A Praça Jemaa el-Fnaa, em Marraquexe

Marraquexe a Dois Tempos

Fui a Marraquexe em duas alturas diferentes, distanciadas por 35 anos. Ambas inesquecíveis. A cidade liga dois mundos muito diferentes, como é sabido, o deserto e a costa Mediterrânica, talvez mais arabizada.

A Praça Jemaa el-Fnaa, em Marraquexe

Porém, além destes mundos, estão também presentes vários outros diferentes mundos, a começar pelo nosso.

Cheguei a primeira vez de autocarro, vindo de Fez, depois de atravessar a poderosa cordilheira Atlas, numa viagem noturna entre o fantasmagórico e o cinematográfico. Meio a dormitar, especialmente nas zonas de breu noturno, acordado pelas luzes repentinas, normalmente esmaecidas, características da noite montanheira do Marrocos de então.

Saindo da estremunhada estação de autocarros, havia que caminhar até mais perto do centro para garantir um quarto em alguma pensão mais conforme com as nossas posses.

Estávamos no verão de 1986, quando não havia Internet, e os guias de viagem que consagraram as viagens autónomas, mochileiras e viradas para os orçamentos mais limitados, estavam ainda na sua infância. Além disso, – recorde-se – as malas ainda não tinham rodas.

Com uma mochila comprada no refugo militar da Feira da Ladra, tal como as botas de lona, que à noite tinham de ser colocadas, longe, a respirar, mas que duravam muito mais do que os ténis Sanjo, além do preço ser muito mais simpático, claro.

E lá íamos nós, ruas fora, a perscrutar as tabuletas de casas que pudessem ser pensões.

Viajava com o meu primo e sabíamos, vagamente, da zona onde se situariam. Encontrámos algumas, numa zona mais moderna, inspecionámos os quartos e escolhemos um, bastante espaçoso, com janela para o pátio central, e por poucos dinares.

Largámos as coisas, cansados, e decidimos sair, não só para ver a cidade, mas também para comprar comida, beber café… enfim, começar verdadeiramente o dia.

Nessa altura, viajava ainda com uma espécie de mini cozinha, um fogareiro minúsculo, uma panelinha e, imaginem, dois ou três enchidos, além das coisas que iam sobrando da refeição anterior.

Nem sempre cozinhava, mas abençoei a ideia de trazer aquelas pequenas coisas. Não era, e continuo a não ser, grande fã da comida marroquina.

Depois de arrumar o que tinha der ser arrumado, tomar banho e mudar de roupa, saímos então.

Grande erro.

Chá de menta

Numas e noutras coisas, naturalmente, demorámos o nosso tempo e, à saída, já perigosamente perto do meio dia, o sol já abrasava e não era o sol nosso conhecido.

Sei que, conforme andava, o calor ia penetrando o cabelo, depois o crânio. As pernas andavam, mas as ideias derretiam. Cheguei a um cruzamento com o sinal vermelho para os peões e, de repente, não sabia se queria atravessar ou simplesmente virar à esquerda. Ou o que fosse. Nem pensar conseguia.

Foi o meu primo que me agarrou no braço e me conduziu para um café logo ali na esquina.

À sombra da esplanada já conseguia pensar. Pedi um chá de menta e não uma cola. Os marroquinos é que sabiam daquelas coisas, pensei. E funcionou. A verdade é que daí para a frente não falhava um chá de menta e continuou a funcionar sempre. Até hoje.

Evidentemente, todos os caminhos iam dar à Praça Jemaa el-Fnaa.

Que lugar apoteótico! E, à noite, absolutamente feérico com os lampiões de cada vendedor, uns já a gás, mas muitos outros com velhos petromax, libertando o seu cheiro característico, com cada um dos vendedores a chamar-nos, rogando a nossa atenção para os seus produtos, muitos deles presentes em todos os mercados e outros, verdadeiramente indecifráveis.

Era uma visão assombrosa, com cada vendedor a criar a sua bolha de luz, e o todo, no seu conjunto, uma nuvem luminosa, diáfana, como que a flutuar na noite.

