Papagaio Fora da Lei
F.S. chega de mansinho, com toda a calma do mundo, preparado para o que vier. Chega à praia e interroga o mar, o céu e, claro o vento. Nada é garantido, tudo é imprevisível. São assim os pescadores.
“Comecei a pescar com oito ou nove anos”, apresenta-se. “Não, não foi começar a aprender”, corrige: “com oito anos comecei a pescar mesmo, sozinho, com o papagaio. Aprender foi antes, nem sei quando… desde que me lembro.”
Explica tudo com cuidado e paciência invulgares. “Sim, claro, pescar com papagaio é ilegal…” E parou, suspendendo as palavras no espaço, no largo espaço entre o mar e as dunas, entre o legal, o ilegal e a vida de todos os dias. Aqui a legalidade não tem tanta importância, pode-se negociar a realidade: “ficou assim quando fizeram a lei para as canas [pesca desportiva com cana], ficámos de fora porque usamos mais anzóis. Eu uso 150.”
Trocamos impressões sobre este número e defende que “esta pesca é incomparavelmente menos agressiva que todas as pescas de rede. E se é pelo número de peixe pescado, então nem se fala…”
“Além disso”, apressa-se a acrescentar, “quando vejo que o peixe não tem tamanho ou não interessa, devolvo-o logo ao mar. Um pescador que se preze cuida do peixe, o seu ganha pão”.
Tal como quase toda a pesca de rede, a pesca com papagaio é cega, uma vez que não se vê o que vem, antes de recolher a rede ou linha, e não se sabe qual o peixe que lá está.
Tem dificuldade em aceitar categorias rígidas de coisas que não fazem parte da realidade. Legal ou ilegal é uma etiqueta que nada vale perante a tradição imemorial ou, sobretudo, a natureza. Mas as relações entre pessoas e funções são realidades tão objetivas como uma rocha no mar. “Claro que não pesco de dia, era faltar ao respeito à polícia…” Há valores e, mesmo, uma ética.
Por outro lado, para tudo o que é quotidiano, como o tipo de peixe, os tipos de anzóis, os nós, a maneiras como as ondas rebentam, a qualidade do vento… Aí, a classificação é tão mais detalhada e com tantas variantes que para nós, leigos da terra, parece uma língua estrangeira. Tudo especificado, tudo muito claro.
Não é só nas palavras que há um “nós” e um “eles”. Perguntamos diretamente, “nós quem?” e, claro, é o “nós pescadores”, como evidência tão crua e natural que nem compreende a justificação da pergunta.
Seja como for, o “nós”, que neste caso é F.S. e os seus camaradas, fabricam tudo, desde o papagaio, com plástico de sacos do lixo (“dá mesmo jeito, de noite não se vê nada”), caniços e mesmo as chumbadas, mas, o nylon e anzóis, naturalmente, vêm da loja.
Retoma-se a descrição: um papagaio bem dimensionado, coisa de um metro por metro e vinte, “não pode ser muito pequeno, nem muito grande. Tem de conseguir levantar cerca de quatro quilos”.
Este número suscita a questão, se é só esse o peso, porquê os 150 anzóis? “Não, não é o peso do peixe mas sim o peso do ‘aparelho’. Quem puxa o peixe somos nós, não é o papagaio…”
Explica depois (como se pode ver na imagem) que o papagaio não faz só o serviço de levar os anzóis para depois da rebentação das ondas. “A flutuação que o vento imprime no papagaio transmite-se pelos anzóis e atrai o peixe, ao ver o movimento…”
“Isto é uma arte muito complexa, com vários fatores que temos de ter em conta para existir um equilíbrio com o vento e o mar… não pode ser muito, que rasga, nem pouco, que afunda… não pode ficar no alto, que os peixes não voam, nem pode tocar no mar, que se afunda logo…” Não é por acaso que para os pescadores, tudo o que é usado na pesca se chama “a arte”.