pequena manada ou com um rebanho pastando na sombra escassa das raras árvores.

Um deles, natural de uma pequena vila perdida naquela imensidão, comentou que a beleza da paisagem parecia um antigo cartão-postal mas, tal como no passado, nunca revelava os sofrimentos e as humilhações que as populações dispersas enfrentavam com a exploração a que eram sujeitas pelas classes dominantes.

Outro dos passageiros logo acrescentou que nos campos do Ribatejo, onde nasceu e cresceu, também conviveu com essa mesma realidade, Lá, e isto ainda durante a ditadura de Salazar, os donos das grandes herdades dominavam as terras e as gentes, como se fossem donos de escravos ou de servos da gleba medievais.

Um terceiro corroborou-os, mas acrescentou que, apesar de todas as lutas e revoltas contra essa forma de opressão, tudo continuava na mesma. Para ele, os homens nada aprenderam com o passado e persistem em cometer os mesmos erros de antes e, no entanto, ficam sempre muito admirados quando alguns, mais indignados e inconformados procuram, à sua manei­ra, reverter essas situações.

O condutor do carro, homem de pensamento rápido e de verbo acuti­lante, demonstrava uma grande intolerância para com as injustiças cometidas contra o povo. Ele achava que aquelas eram uma afronta aos sacrifícios feitos por tantos, em certos casos, até com a perda da própria vida, bem como as acções que praticaram e que sempre puseram em risco a liberdade de quem as praticou. Com convicção, afirmou que estava a chegar o tempo de as retomar.

Todos concordaram com a sugestão e que estavam dispostos a voltar a fazê-lo, apesar da sua idade avançada, pois os tempos actuais estavam a ficar muito parecidos aos da ditadura.

Na verdade, se uns tinham mais de setenta anos, outros estavam à beira de os atingir, porém, um obser­vador seria facilmente enganado com a jovialidade e firmeza dos seus comentários.

As conversas daqueles viajantes convergiam sempre para o denominador comum do inconformismo num ambiente cons­pira­tivo, embora se referissem sempre ao passado. Ouviam-se, amiúde, as expressões “ac­ções”, “as­saltos”, “exílio”, “luta”, “prisões”, “disfarces”, “clandes­tinidade”, “golpes”, “compa­nhei­ros”, “mor­tos”, “revolução” e, com muita frequência, “luta armada”.

Não era difícil deduzir que eles eram homens que tinham participado em acções revolucionárias no ardor da sua juventude generosa, quando lutaram, cada um à sua maneira, para derrubar a ditadura de Salazar e que se opunham a qualquer tipo de opressão.

Dirigem-se para a casa de um amigo comum onde se vão encontrar com outros companheiros vindos de vários lugares do país e até do estrangeiro.

 No entanto, o motivo que ali os leva não é nenhuma acção de guerrilha, muito pelo contrário, é somente a come­mo­ração de um aniversá­rio. E o insólito reside aí, pois vão recordar e enaltecer uma data que assinala uma derrota.

Sim, uma derrota, mas em cujo ventre já germinava a semente do fruto vitorioso de uma revolução popular. Esta iria ter uma enorme repercussão a nível mundial, desper­tando a consciência de que os povos oprimidos podem vencer os seus opressores, desde que tenham a convicção de que a sua causa merece todos os sacrifí­cios e que a sua força reside na união de todos.

A vila onde chegaram localiza-se no autêntico Alen­tejo profundo, longe da futilidade e dos comodismos dos grandes centros urbanos.

À porta da casa caiada e com a caracterís­tica barra azul, o dono da casa, homem de idade avançada, aguardava-os com a simpatia que lhe é peculiar, com um sorriso franco, honesto, cativante. Ele reconhecia-os a todos apenas pela voz, pois a luz dos seus olhos tinha-se apagado lenta­mente, talvez devido às inúme­ras sevícias e torturas a que fora sujeito nas sombrias masmor­ras da repressão.

Todos os participantes daquele encontro no Alentejo o reverenciavam como a um ídolo, pois reconheciam-no como o exemplo de um resistente e do seu empenho na luta pela dignificação de todos os povos oprimidos e explorados.

