Olha a minha sorte.

Olha a minha sorte.

Quem percorre a bela vila de nome Foz do Arelho por certo já cobiçou o pormenor de haver entre esta freguesia e o Nadadouro que é a freguesia contígua, na parte norte da Lagoa de Óbidos, um pedaço de terreno que parece terra de ninguém.

As freguesias têm configuração semelhante, pois ambas são quase quadradas e com tamanho de 10 km2 cada, aproximadamente.

Acontece que na estrada denominada Rua Engenheiro Luis de Paiva e Sousa existente junto à lagoa, nas placas sinalizadoras de início de uma das freguesias e fim da outra, há uma discrepância entre aquelas informações com cerca de 6 metros. Há um pedaço de estrada que não pertence a nenhuma das freguesias, parece terra de ninguém, embora nunca ninguém se tenha preocupado com tal.

Estamos a falar de uma extensão de terra de cerca de 3200 metros de comprido pelos referidos 6 metros de largo, logo 19.200 m2, números redondos, claro.

Procurei nas respectivas Juntas de Freguesia, que me remeteram para a Câmara das Caldas da Rainha. Ninguém me soube esclarecer, mais pergunta aqui e acolá e me remeteram para os registos da Igreja já que parte significativa de informações antigas só podia estar à guarda de quem sabia ler e escrever em épocas transactas.

Aqui chegado deparei com a amabilidade de um idoso padre ao que parece retirado dos afazeres comuns de uma qualquer paróquia e com tempo de sobra para me aturar.

Pediu a minha identificação e gerou-se uma empatia logo no primeiro contacto, o homem parecia esperar este encontro.

Contei-lhe a história e a minha dúvida e ele remete-me imediatamente para o tempo do Rei D. Fernando que reinou entre 1367 e 1383.

Aqui começou a aguçar as muitas curiosidades mas mantive-me só ouvinte, perante um discurso tão bem elaborado pela memória de quem sabe.

Que D. Fernando tinha ficado órfão de mãe no seu próprio nascimento, que tinha vários cognomes entre os quais, o “Inconstante”, apesar de ser pela sua boa figura apelidado de o “Belo” e também o “Formoso”, que chegou aos nossos dias. Que se meteu em brigas com Castela e perdeu sempre, assinando rendições muito perdedores para o reino, oscilou imenso nas suas obediências ao Papado, ora optando pelo de Roma ora pelo de Avinhão, nunca se recusando a voltar ao primeiro se as fracas condições de que dispunha a isso o obrigassem, que foi ele que assinou a primeira aliança com os ingleses, chegada aos nossos dias sempre com desvantagens, ora económicas ora militares e finalmente que era muito levado pelos ímpetos amorosos dados os vários casos que teve na sua vida.

Com a sua morte termina a primeira dinastia e se inicia a crise de 1383/1385.

Conforme ia falando recorria a papéis velhos em livros de lombadas muito antigas.

A cada dúvida que passava pelo meu espirito ele dava resposta momentos depois, pois parecia ler os meus pensamentos.

Mencionou que Fernão Lopes que nascera já depois da morte de D. Fernando e que na qualidade de Cronista-Mor do reino reunira muita informação dispersa de anteriores monarcas, fizera curiosos registos que talvez me interessassem.

Talvez que pela sua provecta idade o padre já tivesse sido procurado por razões semelhantes, mas isto sou eu a pensar agora, pois o fluir das várias partes da conversa foram tão absorventes que não davam para grandes reflexões no momento.

Daqui saltou para a Lei das Sesmarias, que ordenava entre outras coisas, que as terras não cultivadas pelos seus próprios proprietários fossem doadas a outros que o fizessem. Fez aqui uma pausa talvez a pensar que a minha imaginação conseguisse ser suficientemente prodigiosa para o que a seguir me relatou.

Nas extremas marcados pelos terrenos abandonados havia realmente aquele pedaço de terra que não parecia pertencer a ninguém. Quando D. Fernando foi confrontado com tais detalhes, pois parece que em muitos outros locais do Pais essas situações ocorriam, el-rei não quis fazer alterações à lei e divagando, lá foi dizendo que sempre que os pretendentes aos terrenos tivessem o seu próprio nome em três gerações consecutivas, podiam requerer a sua posse. Isto não fazendo parte da lei estava consignado nos antiquíssimos registos e na falta de outra regra aquele apêndice registado pela corte, valia como tal.

Eu não queria acreditar quando o velho padre perguntou o nome dos meus Avós e eu lhe disse serem José e António. Nada feito, resmungou ele.

Dado que o meu Pai era Fernando e eu igualmente Fernando, tal como ele já vira no Bilhete de identidade era uma pena não haver outro Fernando.

Reagi de imediato com o maior sorriso do mundo, dizendo que sim, havia outro Fernando que era o meu filho. Nunca recebi um abraço tão apertado como aquele que o velho padre me estava a dar. Era o corolário dos seus estudos e esperas durante tantos anos.

Segundo o velho padre era possível emitir um registo actual com a cópia fac-similada do documento da época e assim se fez.

Quando perguntei quanto lhe devia, ele fez um longo sorriso e disse: -Paga-me depois no Céu!

Ia já saindo com aquele presente na mão quando me ocorreu perguntar o seu nome. Fez primeiramente uma cara de quem não ia dizer mas depois abriu jogo e revelou que também era Fernando.

Bem haja! Que viva ainda muitos anos e eu que o veja. – disse na despedida.

Com aquela joia na mão decidi pedir uma reunião conjunta aos Presidentes das Juntos de Freguesia e levá-los a duas decisões. Que reconheciam a validade da situação e fazer a troca daqueles 19.200 m2 pela autorização para implementar três portagens nas vias rodoviárias existentes entre as duas freguesias, ficando eu com o espaço suficiente em cada estrada para implementar a portagem num acordo a estabelecer com a ViaVerde. Muita objeção como é costume em Portugal, autorizações de várias capelinhas também à moda portuguesa.

Soube que lá dividiram entre si os quase 19.000 m2 e eu comecei a receber mensalmente o resultado da minha lembrança.

Claro que quis ser grato ao Padre Fernando por tal felicidade. Fiquei a pagar ao Inatel a sua instalação naquele lugar turístico, mas tanto quanto sei ele só se desloca para lá em curtos espaços de tempo. Sempre que para lá vou não esqueço de tomarmos uma refeição conjunta.

Olha a minha sorte!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Nota: As entidades acima mencionadas e os supostos encontros com as mesmas, são obviamente ficcionados.

Maio 2019

MFAleixo

4 thoughts on “Olha a minha sorte.

  • 19 de Setembro, 2023 at 18:29
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    Quem me dera que houvesse na minha frequesia um espaço desses não reclamado, iria enriquecer certamente…

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    • 12 de Outubro, 2023 at 16:27
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      Tenta ir para a Foz do Arelho…
      Abraço do mfaleixo

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  • 19 de Setembro, 2023 at 17:38
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    Bom contador de histórias, como já nos habituaste.
    Abraço, amigo Aleixo.

    Reply
    • 12 de Outubro, 2023 at 16:28
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      Obrigado João.
      Forte abraço.

      Reply

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