O estranho caso de Bluma Lennon
Mulher livre e empoderada, Bluma Lennon regia o departamento de línguas Hispânicas, na Universidade de Londres. Compartilhava o seu novo confortável apartamento nas Docklands com um gato de olho amarelo, de seu nome Wild. Este tem o temperamento ideal para acompanhá-la nas noites solitárias. Independente, escolhendo o afecto quando necessita, enrosca-se no colo da dona ronronando, enquanto esta descuidada o afaga, ao mesmo tempo que os olhos percorrem ávidos as páginas de mais um livro descoberto nos alfarrabistas. Às vezes o gato some-se por uns dias. Volta saciado. E, de mansinho entra em casa. De olhar suplicante pede colo, como quem pede desculpa, por uma traquinice, que não sabe ser uma necessidade vital.
Bluma, compreende bem este gato. O afecto desta mulher é repartido com o bichano, que nada lhe pede em troca. O amor e paixão conhece-os da literatura. É a literatura que ela ama. Sabe que a paixão é um sentimento que não deve acalentar. É perigosa. A paixão deve ser vivida como se bebe um trago de um bom vinho, saboreado lentamente e esvaindo-se num ápice. Nada mais do que isso. Porque a paixão, sabe-o pelos livros, é arrebatadora e subjugante. É independente, não quer situações que lhe fujam ao controle. Vive para o trabalho e para a literatura. Embora se lembre da frase da avó que quando era pequena lhe dizia, a literatura mata, Bluma pensava o contrário. Era através da literatura que se relacionava com a vida. O seu fio do horizonte.
As necessidades vitais atribuídas a Wild, também eram sentidas por esta professora universitária. Sedutora, tinha muitos admiradores entre pares e até mesmo entre os alunos. Mantinha relações íntimas com colegas de departamento que dirigia. Eram casos ocasionais. Nunca deixava os companheiros de alcova falarem numa vida em comum. Não precisava. Precisava sim, de uma boa conversa com quem tinha aptidão intelectual para a entender. Precisava sim, de compartilhar a intimidade do seu leito com um companheiro, que além de uma noite de amor, nada mais exigisse. E, que na partida lhe deixasse inviolável a sua liberdade. A sua vida corria de feição, controlada.
Era frequente ser convidada para dar conferências e participar em congressos. Entre as comunicações por ela apresentadas a um público erudito que a escutava com atenção, existiam as noites longas de conversas animadas. Conversas descontraídas que podiam dar aso a novos casos amorosos. Sabia bem seduzir. Durante os trabalhos diurnos era uma mulher que captava a atenção pelo seu saber. Após o jantar entre dois copos, descontraída, seduzia pela sua beleza balzaquiana, numa cavaqueira que sabia animar.
Numa dessas idas a congressos, Bluma vai ao México, mais propriamente a Monterrey. Ao contrário do que era usual, deixa-se encantar não por um dos conferencistas, mas sim por um bibliotecário, mais novo que ela. Um homem moreno encantador aos seus olhos, com aquela carga erótica, que se atribui aos homens latinos. Foram noites escaldantes. Sente-se vacilar. Os sentidos tomam o lugar da razão. Pensa, brevemente, estarei no avião. Livre da sensação de uma paixão que a começava a dominar. Porém, antes de deixar o México e o seu amante fortuito, resolve deixar-lhe o livro de Conrad, que a tinha acompanhado de Londres ao México. A dedicatória espicaçava Carlos, era esse o seu nome, a surpreendê-la, nos tempos mais próximos. Pretendia assim, conhecer até que ponto tinha deixado naquele, a marca indelével da paixão por ela sentida.
De novo em Londres, reencontra Wild, que tinha ficado em casa alimentado por um vizinho, que mal conhecia.
O vizinho Jack, era um professor há pouco aposentado e recém-divorciado. Há muito que a observava. Conhecera-a em tempos nos corredores da Universidade. Bluma indiferente nunca lhe tinha prestado atenção. Com espanto, Jack vê-a mudar-se para o apartamento ao lado do seu. Vê a dedicação que a nova vizinha presta ao gato. Por um acaso fortuito sabe da sua próxima partida para o México e, da aflição que a situação lhe causava relativamente à possibilidade de deixar o bichano num gatil. Simpaticamente surpreende Bluma, oferecendo-se para tomar conta de Wild, durante o período da viagem. Grata, aceita de bom grado. O bichano não precisava de sair de casa. E, Jack agradece. Pode assim, entrar sub-repticiamente no “santuário” que para ele representava a casa de Bluma. Reconhece a mulher intelectual na organizada biblioteca, nas pinturas expostas nas paredes, na grande selecção de música. Abre as gavetas da secretária, lê as anotações de livros, os manuscritos com críticas literárias a serem publicadas. Surpreende-se, a vasculhar as gavetas da roupa. O cheiro a Chanel deixa-o deliciado. Há tempos que não sentia esse íntimo perfume. Na cozinha apercebe-se da lista de produtos por ela utilizado. São nomeadamente produtos dietéticos. A preocupação da linha, a preocupação de retardar o envelhecimento, patentes também, na parafernália de cremes por ali deixados.