Enquanto jovem, e como padre da igreja católica, deixou a pobre região transmontana onde nasceu para ir encontrar no Nordeste do Brasil uma outra pobreza, esta já ‘na ordem da miséria’, segundo as suas palavras.

Foi aí que fez a opção pelos seus carenciados paroquia­nos, devido à qual viria a incom­pa­tibilizar-se com a hierar­quia da Igreja. No entanto, continuou a viver entre os camponeses parti­lhando com eles a sua pobreza mas esclare­cendo-os sobre as desi­gual­dades existentes entre os homens e mos­trando-lhes a forma de contrariar essa reali­dade. A organiza­ção das Ligas Camponesas, com ocupações de terras e de engenhos e a sua partici­pação nos sindicatos rurais com discursos inflamados de verdade, gran­jearam-lhe o respeito dos camponeses pobres mas, também, a animosi­dade dos latifundiários e das autoridades civis e eclesiásticas.

Um convite para participar no Conselho Mundial da Paz, em Moscovo, após uma intervenção num debate sobre Cuba, permitiu-lhe conhecer muitas das persona­lidades internacio­nais que lutavam pela dignidade dos mais pobres mas, também o colocou sob os holofotes da Polícia Política brasileira.

Logo depois, o golpe militar no Brasil obrigou-o a asilar-se no México seguido da ida para Cuba onde fez preparação político-militar para ajudar na organização do movimento revolucionário para o derrube da ditadura no Brasil. O seu regresso clandestino ao Brasil levou-o a participar em inúmeras acções que, inevita­velmente, o iriam conduzir à longa prisão e à tortura, mas que não lhe abalaram a vontade de continuar a lutar contra todas as formas de opressão.

Era este o anfitrião que os esperava com a compa­nheira à porta de sua casa naquela vila alentejana.

Seguiu-se, então, a alegria dos reencontros entre aqueles homens e mulheres que partilhavam do mes­mo prazer de estar juntos e irmanados pelos mesmos ideais de um mundo melhor, mais igual e mais livre.

Depois dos abraços e da troca de recordações, todo o grupo se reuniu à volta da mesa. A caldeirada de borrego a fumegar nas travessas e o vinho tinto a colorir os copos, que se enchiam e despejavam rapida­mente entre risos e frases soltas, faziam florir a amizade.

Ao almoço seguiu-se o café, acompanhado da mais pura aguardente produzida no Alentejo.

Depois, o anfitrião levantou-se. Os seus olhos para­dos pousam sobre a assistência como se a vissem e ele demonstrou a intenção de falar. 

Instalou-se um súbito silêncio reverente, quase religioso, pois qualquer ruído, naquele momento, seria considerado profano, e todos os olhares se dirigiram para ele, aguardando as suas palavras.

– Meus amigos, como sabem, passam hoje sessenta e dois anos sobre o dia em que ocorreu o assalto ao quartel de Moncada, em Santiago de Cuba, em 26 de Julho de 1953. Há datas que devemos sempre reveren­ciar e assinalar, porque são marcos que nos indicam que algo de extraordinário aconteceu e que não deve ser esquecido.

Neste caso, foi uma acção armada, em Cuba, levada a efeito por Fidel de Castro com mais 165 compa­nheiros jovens idealistas, cujo propósito era derrubar a ditadura de Batista, um lacaio a soldo da Máfia e do governo americano, que explorava e oprimia o próprio povo para benefício próprio e daqueles a quem servia.

Indignados por verem que o seu país era uma gigantesca plantation da monocultura do açúcar, em que os trabalhadores eram explorados e passavam fome, e as suas cidades estavam transformadas num imenso bordel, onde as mulheres cubanas tinham de se prostituir para sobreviver, para alimentar o gáudio e o prazer dos ricos e despudorados gringos que ali, impune­mente, satisfaziam os seus vícios mesquinhos, aqueles homens revoltaram-se.

