O Porto de Lisboa e a Golada do Tejo
Artigo do Sr. Almirante Francisco Vidal Abreu, publicado na Internet na Revista da Marinha, na terça, dia 12 Janeiro de 2010 (clique aqui para ver o original).
Há questões que são abordadas ciclicamente pela Comunicação Social, a que se seguem posições mais ou menos apaixonadas de quem pouco ou nada sabe da matéria. Seguem-se depois intervenções essencialmente técnicas em Academias, Sociedades ou outros “fora” de pensamento e debate e, fica tudo na mesma. Se o tema regressa de tempos a tempos é sinal que é importante e, também, que não ficou resolvido. E, se assim sucede, é porque não existe o hábito de avaliar o custo das não decisões. O fecho da Golada do Tejo é uma destas questões.
2. Um pouco de história
Mostram as cartas hidrográficas dos finais dos anos vinte e trinta do século XX que a golada (ligação entre a Trafaria e o farol do Bugio) se encontrava fechada. Uma vasta língua de areia consolidada, embora parte dela apenas emersa em baixa-mar, permitia que se fosse a pé de um ponto a outro perto dos estofos da maré baixa. Esta mesma situação ouvi-a eu repetir por diversas vezes aos mais velhos, já nascidos em pleno século XX, corroborando escritos da época de que tal possibilidade se mantinha com pequenas variações durante várias décadas, pelo menos de finais do século XIX até aos finais da década de quarenta do século passado (ver figuras 1 e 2). Porque se alterou então a situação e a golada abriu? É ponto assente entre os técnicos que tal se deveu à retirada dessa zona de enormes quantidades de areia para a realização de aterros na margem direita do Tejo, entre Belém e Algés, no início dos anos quarenta e, eventualmente mais tarde, para outras situações, desfazendo assim um equilíbrio dinâmico que tinha levado séculos a construir. Foi um erro? Foi, certamente por não compreensão do processo em que se estava a interferir e da gravidade das suas consequências. Mas erro maior é, com os conhecimentos hoje existentes, nada fazer para corrigir o erro cometido, repondo a situação anterior.
3. Um pouco de oceanografia costeira
É um facto que, até às primeiras décadas do século XX, muitos dos fenómenos ligados à dinâmica costeira e estuarina não eram conhecidos ou, pelo menos, não eram compreendidos. Recordo o meu professor desta cadeira de mestrado na Naval Postgraduate School (Monterey, Califórnia, USA), quando ilustrava este desconhecimento com erros cometidos durante décadas nas costas dos Estados Unidos da América. Embora com a intenção de proteger um porto, dar segurança a uma barra ou estabilizar uma praia, obtinham-se resultados exactamente contrários. E estes exemplos, até porque ajudararam a compreender certos fenómenos não eram escondidos, aparecendo mesmo nas “bíblias” da Oceanografia Costeira, como era o caso do “Shore Protection Manual”, elaborado para o Corpo de Engenheiros do Exército dos Estados Unidos, ainda hoje responsável pelas intervenções de protecção na área costeira.
Analise-se primeiro o que é a corrente de deriva litoral. A ondulação raramente ataca a costa segundo uma direcção a ela perpendicular, mas sim com um ângulo diferente de 90 graus. Essa inclinação depende da direcção do vento que lhe dá origem. Como o vento dominante na nossa costa é de NW, uma origem nesse quadrante tem como efeito arrastar a areia ou outros sedimentos do litoral para Sul. E arrasta todos os que estão na sua zona de influência, emersa ou imersa, consoante o nível da maré. A areia que vemos à beira-mar nunca é a mesma. Vai sempre deslocando-se ao longo da costa, sendo substituída por outra. A este movimento de sedimentos em suspensão ao longo da costa, chama-se corrente de deriva litoral. Este movimento é, no entanto, interrompido ou modificado quando a corrente encontra um obstáculo (natural ou construído pelo homem), ou é sugado para grandes profundidades pelos canhões submarinos.
Um exemplo claro desta afirmação está no crescimento enorme da praia da Figueira da Foz depois do prolongamento dos molhes do porto. A areia foi ficando retida a Norte dos molhes até ser ncontrado um novo perfil de equilíbrio e ela voltar a conseguir transitar para Sul, passando frente aos molhes e voltanto a aproximar-se da costa umas milhas mais a Sul. Com esta explicação percebe-se porque é que as praias a Sul dos molhes da Figueira ou de Aveiro têm muito menos areia que as praias a Norte. Outro exemplo claro é o da Praia da Rocha. Se compararmos as praias a E e W dos molhes de Portimão, facilmente concluímos que, naquela zona, a corrente de deriva litoral é para E.