Isto, sem falar nos encantadores de serpentes, saltimbancos e até contadores de histórias, que reuniam à sua volta centenas de mirones.

Inevitavelmente, acabávamos sempre na Praça Jemaa el-Fnaa. Percorríamos os corredores formados entre tapetes estendidos no chão, cada um com as suas coisas para vender. Olhávamos com curiosidade o que havia por ali, sempre, mas sempre, de olho nos encantadores de serpentes.

Encantador de cobras

O problema é que eles não pediam dinheiro para vermos as serpentes, nem sequer para tirar fotos; pediam para as tirar de cima de nós. Pois a sua tática era aproximar-se sorrateiramente de um turista mais incauto e pumba, metiam a bicheza ao pescoço da sua vítima.

No último dia na cidade resolvemos fazer um guisado com o que sobrava dos enchidos, cenoura, couves e batatas. Era o que tínhamos e acabavam ali as iguarias que trouxemos de Portugal.

Tinha também vindo um minúsculo transístor, com antena extensível, onde tentávamos, à vez, encontrar uma estação mais a nosso gosto. Eis se não quando, inesperadamente, o zingarelho gritou: gooolo do Benfica! O meu primo quase o deixava cair. Ele era do Benfica…

Entretanto, o guisado estava cada vez mais cheiroso.

Nisto, batem à porta e era um inglês, também ali hospedado. “Vocês desculpem”, começou, olhando gulosamente para a panela, “este cheiro… não consigo resistir. Eu pago, mas deixem-me comer um pouco do que estão a cozinhar”,

Convidámo-lo imediatamente e não cobrámos nada. E lá ficámos os três, a ouvir o relato e a comer o guisado, até o inglês confessar: “sabem, eu até sou vegetariano, mas não consegui resistir a este cheiro”.

Desatámos todos a rir.

 

Safi, o apelo do oceano

 

Voltamos a um autocarro, desta vez em direção à costa atlântica, já que vínhamos da mediterrânica.

Nos nossos bilhetes estavam dois lugares marcados, um dos quais ocupados por uma matrona marroquina. Um jovem funcionário da empresa de autocarros, magro e de cabelo encaracolado, falou com ela que, resistindo, foi admoestada de forma mais agreste pelo rapaz.

Ainda hoje me lembro do olhar de ódio que a senhora me lançou. Face envolta num hijab negro, olhos ainda mais negros, realçados pelo traço também negro tradicional, coriscavam para mim, com um intenso desejo de me derrubar, quem sabe, fazer-me voar para longe.

Sentámo-nos apreensivos, e dois outros jovens sentados na fila atrás de nós aquietaram-nos. “Não se preocupem, ela teve o que merecia. Não tinha nada que se sentar nesse lugar!”

Pegámos conversa e falámos das coisas do costume, de onde são, etc. Na altura Portugal tinha perdido 3 a 0 com Marrocos no Mundial de futebol, por isso era tema frequente nas conversas.

Perguntaram então onde tínhamos ficado em Marraquexe e, sabendo da pensão em concreto, ficaram espantadíssimos: “Aí? Mas isso é um bordel!”

Caramba, não tínhamos dado por nada!

Construído pelos portugueses…

Ofereceram-nos a sua casa em Safi e passearam connosco nesse dia e no dia seguinte fomos todos à praia. Foi uma estadia divertidíssima.

Nessa noite, já em Safi, passeámos pela medina, demos uma vista de olhos à cisterna, ainda construída pelos portugueses, parte de um baluarte militar, e, antes de comemos algo leve, tropeçámos num cinema que tinha como cartaz dois filmes: Blues Brothers e Os Salteadores da Arca Perdida.

Tinham acabado de ser estreados e, apesar de já os termos visto, parecia-nos uma noite bem passada.

Os nossos amigos tentaram dissuadir-nos, mas faltaram-lhes as palavras.

Quando perguntei na bilheteira a que horas começava o filme e o homem respondeu que seria quando nós quiséssemos, desconfiei.

