Crise de Identidade

A sombra de uma acácia espalha-se, diminuta e imprecisa, sobre o capim ralo atenuando um pouco o calor intenso que paira na orla da grande planície.

Um homem ainda jovem pára o jeep e detém-se a observar aquele lugar em que tudo lhe é tão familiar. As recordações de infância, puras e belas, afloraram-lhe, de imediato, ao espírito.

Ele era, então, um rapazinho descalço, de cabelos alourados e desgrenhados, de olhos esverdeados que, na sua candura infantil, ria despreo­cu­padamente tentando apanhar a cauda fugidia de um peque­no macaco, um dos seus companheiros de brincadeiras.

Nasceu em África, filho de europeus, e sempre viveu em simbiose perfeita com a Natureza e na plena liberdade que só os horizontes sem fim transmi­tem. A cor da sua pele e os cabelos louros e lisos, tão diferentes dos das outras crianças com quem convivia, eram apenas uma ligeira distinção visual, na qual nunca reparou, porque em tudo se sentia igual aos restantes.

A casa colonial onde nasceu era cercada por um grande relvado, pontilhado por vistosas palmeiras-leque. Na va­ran­da, os seus pais apreciavam os belos entardeceres sentados em confortáveis cadeiras de recosto e rodeados de vasos com plantas orna­mentais. Aquela era a única casa de alvenaria que ali havia e estava situada no perímetro de uma pequena aldeia que fervilhava com uma humani­dade pura e simples.

Era lá que ele brincava e foi com o povo da aldeia que cresceu, assimilando a sua cultura, os seus costu­mes e a sua língua, que até falava com mais fluência do que o inglês dos seus pais.

Aprendeu, com os mais velhos, a conhecer as árvores, os frutos, os arbustos, as ervas, com todas as suas proprieda­des, quer fossem alimentares, medici­nais ou, até mesmo, as que tinham aplicações espiri­tuais; a caçar e a levar para a aldeia o que apanhava; a partilha foi a sua maior lição, pois aprendeu que o pouco que havia era sempre para ser dividido entre todos e nunca para uso exclusivo; a conhecer os animais e os seus comportamentos; a procurar a água oculta em nascentes antigas ou improváveis.

Um rio de águas preguiçosas deslizava nas cerca­nias da aldeia, onde ele tantas vezes pescou e aprendeu a nadar. Não era raro os animais da savana ali se dessedentarem, principalmente na estação seca. O instinto e a necessidade levava os herbívoros se­quiosos até ao rio, logo seguidos pelos seus predado­res na interminável luta pela sobrevivência.

Foi, pois, de forma natural, que ele aprendeu a conhecer as várias espécies animais e a compreender que elas faziam parte integrante da vida.

Com a morte prematura dos seus pais num acidente, ele, ainda pré-adolescente, foi viver para a cidade com um casal amigo dos pais. Aí frequentou um colégio onde concluiu os estudos secundários.

Porém, a adaptação à vida da cidade nunca chegou a acontecer. Ele sentia-se prisio­neiro de formalismos que não entendia. No colégio, nunca fez amigos por­que os colegas rejeitavam-no – chamavam-lhe “preto” – e não queriam conviver com ele. Então, ele próprio se isolou e passou o tempo a sonhar voltar para o seu mundo, para junto da sua gente onde se sentia entre iguais.

O destino sorriu-lhe quando o adminis­tra­dor de uma reserva de caça o convidou para trabalhar quando soube da experiência que ele tinha da vida selvagem. Ele não hesitou e prontamente aceitou o convite. Era a opor­tu­nidade para o desejado regresso às suas origens, à vida simples onde mora a liberdade e que não tem limites.

A reserva para onde foi trabalhar era longe do lugar onde nasceu, mas as gentes das aldeias instala­das no seu interior depressa percebe­ram que a sua diferença estava apenas na cor da pele e dos cabelos. Ele comia a mesma comida, falava a sua língua, conhe­cia a sua cultura e tinha pela Mãe África o mesmo amor.

O seu trabalho na reserva consistia, principal­mente, na preservação das várias espécies, no seu recenseamento, na recolha e cuidado dos animais órfãos e no comba­te à caça furtiva. Além disso, ensinava as populações das aldeias a manterem uma relação harmoniosa com a Natureza e até criou uma pequena escola para a juventude local.

Não podia ser mais feliz.

Um dia, numa das suas raras deslocações à cidade, ouviu falar das revoltas que estavam a surgir por toda a África contra a dominação colonial.

Como não tinha muito conhecimento das coisas que se passavam fora da reserva não deu grande impor­tância ao assunto. Afinal, o que lhe podiam interessar as maquinações políticas urdidas num mundo que era o oposto do seu?

No entanto, apesar da sua ignorância, havia uma multidão de espíritos revoltados que almejava algo em que ele nunca tinha pensado: o direito fundamental à liberdade para todos. E que gritava bem alto que a opressão da minoria branca exercida sobre a imensa maioria da população africana tinha de acabar.

Foi, pois, com surpresa, que reparou que os povos das aldeias com quem convivia diariamente passaram a evitá-lo e até a mostrarem-se hostis. Ele ainda não sabia, mas os ventos da revolta já sopravam pelas cidades, matas e savanas e espalhavam-se rapidamente como fogo no capim seco.

A curta mensagem que recebeu da cidade, via rádio, naquela noite alarmou-o: ‘Saia já da reserva! Fuja! Estão a matar todos os brancos que encontram!’

O alvorecer foi encontrá-lo longe, algures na sava­na. Carregou no jeep tudo o que precisava e partiu numa viagem sem destino, com o objectivo único de salvar a vida.

No tumulto dos seus pensamentos, convenceu-se de que se a cor da sua pele e do seu cabelo eram a fonte do ódio que lhe manifestavam, então iria para a sua aldeia e para a sua gente, onde sabia que essas diferenças não existiam. Lá, onde estavam as suas raízes, ele iria encontrar refúgio, sem qualquer sombra de racismo e a mesma antiga igualdade.

Agora, ali parado junto daquela acácia, sob a qual tantas vezes brincou, olhava, com a tristeza a transbordar-lhe da alma, as ruínas calcinadas da casa onde nasceu e a total devastação da aldeia.

Foi, então, com perplexidade, que se questionou sobre a sua própria existência. Com relutância e assombro descobriu que já não pertencia a lugar nenhum, nem a ninguém, pois ele próprio já não sabia quem, na realidade,  era nem qual o seu lugar no mundo.

 

Reinaldo Ribeiro 10/03/2017

 

One thought on “Crise de Identidade

  • 23 de Novembro, 2018 at 14:50
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    Adorei o texto. Como eu me identifico com muitos dos momentos vividos no meu Alentejo. As minhas raizes já não sei onde se encontram…talvez nas minhas memórias e nos meus afectos e naquelas planícies cobertas de azinho e sobro. A Natureza é o meu mundo. Obrigado companheiro pela tua bela crónica.

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