Aquele não era um acto aventureiro realizado por jovens impulsionados pelo ardor da juventude. Não, era uma acção pensada, discutida e num conceito absolutamente original de guerrilha urbana. É bom que se diga que, nesse dia, enquanto Fidel atacava o quartel, o seu irmão Raul atacava o Palácio da Justiça e Abel Santamaria um hospital militar, todos nas cercanias do quartel, de acordo com um plano previamente traçado e bem coordenado. – O dono da casa, interrompendo o seu discurso, pediu que lhe dessem o seu copo de vinho e logo continuou:

Estas acções, embora cuidadosamente preparadas, acabaram por se saldar por um terrível fracasso em que grande parte dos homens que a executaram foi morta ou presa e Fidel foi posterior­mente exilado. No entanto, esse insucesso não acobardou os revoltosos e, pouco tempo depois desse desaire, a revolução Cubana, qual Fénix renas­cida das cinzas, sairia vitoriosa e mostraria ao mundo a força de um povo unido pelo mesmo ideal.

Na verdade, esta foi uma vitória que pertenceu inteira­mente ao povo cubano, sim, porque foi o povo que fez a revolução, que venceu a tirania e que disse ao mundo que o imperialismo na ‘ilha da liberdade’ já não tinha mais vez. 

Eu também estive em Cuba e tive a oportunidade de viver e de participar na Revolução. Cheguei lá em Julho de 64. Fui para receber treino político-militar e poder ajudar a derrubar a ditadura no Brasil.

Estive lá quase dois anos.

A Revolução estava em marcha e era uma alegria vê-la frutificar. Trabalhava-se com alegria e a igualdade era absoluta. Afinal provava-se que uma sociedade de homens iguais era possível.

Conversei bastante com o Che Guevara. Um homem afável com a cabeça cheia de ideais que o iluminavam como se tivesse uma aura. Fiquei amigo dele para sempre.

O Fidel de Castro era uma pessoa maior, não um mortal comum. Era um líder nato, menos acessível, por isso, mas quase idolatrado. Alimentava a Revolução a cada minuto indo ao encontro das pessoas, para tentar resolver-lhe os problemas, não era um líder de gabinete.

Eles, em Cuba, com a experiência obtida com cora­gem e desassom­bro, ainda estavam a aprender como se faz uma revo­lução vitoriosa e eu, entusias­mado, estava lá para rece­ber os seus ensinamentos e aplicá-los contra uma outra ditadura igualmente feroz.

É evidente que as ditaduras não se derrubam com discursos e que os ditadores não reconhecem outra lingua­gem que não a das armas. Por isso, meus amigos, para os combater torna-se sempre necessário utilizar os mesmos meios violentos que eles utilizam. E a isso chama-se guerra.

É sabido que a guerra é a mais amarga das teologias, mas também é o último recurso do povo que se quer libertar. Só a entendo assim. A única moral da guerra é vencê-la.

Uma enorme salva de palmas irrompeu da assistên­cia e coroou o discurso daquele homem simples, mas de uma firmeza inabalável.

Outros presentes também deram, depois, a sua opinião sobre a revolução em Cuba, entre eles, uma jovem jornalista cubana que falou da luta que o povo trava, apesar das precárias condições em que vive devido ao bloqueio norte-americano à ilha, e que ainda continua com a mesma vontade indomável e a mesma determinação de resistir aos embates do imperialismo.

Por fim, cantou-se. Eram músicas latino-americanas com forte pendor ideológico que galvanizaram todos os presentes. A última delas, como não podia deixar de ser, foi a célebre ‘Comandante Che Guevara’, como home­nagem à Revolução Cubana que todos exaltavam.

O dia já declinava, a luz perdia força e o encontro daque­les amigos chegava ao fim. Os abraços efusivos que davam entre si eram sempre acompanhados com os votos de um próximo e breve encontro, mas os mais emotivos foram reservados para o anfitrião, que a todos agradeceu a presença calorosamente e com um sorriso pleno de gratidão.

  No regresso, os quatro amigos comenta­vam o encontro em que tinham participado. A exaltação das conversas que tiveram durante a manhã deu lugar ao reconhecimento comum da grandeza do seu anfitrião, um verdadeiro revolucionário.

Alguém comentou: Enquanto houver homens como este nosso grande amigo, com tem a coragem de celebrar uma derrota, na qual já antevia o surgimento de um mundo mais justo, mais fraterno e mais livre, a esperança por um amanhã melhor não morrerá. A sua utopia será sempre um farol para todos nós.

Reinaldo Ribeiro

26/7/2015

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