Da devassa do apartamento Bluma não se apercebe. Por simpatia com o vizinho e como forma de agradecimento, convida-o para jantar. Acede, dissimulando contentamento. Aparece à hora programada com uma garrafa de vinho. A refeição decorre penosa. Bluma, não bebe. Jack, conhecedor da intimidade do apartamento da vizinha e, confundindo o acessório com a essência, fala do processo de envelhecimento, da urgência de se reverter esse processo. Lisonjeia-lhe a forma como se mantém em forma, a sua elegância. Elogia-a constantemente, chegando a bajulá-la. Bluma enerva-se, mas não quer ser desagradável, com o prestimoso vizinho. Nada interessada na conversa, ouve-o distraidamente. Não lhe dá réplica. Ao som de Imagine de John Lennon o pensamento desta mulher transfere-se para o México. Emerge na imensidão de um mar imenso, sob um tórrido calor. Sente-se leve. E, vê-se dançando ora enlaçada a Carlos, ora freneticamente de tequilha na mão. A custo, desembaraça-se das imagens que a toldam e conduz Jack à porta.
Retoma a sua vida rotineira, e os seus fleumáticos amantes, que recebe em casa e com os quais se enrosca nos lençóis de linho a cheirar a rosmaninho. Jack ouve-os entrar e sair. Começa a espiá-la. Aparece na Universidade, convida-a para jantar. Os convites são declinados amavelmente. Sorrateiramente, persegue-a pelas ruas da cidade. Começa a conhecer os seus hábitos. Aparece-lhe na livraria junto à faculdade que Bluma frequenta. Faz-se encontrar nos locais mais diversos. Dá-lhe a entender que está apaixonado. Ela, finge-se desentendida e, continua a sua vida rotineira. A perseguição continua. À porta de casa, sempre com pretextos inusitados cada vez mais inoportuno. Telefona-lhe. Quando sabe que Bluma está acompanhada telefona-lhe às horas mais impróprias. A toda a hora recebe mensagens. Encontra-o na livraria, no pub, na rua.
Começa a sentir-se ameaçada e modifica os seus hábitos. Frequenta agora uma livraria no Soho. É nesta livraria que encomenda Os poemas de Emily Dickinson.
Entretanto, um dia quando chega a casa não encontra Wild. Mais uma incursão pelos telhados, pensa. Mas os dias vão passando e o gato não aparece. Jack solícito pergunta-lhe pelo bichano. Bluma, triste sem o gato, sai de casa e vai ver a exposição temporária de Frida Kahlo, patente na Tate Modern. Revê as pinturas de Kahlo, aquela cuja vida se confunde com obra. A imagética de Kahlo leva-a de novo ao México. Sentada na esplanada com vista para Saint Paul´s, enquanto beberica um chá de menta questiona-se sobre o desafio feito a Carlos. Nesse momento parece ver Jack. Inquieta-se. Despista-o. Entra novamente no museu. Procura a sala de Rotko. Aquela verdadeira “capela” instalada dentro da Tate Modern, montada segundo o desejo do autor. Não está ninguém. É invadida por um arrepio, ao deixar-se submergir na imensidão das telas e naquela iluminação crepuscular. Senta-se no banco central e entra dentro daquela massa de cor acetinada. Lentamente, aquieta-se. Recolhe-se. A paz invade-a. Esquece Jack. Sente-se leve e volta para casa.
No dia seguinte, à saída da Universidade Bluma, dirige-se à livraria do Soho, para ir buscar o livro de Emily Dickinson. Entusiasmada começa logo ali a lê-lo. Sai para a rua com o livro na mão. Segue lendo. Ouve o seu nome. Olha em frente e vê do outro lado da estrada Jack que lhe acena com Wild ao colo. Apressa-se para atravessar a rua. Subitamente, ouve novamente o seu nome com um sotaque conhecido, vindo de um carro que se aproxima. Perturbada cai no asfalto. O carro não tem tempo de parar. Vê num flash a sua vida e pensa na frase da avó – a literatura mata. Não, os homens e a vida vivida é que matam. Lentamente, deixa cair a cabeça.
fantástico teresa, um conto maravilhoso e …fantástico.continua. maria augusta seixas
Parabéns Teresa. Brilhante.
Grande mexicana! Abrazotes!