Mas, por vezes, e devido a descontinuidades na costa, faz-se sentir o efeito da difracção. Este, conjugado com o de refracção que toda a ondulação sofre no processo de aproximação à costa quando começa a “sentir” o fundo, ao ser muito acentuado, pode levar a que a rotação feita faça com que o ataque à linha do litoral da costa W, venha do quadrante SW. Exemplos claros deste efeito aparecem-nos a Sul das embocaduras do Tejo e do Sado, dando assim origem, respectivamente, à Golada do Tejo e à Península de Tróia. Uma prova do afirmado pode encontrar-se nos esporões da Caparica, onde a areia que lá chega por vias naturais, se acumula mais a Sul que a Norte de cada esporão.
Mas, ao longo do ano, não existe apenas este movimento longitudinal das areias. Existe também um outro, perpendicular à costa (é a outra componente da decomposição do vector ondulação), que leva a que no Inverno as praias sejam escavadas por acção dos temporais de geração local (maior energia com alta frequência), com o arrastamento das areias para o mar e a criação de dunas submersas frente às mesmas praias. No Verão, a ausência de temporais de geração próxima, e a chegada do “swell” (longos períodos resultantes de temporais gerados muito longe), vem repor a areia no seu local de origem, voltando as praias a “encher”.
4. Um pouco de dinâmica estuarina
Atentemos agora no conceito de prisma de maré. Qualquer bacia, como a do Estuário do tejo, apresenta uma dada área molhada que pode ou não variar significativamente entre baixa-mar e preia-mar. Entre uma e outra, recebe um dado volume de água proveniente da maré. A este volume de água, que apresenta valores extremos máximo e mínimo, para marés vivas e mortas, respectivamente, chama-se prisma de maré. É importante conhecê-lo, porque existe uma relação próxima da linear entre os seus valores médios e a área da secção disponível para aquele volume de água entrar ou sair nas cerca de 6 horas e 12 minutos correspondentes a cada meio ciclo de uma maré semi-diurna regular.
Voltando a fechar a Golada, e porque o prisma de maré se manteria em valores próximos dos actuais, como o comprimento da secção é menor (apenas entre o Bugio e S. Julião), para que a secção se mantenha, terá a sua cota que aumentar. A barra Sul aprofundaria naturalmente e a ponta Sul do Cachopo Norte (Bico de Pato) regrediria, poupando-se em dragagens periódicas. A situação existente no início do século XX, com a golada fechada, era a situação natural e de equilíbrio entre o efeito da ondulação e a conjugação da maré com o caudal do Tejo. Já se imaginou o que poderia suceder se se desfizesse o equilíbrio existente na foz do Sado, por rotura da Península de Tróia?
É verdade que nem sempre a Golada esteve fechada. As crónicas disponíveis ligadas à construção do Forte de São Lourenço da Cabeça Seca, bem como planos da entrada do Porto de Lisboa dos séculos XVI a XVIII, e ainda cartas hidrográficas dos séculos XIX e XX referem sempre uma golada aberta com uma pequena barra (em nada comparável às hoje designadas de barra Norte e Barra Sul), que embora chegando a ter designação própria, nunca foi muito estável, variando ao longo do tempo, quer em localização, quer em profundidades, e que era apenas praticada por embarcações de pequeno calado. Mas ficará sempre a dúvida sobre o que sucederia caso o homem não tivesse desfeito a situação existente no início dos anos quarenta do século passado, resultado de uma última consolidação de quase cinquenta anos. Será que se aguentaria e até se iria continuando a reforçar ao longo dos anos? Ou será que um violento temporal num dos Invernos seguintes voltaria a abrir a golada? E será que voltaria a fechar de novo, dentro de um ou dois anos? São dúvidas que ficam sem resposta.
A verdade é que enquanto não se refizer o antigo equilíbrio entre a Trafaria e o Bugio, manter-se-à, talvez por séculos, uma situação próxima da actual, isto é, as areias depositadas anualmente na Caparica vão avançando para Norte, entram no Tejo pela zona da Golada, vão formando pequenos bancos submersos que se deslocam para montante, chegando mesmo a assorear ciclicamente o cais POL NATO, sendo depois apanhadas pelas correntes de vazante. Sete levantamentos hidrográficos feitos entre 1990 e 2007, corroboram esta análise. Os efeitos práticos deste “ciclo”, em termos de assoreamento (ver figuras 3 e 4), têm sido o crescimento e deslocação do Bico de Pato para SE (800m em cerca de 50 anos, com uma velocidade máxima de avanço de 22,5m/ano entre 1954 e1970) e um robustecimento da vertente Norte do Banco do Bugio com um correspondente avanço de 700m no mesmo período (1929 a 1985).
