O Hambúrguer Pós-Revolução
Saíu no Notícias Magazine (Diário de Notícias) um extenso artigo sobre a mais famosa e antiga hamburgueria da Costa da Caparica. Como sempre faz nestas situações, o Notícias da Gandaia regista (e aplaude) a atenção dada à nossa terra. Aqui fica – com a devida vénia – o artigo de Ricardo Santos com fotografia de Reinaldo Rodrigues/Global Imagens e publicado a 23/04/2014 – 15:45 (clique aqui para ver no original):
O hambúrguer pós-revolução
Quarenta anos depois, o Sandwich Bar continua livre e aberto a todos os gostos.
Em 1974, no primeiro verão depois de Abril, abriu na Costa de Caparica a primeira hamburgueria portuguesa. Quarenta anos depois, o Sandwich Bar continua livre. E, aos 62 anos, Hugo Ponte acredita que já vendeu mais de dois milhões de hambúrgueres.
Hugo Ponte, 62 anos, camisa branca com os dois botões de cima abertos, calças de ganga, havaianas nos pés, pega no neto ao colo. A pele tem um tom de bronzeado natural ganho em décadas passadas à beira-mar, na Costa de Caparica. Foi aqui, na praia mais famosa dos arredores de Lisboa que, em 1974, abriu as portas da primeira hamburgueria em Portugal – o Sandwich Bar. Nunca mais a fechou, está aberta todos os dias do ano. Segundo as suas contas, já terá servido mais de dois milhões de hambúrgueres nestes quarenta anos.
Antes do dia 1 de junho de 1974, Hugo já tinha tentado vender hambúrgueres na Costa de Caparica. No verão anterior esteve de porta aberta, mas sem sucesso. «Durante dois meses fiz a primeira tentativa. No final de agosto achei que não valia a pena.» O bar era uma casa sem condições, bem no centro da Costa, onde a loiça era lavada num alguidar e a grelha era alimentada por uma garrafa de gás. «Ainda não tinham inventado a ASAE, podia fazer-se isso», recorda o homem que hoje é também proprietário de um hotel e de um restaurante italiano na Caparica.
A ideia surgiu em 1972, aquando de uma visita a Benidorme e Torremolinos, em Espanha, onde os hambúrgueres começavam a surgir como opção gastronómica.«Porque não? Estudava Engenharia Eletrotécnica no Técnico e dava explicações. Tinha uma série de miúdos na Costa que eram meus explicandos e que, curiosamente, foram os meus primeiros funcionários. Eles precisavam ganhar uns trocos e acharam a ideia engraçada.» Quem não achou muita piada foram os clientes. Hugo foi para trás do balcão e a reação das pessoas que entravam não foi a melhor. Pediam-lhe pregos ou bifanas e quando ele respondia que só vendia hambúrgueres a resposta era quase sempre a mesma: «“O que é isso?” Eu explicava que era carne picada e eles diziam-me que não. “Para mastigar, mastigo eu.”» Passados dois meses, Hugo Ponte estava desmoralizado. Noventa por cento dos clientes saía sem consumir. Falou com o senhorio e fechou a porta.
A ideia maturou, o bichinho manteve-se e voltou à carga em 1974, com mais condições. «Dei um aspeto condigno à chafarica desgraçada que tinha, arrumei a sala, tratei de uma decoração bonita e isso ajudou, talvez também graças aos novos tempos – à revolução, acredito que sim – e às novas liberdades.» Outro ponto que jogou a seu favor foi a amizade que mantinha com o delegado de Saúde da área – ele achava-me muita graça e nós conseguíamos funcionar sem licenças nem alvarás. Fechávamos às quatro da manhã e toda a gente caía ali porque não era normal haver um estabelecimento aberto até tão tarde. Como só havia hambúrgueres…»
Em 1974, a estrela da casa era o hambúrguer só com cebola, uma receita que serve agora para comemorar as quatro décadas do Sandwich Bar. «O primeiro verão foi engraçado. Tinha 22 anos, fui um muito jovem empresário. Os clientes tinham mais ou menos a minha idade. Joguei râguebi muitos anos no Belenenses e toda essa malta vinha cá porque tinham casas de férias na Costa. Faziam-se ali umas excursões e começou por ser um ponto de encontro. Também não havia grande oferta.» Nessa época, a famosa Rua dos Pescadores era bem diferente, com poucos prédios e muitas barracas até à praia. Hugo vinha para a Costa desde os 5 anos. Os pais tinham uma casa de veraneio e, aos 18 anos, acabou por se mudar do Restelo, em Lisboa, para a Caparica. «Nunca mais daqui saí.»
