Louco e Natureza
O LOUCO E A NATUREZA
Encostado ao parapeito de um moderno viaduto urbano, olho as escuras e fétidas águas que passam vagarosas – quase paradas – sob os meus pés.
Penso que aquelas águas talvez tenham sido eternas em tempos primordiais, quando corriam, de pedra em pedra, límpidas e alegres, descendo da montanha, onde nasceram, à descoberta do mundo. Porém, olhando a degradação da natureza circundante, sei que em breve irão deixar de correr, pois o ciclo da vida natural foi alterado e, agora, nada mais é do que uma recordação para os mais velhos.
Hoje, as águas já não jorram dos repuxos dos lagos, não brotam das fontes, não enchem os lagos e nem alegram as praças nem os campos, pois, ou já não têm forças para vencer os inúmeros obstáculos que encontram pelo caminho, ou perderam-se nalgum esgoto, nesses símbolos subterrâneos do modernismo.
Nas margens deste regato, que é apenas uma cloaca – como lhe chamavam os antigos romanos – resta uma árvore, única, sobrevivente, cujos ramos secos parecem dedos descarnados suplicando ajuda. Neles, empoleirados, dois pássaros, que há muito tempo não cantam, olham-se entristecidos, tão saudosos dos tempos em que as árvores verdejavam, o ar era puro e o céu azul. Apesar de tamanha desolação este espaço ainda é, para mim, um oásis, um refúgio. É aqui que encontro as reminiscências do altar que já foi o planeta inteiro.
Indiferente, a cidade fervilha de carros, de gente apressada, de ruído constante, de mil agressões à natureza moribunda.
Esta, oprimida e vencida pelo betão, pelo asfalto e pela poluição, olha em volta desesperançada e, nos estertores de uma lenta agonia, resigna-se. Sabe que o fim inexorável está próximo e, por isso, já não resiste. Para quê?
Os homens, alucinados pelo afã destruidor, tudo consideram substituível, até ela própria, a sempiterna deusa. Ninguém mais a venera. Somente os pintores, os músicos, os poetas e todos os que têm no sonho a sua razão de ser, a recordam ainda. Ah! e as crianças, que também aqui vêm frequentemente, talvez porque tragam consigo ainda as lembranças da primeira eternidade ou (quem sabe?) as vivências de um universo paralelo. Elas, entre risos cristalinos, brincam à volta da árvore ou ainda fazem, com a pureza de outros tempos, barquinhos de papel que depois lançam às águas sujas. São estes os únicos momentos de felicidade que sobrevivem naquele resquício da natureza. Tudo o mais é agressivo, desprezível!
Um homem aproxima-se com um andar agitado, nervoso. Olho-o com atenção. Desdentado, olhos errantes mas brilhantes, diz palavras incompreensíveis e gesticula descoordenadamente. Assemelha-se em tudo a um louco evadido de algum hospício. Subitamente cala-se e começa a cuspir vezes sem contas para a água. Com o olhar alucinado, segue a saliva branca que bóia à superfície da água quase negra, como se quisesse acompanhá-la até ao fim dos tempos.
Então, inesperadamente, diz-me: – Todos dizem que a minha memória é fraca e que o meu discurso é incoerente. Na realidade todos me chamam louco. Talvez tenham razão! Compreendo que as diferenças não sejam bem aceites. No entanto, senhor, se me permite, faço-lhe uma pergunta: entre mim, que não prejudico ninguém, pois apenas alimento o meu delírio com evocações do passado, e aqueles que destruíram, corromperam e eliminaram a fonte da Vida, ou seja, a mãe Natureza, quem é mais louco?
Reinaldo Ribeiro
10/07/2004
Na verdade, milhares de loucos, um pouco por todo o mundo, operam na destruição da Natureza. E outros acompanham-nos, ou dão-lhes cobertura, ou eles mesmos estão no poder, e fazem-no. Apesar de ser tão evidente, em tantos lugares do mundo, a desgraça da poluição e as suas consequências, a verdade é que continua e não tem havido consciência, organização e força politica suficiente, por parte dos cidadãos, a nível global, para uma oposição firme, consequente e que obtenha resultados contra a catástrofe anunciada. É preciso trabalhar ao nível de base, entre as populações, com clareza, com persistência, para inverter esta tendência para o desastre. E esta é, afinal, uma missão de cada um de nós, ou seja, daqueles que têm consciência da situação que vivemos, há décadas, e que há muito a fazer neste campo. É uma missão maior, uma missão de uma vida.