Por sua vez, esta perda mais acentuada das areias da Caparica, ao longo das últimas décadas, quer as de origem natural, provenientes de menores correntes de deriva litoral (devido à sua retenção nas barragens), quer as lá colocadas artificialmente, faz com que a abertura da Golada tenha tido os efeitos dramáticos que são conhecidos nas praias da Costa, apesar dos eforços feitos ao longo dos anos para se conseguir lá reter as areias. É que, esvaziadas progressivamente as praias, estas já não têm largura suficiente para aguentar o ciclo Verão/Inverno, levando a que as vagas atinjam directamente áreas que anteriormente estavam naturalmente protegidas. Repare-se que a situação da golada fechada (ou quase fechada), correspondia à existência de um mega esporão natural com cerca de 3km de comprimento, praticamente no alinhamento da margem esquerda do Tejo!
5. Um pouco mais de paciência
Perante o quadro apresentado parece claro que não se conseguirá resolver o problema da Costa da Caparica sem que a Golada volte a ser fechada. Mas não basta fechá-la. Há que, simultâneamente, tentar colocar toda a zona afectada numa situação tão próxima quanto possível da antiga situação de equilíbrio, para que esta se atinja mais rapidamente. O porto de Lisboa ficaria muito mais protegido dos Sudoestes, criando-se simultaneamente uma zona calma numa área de grandes fundos já existente na margem esquerda do Tejo, entre a Trafaria e o Cais POLNATO. Situação que permitiria o seu aproveitamento natural, por exemplo para a construção, sem limitações, do futuro terminal de contentores. Mas aquilo que parece simples em termos de análise e explicação, não o é tão simples em termos de estudo e execução. Embora esta matéria tenha tido um grande acompanhamento por parte do Porto de Lisboa, através de estudos e levantamentos hidrográficos ao longo dos anos, o último estudo completo data de 1987, estando necessariamente desactualizado. Foi realizado a pedido do Porto de Lisboa, no sentido de suportar a decisão de voltar a fechar a Golada, sob responsabilidade e coordenação da Hidrotécnica Portuguesa, e em que também tiveram intervenções fundamentais o LNEC (na modelação matemática e física) e o IH (na execução de uma campanha oceanográfica para recolha de dados que permitissem a calibração do modelo numérico).
Tudo estava bem orientado, tendo mesmo a Administração do Porto de Lisboa (APL) mandado elaborar o correspondente Estudo de Impacte Ambiental (EIA) sem que a isso fosse obrigada pela legislação portuguesa. Foi aberto concurso internacional em 1990 para a execução da obra, tendo-se mesmo chegado à fase de selecção das propostas. No entanto, e com base no parecer da Comissão de Avaliação do EIA, a obra acabou por ser rejeitada por despacho ministerial de Junho de 1992, com o argumento, entre vários, de que “não havia garantias técnicas que suportassem a sua justificação e que os resultados poderiam mesmo ser contrários ao pretendido”. Diga-se de passagem que o primeiro responsável pelo estudo (I. B. Mota Oliveira, Professor Catedrático, IST), e em cujos trabalhos me apoiei para a elaboração de alguns aspectos deste artigo, não concordou com a argumentação técnica apresentada pela Comissão de Avaliação, contestando-a mesmo, mas a decisão estava tomada.
Pelo caminho ficam os milhões gastos com o reforço da margem direita, junto à linha de Cascais, para a proteger dos Sudoestes, ficam os milhões gastos com um muito maior volume de dragados para manter aberta a barra Sul do Tejo, os milhões gastos para a defesa possível da Costa da Caparica com os resultados conhecidos, e os muitos milhões ligados ao não desenvolvimento natural do porto de Lisboa, que levaram mesmo a que se tenha tomado a decisão, mais que discutível e sempre de validade temporária, de fazer a ampliação do Terminal de Alcântara para servir como “grande” terminal de contentores.