A novidade do Sandwich Bar não foi apenas a dos hambúrgueres. Este foi também o primeiro local onde se vendeu Coca-Cola na Costa de Caparica. A bebida de origem norte-americana esteve proibida em Portugal Continental até à Revolução de Abril (nos Açores, por causa da Base das Lajes, e na Madeira, perante a quantidade de turistas estrangeiros, a bebida já era consumida). Mas depois disso tudo mudou. Um dia, um representante da marca chegou à praça onde Hugo trabalhava: «O senhor Salgado apareceu aqui com uma camioneta cheia de Coca-Cola e um motorista. Parou no largo e foi amor à primeira vista. Ficámos muito amigos e nunca mais esquecemos isso. Se ele tivesse parado a camioneta noutro sítio, a história teria sido diferente. E isso também nos ajudou, porque passámos a vender hambúrgueres e Coca-Cola.»
Mas, numa época conturbada da sociedade portuguesa, os dois produtos tipicamente americanos não foram bem aceites por toda a gente. «Tive alguns dissabores. Senti isso mais em termos humanos do que comerciais. Eu era um menino da Costa, o meu verão era passado na praia, o meu pai alugava o toldo durante quatro meses. Fazíamos uns bailaricos nas garagens e os meus companheiros eram, além dos meus amigos, os nativos, o banheiro ou o nadador-salvador com quem ao fim do dia ia à pesca. Tinha uma relação muito íntima com essa malta toda. Depois da reviravolta política tive aqui à porta uma cena de faca e alguidar. Um grupo de pessoas pensou que a parede do Sandwich Bar era um sítio ótimo para colar uns cartazes de um partido político em tons de vermelho. Tinha o estabelecimento aberto, eles encostaram uma escada e começaram a colar cartazes. Vim cá fora perguntar o que se passava e fui enxovalhado por uma multidão. Disseram-me coisas do arco-da-velha, principalmente pessoas com quem eu me dava. Por isso é que me doeu mais. Não consegui desculpar-lhes isso. Nunca se resolveu, nunca mais consegui reconciliar-me. Foram as opções deles, essencialmente deles.»
Hugo é um homem tranquilo. Fala com calma do que passou e do que poderá acontecer. Numa altura da vida em que já poderia estar a gozar a reforma, continua ligado ao negócio da família, dando espaço ao filho, Marcos, para mostrar o que vale a sua licenciatura na área da Economia. «Há um conflito de gerações entre mim e o meu filho, que tem demasiadas ideias. Ele quer experimentar tudo – o que é legítimo e salutar – mas há muitas coisas pelas quais já passei. A experiência diz-me que não é por aí. Isso às vezes cria um pequeno choque, que é normal, porque a visão é diferente.» Olhando para trás, Hugo Ponte recorda que tem clientes que ali vão desde o primeiro dia. «Muitos dizem-me que comeram aqui o primeiro hambúrguer da vida. Andámos a investigar e somos a mais antiga hamburgueria em Portugal, não tenho ideia de que houvesse outra.» Outro orgulho durou até há cerca de dois anos. Nos primeiros 38 anos de negócio, garante, o valor das vendas foi sempre aumentando: «Era uma vaidade muito grande que eu tinha. As vendas tiveram uma subida anormal com o fenómeno dos brasileiros na Costa – chegaram a estar cá mais de dez mil. Todos caíam aqui e isso deu um incremento às vendas fora do verão. Foi bom para todo o comércio da Costa. Pagámos o preço quando eles foram embora.»
Hugo ainda come os hambúrgueres do seu estabelecimento – mal passados – mas não lhe peçam para os cozinhar. «Isso já me tira o apetite, já cansa.» E, antes de voltar para junto do neto, ainda tem tempo para recordar o dia em que vendeu mais hambúrgueres. Curiosamente – e porque estamos em ano de aniversário do 25 de Abril – foi num 1.º de Maio. «Ninguém abria as portas e eu vendi mais de três mil num só dia.»