Santiago (Alma) de Cuba
Decidimos descer a encosta até ao porto na esperança de locais aprazíveis à beira mar para depois comer alguma coisa. A fome já falava connosco…
Não vimos locais aprazíveis. Na avenida, por entre carroças e transportes públicos puxados a cavalo, a motores elétricos, de combustão ou a pedais, apenas alguns bancos atarrachados pelo sol.
Numa cervejaria, convidativa, de sombra espessa e fresca, um funcionário é rápido a enxotar-nos. Ná, diz ele em palavras e gestos. E comida? Pergunto eu, direto à substância… Ali, responde com gestos largos.
Aqui, uma nota: ao contrário de Portugal, onde um gesto largo indica uma distância ainda mais larga, em Cuba, pelo contrário, ali, significa mesmo ali.
Lá estava ele, na esquina a 50 metros, um pequeno quiosque com uma senhora simpática: Algo para comer? Pergunto esperançoso, sim, temos hambúrgueres de frango. Excelente!
Arranja-nos logo uma mesinha à sombra de uma árvore de alfarrobas gigantes, dois banquinhos e lá ficamos, encorajados pelo aroma da fritura.
Era um quiosque num minúsculo jardim, com duas grandes casas de banho, provavelmente a grande justificação do jardim e do quiosque. Continuei a ver os veículos das mais variadas formas, quando uma das carroças de passageiros parou ali mesmo. Corri afoito e perguntei ao motorista: como chamam a este veículo? Tinha uma vaga esperança que chamassem “americano” como se chamavam em Lisboa coisas parecidas no século XIX. “Carro (coche)” respondeu. E pronto.
Passado algum tempo, a senhora simpática avisou que a comidinha estava pronta. Fui ao balcão e recebi as caixinhas que se veem na foto.
Com toda a minha ingenuidade, perguntei: E o pão? Com toda a naturalidade que a evidência suportava, respondeu: “pão, não há”.
Que não havia pão, até já sabia. Tinha visto filas à porta das lojas e padarias, não só em Santiago como por toda Cuba, o que realmente me atingiu foi a naturalidade, não há… e a vida continua.
Esta naturalidade em resolver problemas e ultrapassar obstáculos, a maior parte das vezes com grande criatividade, foi uma das características que mais me interpelou por toda a viagem. Bloqueio americano? Muito bem, vamos arranjar forma, outra forma, cá nos desembrulhamos. O importante é mandarmos nós na nossa terra…
Ao fim da tarde, atravessávamos mais um apagão, sem ventoinha, sem ar condicionado, enfim, sem luz, gozando o fresco do terraço da casa em que ficávamos, no característico bairro Tivoli, muito perto da famosa Varanda de Velasquez,
onde o primeiro governador da ilha – Diego Velasquez de Cuellar – ia perscrutar a baía prevenindo qualquer ataque flibusteiro, sem qualquer iluminação na rua, escuridão apenas rasgada por uma ou outra lanterna ou telemóvel, repentinamente o som dos tambores flutuava, dirigido por uma corneta que, raios me partam, se não era uma Suona chinesa, pródiga nas óperas de Cantão e de Pequim.
A dona da casa em que ficámos confirmou: corneta china, sim. É muito usada na Conga, a música do Carnaval de Santiago.
O Carnaval de Santiago de Cuba, que acontece em Julho, é uma erupção de criatividade que, não poucas vezes, descamba em desacato, pródiga na crítica aos governos, atuais e passados. Conga? Não é a famosa Tumba (Francesa)? Que não, não tinha nada a ver.
A Tumba Francesa em Santiago teve origem numa fuga de colonos franceses do Haiti, e dos seus escravos, nos finais do século XVIII e que consideraram Cuba mais pacífica nas revoltas dos escravos africanos que eram “transportados” nas condições que se conhecem. Fugiram para Santiago, esclavagistas e escravos. Foram estes que imitaram as danças de salão francesas, cheias de formalismos nos passos ao som de subtis notas de cravos e alaúdes e fartas rendas no vestuário, mas aqui adaptadas à forte essência africana, o ritmo inebriante e por vezes o canto a caminho do transe. Podem ver em https://youtu.be/mwugoomJrZQ, é surpreendente.
De resto, a música é um dos atributos de Santiago de Cuba. Foi aqui que nasceram os seus grandes nomes, a começar por Compay Segundo, Ibrahim Ferrer e Eliades Ochoa – todos participantes no famoso Buena Vista Social Club, assim como foi aqui que nasceu a salsa, o bolero, e quase todos os estilos que identificamos como cubanos.
Esta personalidade é muito clara para quem deambula pela cidade, mesmo sem investigar particularmente qualquer uma das suas muitas características. Exala da arquitetura colonial, tão presente, desde a primeira casa de Cuba, a residência do tal primeiro governador, até ao famoso quartel de Moncada, agora uma escola, e onde – tragicamente – se iniciou a revolução cubana de Fidel Castro, Che Guevara e Camilo Cienfuegos.
Abraçada pela Sierra Maestra, as origens da revolução estão sempre presentes. Não é bem uma coisa histórica, nem se baseia em monumentos ou marcos históricos. É algo de vivo, omnipresente, sensível e bem evidente. O seu lema “Rebelde ayer, hospitalária hoy, heroica sempre”, escrito por todo o lado, não dá espaço a confusões ou esquecimentos.
Quando me sentei numa cadeira de barbeiro e o artesão me disse que eu tinha cara de inteligente, percebi logo que o corte me ia sair caro. No entanto, o importante do episódio é que, perante a falta de eletricidade – mais um apagão – que não permitia o uso das máquinas, não faltaram desculpas: “uma avaria na fábrica”, dizia um, “uma peça que os americanos não deixam cá chegar”, completava outro… Estávamos todos bem cientes que era um senhor que carregava no interruptor algures e quando muito bem lhe apetecia, sem dar azo a estratégias remediais, mas para estes simpáticos santiaguenses, era importante proteger o governo, para eles todos eram o governo e todos estavam no mesmo barco. Como ouvi vezes sem conta, “somos todos irmãos”.
Cuba, siempre!