Este caso constitui ,assim, um exemplo paradigmático das consequências que podem ter as “não decisões” ou o protelamento por décadas de uma decisão, embora baseada em argumentação técnica discutível (tratava-se de repor o que a natureza tinha criado e estabilizado ao longo de décadas), quando as pressões tinham raízes noutros “medos”. Aqueles que se dizem defensores do desenvolvimento sustentado não podem, nem devem, condicionar os decisores a ponto de as suas decisões (ou não decisões) levarem, pelo contrário, ao não desenvolvimento e, para mais, com insustentáveis custos colaterais. Por sua vez, os decisores não se devem deixar condicionar por este tipo de pressões, embora haja sempre custos políticos a pagar.
Há que ter consciência que há que voltar a fazer estudos que vão envolver novos trabalhos de campo e simulações em modelo, para além de ter que decidir sobre o que fazer na área específica da Golada. Voltar apenas a fechar(solução minimalista), ou aproveitar o fecho para criar uma zona de aterro susceptível de ser utilizada para outros fins, enfim, potenciar a obra que se torna imperativo realizar para tentar recuperar o valor da despesa de outra forma, que não apenas através da melhoria de condições para um futuro desenvolvimento do porto de Lisboa.
6. Um pouco de política
O caso do fecho da Golada é claramente um caso de decisão política a nível governamental. A partilha de competências e responsabilidades naquela área entre APL, INAG, Câmara de Almada, Ambiente, Transportes, etc…, assim o obriga. Nunca a APL, só por si, conseguirá levar uma iniciativa deste tipo a bom porto (admitindo que nela acreditava), sem o claro empenho Governo como um todo, o qual terá que dirimir eventuais objecções de algumas das partes envolvidas. O Porto de Lisboa, pelas suas condições naturais, é irrepetível, merecendo ser potenciado para servir todo um hinterland de dimensão ibérica. Visto de Espanha, é o melhor porto para servir toda a região de Madrid. Articulado com Setúbal e Sines, e devidamente acautelado o escoamento de mercadorias por via férrea, pode mesmo ultrapassar a dimensão ibérica.
Não é pois um problema que deva ser deixado apenas à decisão ou iniciativa de uma Administração Autónoma Portuária, mas que tem que ser considerado a nível da estratégia nacional para o desenvolvimento económico. A existência de uma sólida e esclarecida política portuária, para além de integrada numa política global de transportes, tem que ter, mais do que nunca como enquadramento, uma estratégia nacional de desenvolvimento e crescimento económico. Mas para isso tem que haver uma política.
Ao contrário de outras línguas, em Portugal existe apenas uma palavra – política – para significar quer a “ciência ou arte de governar”, quer “o modo de dirigir negócios públicos concretos”, parecendo querer lembrar-nos que não pode haver “política” sem “políticas específicas para cada um dos sectores da governação”.
Este caso da reposição das condições de fecho da Golada do Tejo, parece ser claramente um bom exemplo que, situando-se na área portuária, sector dos transportes, requer um relativamente baixo investimento público, embora se possa constituir num claro potenciador do desenvolvimento nacional.
Curiosamente, e tomando como base o que se passou há 20 anos, é daqueles projectos que, ganha a vontade do decisor político, pode ser estudado, decidido, executado e ver iniciada a exploração das condições criadas, tudo numa legislatura. Haja a vontade, haja o querer.
BIBLIOGRAFIA:
. Embocadura do Estuário do Tejo – Modelação matemática do Regime Hidrodinâmico. Caracterização da situação actual e evolução esperada após o fecho da Golada. Relatório Final. LNEC. Estudo realizado para a Hidrotécnica Portuguesa. Outubro de 1988.
. Port of Lisbon – Improvement of the Access Conditions through the Tagus Estuary Entrance. I. B. Mota Oliveira. 23ª ICCE, Veneza,1992.
. Melhoria das Condições de Acesso ao Porto de Lisboa através da Barra Sul. I. B. Mota Oliveira, 1996 (??).
. Minimização das Dragagens na Embocadura do Estuário do Tejo: análise de soluções alternativas. LNEC. Estudo realizado para a Administração do Porto de Lisboa. Maio de 1998.
. O Forte e o Farol do Bugio. Joaquim Manuel Ferreira Boiça e Maria de Fátima Rombouts de Barros. Fundação Marquês de Pombal, 2004.
. Estuary and Lagoon Entrances. PIANC Magazine nº 123,I. B. Mota Oliveira. PIANC Magazine AIPNC nº123,April 2006.
. Levantamentos Hidrográficos da zona da Golada efecuados em 1990, 1992, 1995, 1998, 2001,2004 e 2007. Instituto Hidrográfico, Marinha.
. O fecho da golada do Tejo. Conferência proferida por José Manuel Cerejeira, Engº Civil, na Sociedade de Geografia de Lisboa, em 23 de Junho de 2009.