Dona Rosa
Há poucas pessoas que não tenham já visto e ouvido a Rosa Francelina Dias Martins mais conhecida somente por Rosa, uma invisual que toca ferrinhos e canta fados e canções conhecidas portuguesas enquanto espera por uma dádiva na sua caixa de madeira com ranhura.
Há muitos anos que ela se costuma sentar na Rua dos Pescadores, perto da Meta.
A Rosa nasceu no Porto na freguesia de São Nicolau a 1 de fevereiro de1957 no seio de uma família muito numerosa, é a segunda mais velha de 22 irmãos, a maioria falecidos prematuramente. Das 22 crianças nascidas à razão de uma por ano só chegaram à idade adulta oito delas.
O pai de Rosa dedicava-se à Construção Civil e a mãe, sempre grávida, dividia o seu tempo entre partes fraldas, confeção de refeições, lida da casa e a educação dos filhos.
Foi uma criança aparentemente saudável até aos 4 anos, quando uma forte dor de cabeça quando brincava com as outras crianças ao jogo da cabra-cega acompanhada por uma sensação de que todas as luzes do mundo se tinham apagado e sem forças nas magras pernas a levou a pedir com insistência, para lhe destaparem os olhos. Levaram-na para as urgências do hospital, onde lhe foi diagnosticada meningite.
No hospital, durante bastante tempo (não se recorda quanto) permaneceu num quarto, isolada de qualquer contacto exterior, a não ser com médicos e enfermeiros. Recuperou a força nas pernas que a impediam de andar, mas nunca a sua preciosa visão que se apagou para sempre naquele famigerado jogo da cabra-cega.
Por volta dos 9 anos veio para uma escola em Lisboa, própria para invisuais, num regime de internato, tendo como companhia muitas outras crianças sem o dom da visão.
Nunca teve muitas visitas. O pai visitava-a esporadicamente quando vinha a Lisboa ver os jogos futebol do seu clube do coração, o Benfica, e a mãe permanentemente ocupada com os filhos que chegavam e partiam todos os anos, não tinha disponibilidade para deslocações.
O regime escolar permitia que tivessem férias no verão mas a Rosa raramente as passava na sua terra natal, tal como as outras colegas faziam por falta de meios económicos.
Perto dos 13 anos voltou ao Porto para uma outra escola de invisuais onde terminou a 4ºclasse.
Ao voltar a viver com os pais e irmãos, encarregue de tomar conta dos irmãos mais novos e outras tarefas que lhe eram atribuídas e sentindo com muita intensidade que não lhe davam o amor e carinho que pretendia, antes pelo contrário, tinha a convicção que era mal tratada, ouvia falar de um asilo próprio para pessoas como ela e achou que esse era o sitio ideal para um dia se tornar uma pessoa independente.
Depois de algum tempo na Associação dos Cardiais foi chamada para um estágio em Lisboa onde teve contacto com varias atividades profissionais tais como: oficinas, carpintaria, etc.
De volta ao Porto foi viver para um asilo católico que recebia pessoas pobres, a maioria abandonadas pelos pais. As que apesar do seu problema se moviam bem nas ruas das cidades, nas lojas, a atravessar as estradas, etc. tinham total liberdade para se moverem, muitas delas, infelizmente, quase nasciam e acabavam por morrer sem nunca saírem da casa onde foram acolhidas.
Feitos 21 anos, querendo ser independente teve uma conversa com a madre superiora a contar o seu desejo; a madre perguntou-lhe como iria ela sobreviver e a Rosa desenvolta respondeu que o plano dela era vender bilhetes de lotaria pelas ruas da cidade; a madre não concordou e rapidamente achou que o melhor era a Rosa voltar para os pais sendo que ela mesmo a levou à camioneta.
Porém, a Rosa só aparentemente estava convencida. Quando pode apanhou um táxi para a estação dos comboios que a levou a casa de uma amiga em Lisboa onde passou a primeira noite. Chegou a dormir na rua pelo menos duas vezes enquanto procurava uma casa para ela. Dormia onde podia pagando com o dinheiro que ganhava pela venda dos bilhetes da lotaria.
Um dia foi assaltada por uns meliantes que lhe roubaram todos os bilhetes da lotaria, não se deixou ir abaixo e com uma pequena caixa começou a pedir esmola para poder dormir, comer, vestir e lavar-se até que algumas colegas suas, também invisuais, lhe gabaram a voz, incentivando-a a cantar, o que passou a fazer, juntamente com os ferrinhos que ainda hoje a acompanham. Mais tarde concorreu para os recém construídos bairros sociais do Monte da Caparica e teve a sorte de lhe ser atribuída uma casa onde habita até hoje.
Quando lhe perguntei se a revolta morava nela em relação á sua condição, respondeu-me que não, que a aceitou sempre bem. A única mágoa carrega-a consigo: é o distanciamento entre ela e a sua família. Diz ela que apesar ter uma família numerosa nunca ninguém se preocupou ou a amou o suficiente.
Questionei -a sobre se ainda se lembrava de algum dia ter tido visão, ao que ela me respondeu que não, mas que costuma sonhar a cores, sabe também que não gosta do encarnado se não for misturado o branco.
Muitas vezes acordava e ficava desiludida porque tinha sonhado com imensas paisagens coloridas, assim como sempre sonhou andar de avião, que ela pensava ser uma espécie de carro só que maior.
Raras vezes se entrega a pensamentos negativos com a exceção do natal, em que fica sempre triste por não ter com quem partilhar. Quando chega a dezembro chega também a certeza de que para ela será uma noite em que, sozinha, se lembrará de tantos seres que passam esta quadra em união familiar.
Quanto aos sonhos que ela mais queria ver realizados, era um computador próprio para pessoas com a sua condição, que custa cerca 10 mil euros, estando ela disposta a tirar um curso que permitiria ter mais uma porta aberta para o mundo.
Diz ela que é um ser que arrisca muito ao pretender fazer tudo o que os que (veêm) fazem e por esse motivo já teve alguns percalços na vida.
Adapta-se muito bem a todas as situações com que se depara em casa e é perfeitamente capaz de cozinhar uma refeição num vulgar fogão a gás, tendo um alarme que avisa se o bico do fogão ficar acesso por esquecimento.
Há já muitos anos que a Rosa é vista e ouvida a tocar e a cantar por Lisboa e arredores e muita gente a admira. Um dia, a associação da ACAP contactou-a dizendo que um senhor austríaco que a viu uma rua em Lisboa a queria convidar para participar num programa na Áustria, foi a um festival Marraquexe, mais tarde uma pessoa de nacionalidade alemã convidou-a a gravar o seu primeiro CD neste momento já gravou 4 para alem de já ter participado em vários espetáculos pelo mundo fora e ter vídeos seus na internet com canções, sendo que a Rosa acha que é em Portugal que menos valor lhe dão.
A Rosa sabe ler em braile faz tricô gosta de ir até junto ao mar e ouvi-lo, gosta do movimento das pessoas pelas ruas, gosta de ler, gosta de ver as novelas da televisão mantém sempre nos lábios um sorriso e ao conversar com ela fiquei com a certeza de que encara a vida sem que o lamento tome conta dela nem se detenha muito tempo em questões que considera inúteis, tais como revoltar-se contra o que o destino lhe deixou em herança.
Li, reli, voltei a ler e…chorei…