Fomos realmente ver os filmes. Antes, comemos uma sandes do saboroso pão redondo marroquino, repleto de ovo e tomate, com queijo escasso, e voltámos ao cinema com a expetativa de umas horas bem passadas.

A princípio não acreditava no que estava a ver. Esqueçamos os ratões que teimavam em passar de um lado para o outro, pela orla do ecrã, denunciados pela luz do projetor. O filme era uma fiada de cortes com segundos apenas, sem qualquer nexo, sem sequer seguindo o fio da narrativa.

Não houve qualquer intervalo e passou-se dos dois endiabrados músicos de blues vestidos de negro para o não menos endiabrado arqueólogo de Hollywood. Ao todo, não chegou à meia hora e estávamos já na rua. Onde também havia ratões.

 

De novo Marraquexe

 

Regressei a Marraquexe há poucos anos com a minha Isabel. Desta vez, fruto de progressos na carreira e da estabilidade da vida, fomos de avião. Graças à Internet, pudemos escolher um pequeno hotel entre a Medina e a Praça Jemaa el-Fnaa. Mas todas as ruas continuavam a ir dar à praça.

A Praça Jemaa el-Fnaa agora

Chegamos já de noite e eu ansiava pela revisita. A Praça Jemaa el-Fnaa continuava apoteótica e ainda mais feérica. Os candeeiros e petromax foram substituídos por potentes holofotes e filas e filas de lâmpadas fluorescentes. Irradiavam!

Tivemos uma refeição ligeira, ultrapassando as dezenas de empregados de restaurantes que nos chamavam, mostrando as suas iguarias, convidando-nos para as suas longas mesas corridas, ainda com clientes, que, também eles, nos convidavam e elogiavam a culinária daquele restaurante.

Entre os restaurantes, estavam frutarias apresentando as suas frutas dispostas em escada para melhor aliciar os potenciais clientes. Decerto eram polidas uma a uma, pelo menos de manhã.

Os restaurantes e frutarias formavam um bloco no exterior da imensa quantidade de comerciantes. Nas filas de tendinhas do interior, notava-se já o espírito de fim do dia, com os comerciantes cobrindo as suas mercancias, prontos para descansar, na sua maioria, ali mesmo.

No dia seguinte, uma vez que o nosso alojamento não tinha pequenos almoços, fomos a um pequeno estabelecimento, que o próprio hotel nos indicou, onde faziam pequenos almoços de omeletas, croissants e café.

Tinham uma televisão, com som muito alto de orações cantadas por um qualquer muezim. Porém, a imagem era parada, com a oração escrita para que todos a pudessem ler. Contudo, em rodapé, iam passando anúncios.

O café com a tv ao fundo…

Primeiro, não liguei, mas quando comecei a ler os anúncios, vários, eram de afrodisíacos, aumentos de pénis e por aí fora. Que diabo! Um contraste entre o som e a imagem que não dava para acreditar.

Antes de ir para a praça, fomos para a medina, uma praça também muito ampla, onde se impunha a alta Koutoubia, a torre que todos imitam em Marrocos, e não só.

Bebemos um ótimo expresso, numa esplanada que nos permitia apreciar o intenso movimento da praça e também o do café. Por um lado, fazia-me lembrar Portugal umas décadas atrás, quando os cafés ainda dominavam a vida, tal como ali, com pessoas a ler o jornal e outras simplesmente falando, obviamente constituindo um ponto de encontro.

Pessoas chegavam e sentavam-se com amigos, palrando alegremente uns, discretamente outros. Uma vida de café, um café com vida…

Depois, passeámos pela casbá, percorrendo calmamente as suas ruas estreitas, partilhando-as com vários outros turistas, uns em grandes grupos, outros, como nós, passeando ao ritmo da sua curiosidade.

Lojas de especiarias

As lojas, cheias de chinelos tradicionais, as babouches, coloridas de acordo com o género dos seus utilizadores, além das diversas coisas que ganharam, justificadamente, o título de marroquinarias. Mas também outras com tâmaras e outras iguarias, além de restaurantes e padarias e muitas lojas de especiarias, dispostas em cones com diversas cores. Um festim para os olhos.

