Lua Cheia em Agadir

Na orla da extensa baía de Agadir, como uma fronteira entre a praia e a cidade, fica a “corniche”: um “calçadão amplo com a praia de um lado e diversos restaurantes e cafés do outro.

Quando digo que esta “corniche” é ampla estou a falar de 170 metros de largo, e kilómetros de comprimento, piso bem pavimentado, convidativo à passeata e aos negócios que se estendem ao longo dela. Por outras palavras, o contrário do que a CostaPolis fez na Costa da Caparica: paredão estreito, sem esplanadas e com acessos raquíticos e que raramente sobrevivem um inverno.

Naturalmente, pelo areal de Agadir deambulam alguns camelos, na verdade dromedários, prontinhos para alugar e, claro, fotografar ou melhor, ser fotografado. De resto, em Marrocos, estes animais estão por todos os locais onde será de esperar encontrar turistas, de fora e de dentro. Mesmo os visitantes mais radicais do islão, com suas esposas cobertas à exceção dos olhos, algumas até com trela, não resistem ao passeiozinho de camelóide.

É das tais coisas…

A “corniche” de Agadir

Agadir, como tantas outras cidades costeiras marroquinas, esteve em mãos portuguesas que aí construíram a sua fortaleza, junto ao porto, protegendo as suas rotas de comércio marítimo.

Não podemos esquecer que estas cidades berberes constituíam pontos onde desaguavam caravanas vindas das profundezas de África, como de Tombuctu, no Mali, por exemplo, conectando tudo o mais pelo caminho. Havia um interesse comercial claro.

Curiosamente, além do interesse comercial, nessa altura, século XIV e XV, esta cidade do Mali era um centro de conhecimento assinalável, como de resto ainda é, sendo património da UNESCO, apesar de estar a ser invadido pelas areias do Sahara. Invadido ou submerso…

Acontece que Agadir é o princípio dessa vasta orla marítima onde se encontram as areias do Atlântico com as do deserto, uma faixa litoral que se estende para lá da Mauritânia.

A fortaleza portuguesa, que hoje já não se vê, chamava-se “Santa Cruz do Cabo do Gué”, fora construída em madeira no sopé de uma grande colina, perto do porto, junto a uma nascente, localização que parecia ter as melhores condições para o efeito.

Além das caravanas, o fértil vale do Sous atraía o comércio e, naturalmente, a inveja, pelo que a presença dos portugueses começou a criar resistências e, mais tarde, já no século XVI, no âmbito da ambição da dinastia  Sa’di, que acabaria a estabelecer-se em Marraquexe, Muhammad al-Shaykh ocupou o topo da colina de Oufla com artilharia e vá de bombardear a colónia portuguesa que, na altura contava com cerca de 600 almas.

Está bem de ver que a proximidade ao porto e a nascente de água potável, afinal, não eram tudo e, atingidos pela artilharia Sa’di e sem forma de ripostar, os portugueses capitularam em pouco mais de 1 mês, em março de 1541, faz agora 483 anos, com as mortes, destruição e violações da praxe, incluindo a filha do governador português que passou diretamente a esposa do conquistador. Morreu no primeiro parto.

Hoje, a esta colina – a Oufla – encimada pela fortaleza Casbah, (fechada para obras há vários anos), é acessível por estrada íngreme e por um teleférico, tendo para oferecer os muros da fortaleza e o seu portão fechado e, claro, a vista impressionante de toda a extensa baía. E camelos para alugar.

Na encosta virada à cidade, lá estão as 3 palavras em grande dimensão, iluminadas durante a noite, palavras que se encontram um pouco por todo Marrocos: Deus, Pátria, Rei.

Agadir significa “forte” e Oufla quer dizer “alto” em Amazigh, a língua bérber da região. Dada a variedade de tribos berberes, esta cultura Amazigh acaba por ser uma

entidade plural: “Imazighen”, com a sua língua e a sua escrita.

Bandeira dos povos Imozhigen

Em Agadir já existiu um museu da cultura Imazighen, celebrando as suas artes e a sua escrita. Mas esse museu agora é de arte contemporânea.

Os berberes não são árabes. Estarão historicamente mais ligados aos fenícios, cartagineses e antigos egípcios do que aos árabes.

Curiosamente, quando nós falamos da invasão árabe da península ibérica, na verdade, aqueles que nos invadiram foram estes berberes, eles próprios conquistados pelos árabes cerca de 10 anos antes de nos invadirem a nós. Na altura, não havia árabes suficientes para tal empresa, pelo que os berberes foram a matéria prima do tal “Al Garb”, muito pela sua natureza tribal que facilitava a organização desse exército: conseguida a anuência do chefe, tinham toda a tribo. Muito mais fácil do que a conscrição mancebo a mancebo.

Temos assim que ocupação “árabe” devia ser denominada mais propriamente de ocupação berbere. Mas enfim, contam os que mandam.

Foi completamente absorto, com estes pensamentos a povoar a minha mente, sentadinho na beira da corniche, que constatei – demasiado tarde – o enorme erro de não me ter agasalhado suficientemente para o frio da noite, nada comparável ao calor do dia acariciado pelo sol de Agadir.

Porém, as carraspanas curam-se e após uns dias de torpor febril, abafadíssimo dentro de todos os agasalhos com que viajei, mas sem nunca prescindir das longas caminhadas pela corniche, lá me reabilitei o suficiente para rumar ao sul, cobrindo o vale do Sous, descobrindo as vastas áreas de estufas e túneis de uma agricultura dedicada a morangos e outros frutos vermelhos.

Os emigrantes dos emigrantes dos emigrantes… Uma contínua corrente de exploração humana e geográfica interminável, que nunca acaba, qual matriosca, até acabar com tudo e todos.

 

Agadir, dezembro de 2023

 

 

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