Almoçámos por ali, uma tagine, para não destoar. Sentados na mesa,  naturalmente, eramos assediados por diversos vendedores. Uma delas, uma negra volumosa, vestida numa espécie de babygrow com as manchas de uma vaca leiteira, incluindo o capuz com orelhas, tentou vender-nos as mesmas pulseiras diversas vezes. Para ela, somos todos iguais.

Continuámos o passeio e, nos limites da Casbá, os nossos narizes tropeçaram numa tinturaria que também curtia peles. Que fedor!

O bulício, entre os tanques de químicos, era grande. Trabalhadores cumpriam a sua azáfama diária, incólumes ao cheiro. Um homem preveniu-nos: “não se aproximem deles, são berberes…”

Tivemos azar, não estavam a tingir mas sim a curtir peles de ovelha. Perdemos, assim, o espetáculo das tinas, cada uma com sua cor. Afastámo-nos o mais depressa que pudemos, mas o cheiro intenso parecia ter ficado nos nossos narizes.

As famosas árvores de argão a que nem as cabras resistem…

Traumatizados, continuámos a andar até às muralhas da cidade, onde alguns camelos esperavam por turistas. Não cheiravam tão mal como a curtição de peles, mas a ideia não nos pareceu sedutora.

Fomos então atraídos por outro odor, o do argão. Marrocos produz argão seja para fins culinários, seja para cosméticos, seja para simplesmente cheirar. Bem.

A loja de argão era o oposto. Odor subtil, pequenas caixas e frascos delicados, minúsculos embrulhinhos. Um deleite.

 

Ouarzazate, a porta do deserto

 

Para animar um pouco a viagem, resolvemos dar um salto a Ouarzazate, já no Vale de Draa e com um ambiente muito mais calmo do que Marraquexe.

A viagem é montanhosa, com estradas sinuosas e difíceis. No autocarro pudemos ver uma retroescavadora despenhada no profundo vale e atrasando o tráfego que era muito mais intenso do que imaginava.

A cidade era muito calma, com uma praça central, longe de buliçosa, com dois ou três restaurantes e igual número de lojas, tendo ao centro, uma zona bem pavimentada, com meia dúzia de miniaturas de automóveis para crianças.

A Kasbah de Taorirt em Ouarzazarte

A fama turística de Ouarzazate provinha dos seus estúdios de filmagem, da Kasbah de Taorirt e também como ponto de partida para excursões no deserto, o que não fizemos.

É verdade que os estúdios de filmagens estão lá, mas o mérito é principalmente da luz que o local tem, graças à exposição do sol, naturalmente, mas também pela refração daquelas areias.

Vários filmes foram lá, pelo menos parcialmente, rodados, desde Lawrence da Arábia a Gladiador. No entanto, é inescapável a sensação artificial própria de um cenário.

No entanto, a cerca de 30 km, fica  Ait Ben Haddou, consagrado património da humanidade pela UNESCO.

O ksar, um grupo de edifícios de barro cercados por muros altos, é um exemplo de urbanismo tradicional da fronteira do Saara. As casas aglomeram-se dentro das muralhas defensivas, reforçadas por torres em cada canto.

O Ksar de Ait Ben Haddou

O condutor que nos levou lá, formado em cultura arábica, segundo nos disse, reforçava a importância do local.

Quando lhe perguntei o que achava do Daesh, o homem até saltou no assento. “Malandros! São manigâncias dos sauditas, malandros!” No entanto, observei eu, quer Marrocos, quer a Arábia Saudita são da mesma linha Sunni…

O motorista até parou o carro e virou-se para nós: “Não, eles não são Sunni, nem Shia, nem sequer muçulmanos. Aquilo é outra coisa. É dinheiro, é poder, e estão a tramar os verdadeiros crentes muçulmanos”.

A Isabel deu-me um pontapé de aviso. É melhor falar do tempo, que estava realmente magnífico.

Todos concordámos e seguimos viagem em tom de bonança.

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